sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Chouchou

Título original: Chouchou
Ano: 2003
Direção: Merzak Allouache
Roteiro: Gad Elmaleh (esquete original e roteiro), Merzak Allouache (roteiro)
Gênero: Comédia
Origem: França
Duração: 105 minutos

Se eu tive o grande prazer de conhecer “Chouchou”, foi devido a um vago comentário de um grande amigo. Deu no que deu: “Chouchou” me conquistou pela delicadeza e simplicidade, já apresentando aqui as características que são a essência do filme. Um longa-metragem totalmente despretensioso, por mais difícil que seja considerar essa uma definição pertinente a qualquer obra que aborde temas tão sérios. Explico: “Chouchou” aborda a questão da homossexualidade (que é séria por, incrivelmente, ainda ser tabu) e do travesti (que vive a ser encarado em nossa sociedade com base em uma série de estereótipos), permitindo-se à ousadia de levar tudo isso para dentro da igreja catóe levar tudo isso para dentro da igreja catase em uma slica! Isso, certamente, não lhe parece pouco se você sabe que a Igreja - com todo o respeito que lhe é devido -, de um modo geral, concebe ainda a homossexualidade como perversão, sendo o seu praticante condenável ao fogo do inferno. Equivoca-se, porém, o leitor que, não havendo asssistido o filme, lê o presente comentário e faz de "Chouchou' a idéia de um filme polêmico. Esta delicada obra de Merzak Allouache, adaptada da peça teatral de Gad Elmaleh (que interpretou o protagonista em ambas ocasiões), em momento algum polemiza o tema. Polêmicas são as discussões que o filme sugere.


"Chouchou' é para mim o melhor exemplar da minha concepção pessoal de "filme libertário" na medida em que apresenta situações inverossímeis no contexto da sociedade atual (as mencionarei logo a diante) de modo a imediatamente ocasionar no telespectador a reflexão acerca da representação que a relação homossexual teria, na vida real, nos contextos apresentados pelo filme (a família, a igreja, os amigos). Eu mencionei situações inverossímeis. Pois bem: "Chouchou" não só leva a questão da homossexualidade para dentro de Igreja, como eu disse, como também para o contexto familiar, porém de forma tranquila, livre de dramas. O fato de Stanislas (Alain Chabat) levar Xuxu (Gad Elmaleh) para conhecer seus pais apresenta-se como algo absolutamente natural, tanto que, quando ambos estão a caminho do restaurante onde os pais de Stanislas mantêm-se à espera, a preocupação de Xuxu não é com a possibilidade de não ser aceito pelos futuros sogros por ser homossexual etc. e tal. Sua preocupação é tão somente com a possibilidade de não agradar como a namorada de Stanislas. Coisa que, aliás, não acontece. A empatia entre Xuxu e os sogros é imediata. Fico pensando nos jovens da minha geração, que tantos dramas viveram ou vivem no tocante ao posicionamento de suas famílias a respeito de sua orientação sexual.


Ainda em se tratando das tais situações, temos também a simática Dra. Nicole Milovavovich (Catherine Frot), que, ao meu ver, não é psicoterapeuta por acaso. O que temos aí é uma metáfora para a urgência de compreensão da questão da homossexualidade. O psicoterapeuta, espera-se, possui uma mente aberta para assuntos como esse, dado o seu conhecimento teórico sobre o mesmo. Interessante observar que no único momento em que Xuxu fala, com seriedade, sobre a sua orientação sexual para a Dra. Nicole, essa ópta por não estender o assunto, apenas autorizando Xuxu a, a partir do dia seguinte, apresentar-se em sua casa como a sua secretária, Srta. Xuxu, o que nosso protagonista faz de bom grado. E temos,mais uma vez, o filme tentando nos passar a sua mensagem libertária: "Este não é um assunto ao qual se possa polemizar. Não há nada a discutir sobre, pois se trata de algo comum".


E, finalmente, temos a atuação de Claude Brasseur como o Padre Léon, que, em nenhum momento, dirá "sim' ou "não' à forma de Xuxu viver a vida, apenas acolhendo-o enquanto ser humano que necessita de amparo. É esse o papel da Igreja, não? Em uma bela cena em que nosso protagonista procura o Pe. Léon para se confessar, apresentando o seu desejo de se casar com o seu amado naquela igreja, tudo o que o padre faz é chorar após ouvir atentamente, sendo essa, talvez, a expressão de sua emoção diante da manifestação de desejos tão singelos e dignos por parte de Xuxu... singelos, porém impassíveis de viabilização no âmbito da Igreja como um todo.


Enfim, nada em "Chouchou" está alí à toa. Nem mesmo o paciente maluco de Dra. Nicole, que cisma em perseguir Xuxu. Somente o telespectador atento, no entanto, pode se dar conta disso, tão simples e hingênuo o filme aparenta ser. Aliás, o diretor ópta por manter o clima de peça teatral, o que possibilita a naturalidade e comicidade no tratamento do tema central. É possível que as minhas considerações dêem a entender que eu considero "Chouchou" uma obra-prima do cinema. Por Deus, não é. Longe disso, aliás. Ele é digno de tais considerações tão somente por ser simples, porém inteligente e útil. Aliás, o filme tem lá os seus defeitos, como o comportamento e a falta de simpatia do protagonista em diversas situações. De um modo geral, porém, Gad Elmaleh defende bem o seu Xuxu, cheio de trejeitos e manias cativantes. Xuxu é isso: um filme sem polêmica e sem tragédia que apresenta, sem superficialidade, o sonhado comportamento da sociedade em relação à diversidade sexual.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Preciosa - Uma História de Esperança

Título original: Precious
Ano: 2009
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Sapphire (romance), Geoffrey Fletcher (roteiro)
Gênero: Drama
Origem: Estados Unidos
Duração: 110 minutos

Quando eu saia da sala onde acabara de ser exibido o filme “Preciosa – Uma história de esperança”, ouvi um senhor dizer algo como “Esse filme é uma verdadeira porrada na cara da gente”. E é, o que, ao meu ver, o torna digno de ser chamado de “um grande filme”! Eu sempre tive em mente que filmes que abordam questões tão sérias como preconceito, abuso etc., mais do que serem bons, devem ser inesquecíveis, e “Precious” consegue isso, seja pela magistral atuação de Gabourey Sidibe, seja pelo cuidado com que o tema central é tratado por Lee Daniels e equipe.

Atentemo-nos para o subtítulo que o título do filme ganhou em sua tradução brasileira: “Uma história de esperança”. É justamente isso que este inquietante longa-metragem é à medida em que, procurando esquivar-se dos clichês geralmente presentes em filmes do gênero, vai mesclando as dolorosas cenas – em sua maioria protagonizadas pela horrenda Mary, interpretada pela perfeita Mo'Nique – com os monólogos e devaneios de Claireece. Nesse âmbito, se nos apresenta uma questão, no mínimo, relevante: Claireece tem a introspecção como característica marcante, ela tem consciência de sua condição e, por mais que a princípio ela não faça nenhum movimento em direção às suas aspirações, ela tem sonhos, ela vive a fantasiar em sua mente como seria viver uma realidade melhor. Ou seja: uma realidade habitada por uma mãe amorosa, por um namorado apaixonado e seduzido e por intensas apresentações em shows ou simplesmente no coro da igreja. A postura inicial de Claireece diante de sua condição nem de longe pode ser concebida como resignação, se partirmos do princípio de que ter consciência e refletir sobre a própria condição é um passo fundamental para qualquer espécie de transformação.

A tensão do filme é amenizada por alguns (raros) momentos de humor, sendo que até esses carregam em si um tom de seriedade, cabendo-nos citar, por exemplo, um momento em que Claireece, ao se arrumar diante do espelho, imagina refletida ali a imagem de uma mulher loira e magra. Esse devaneio, unido aos demais em que ela aparece glamourosa e contente, porém sendo ela mesma (negra e obesa), nos permite a reflexão acerca de um conflito presente na mente de tantos de nós, negros e outras minorias: há de um lado a consciência de que ser diferente seria melhor, uma vez que, assim, estaríamos isentos de muitos infortúnios, e de outro há o desejo de sermos amados, respeitados e bem-sucedidos tal como somos. Em termos de humor, podemos mencionar ainda uma cena em que Clairrece, sentindo fome e não tendo encontrado o que comer em casa, foge sorrateira e alegre de uma lanchonete, abrigando nos braços um pote de comida que não pudera pagar. Hilária a cena, sendo impossível não torcer por Claireence nessa ocasião (afinal de contas, roubar parece-me legítimo quando se tem fome).

É certo que, em determinado momento, “Precious” possa nos parecer apenas mais um filmeco querendo iludir o telespectador com a idéia de que há esperança, uma vez que a protagonista tinha ao menos o desejo de mudança e encontrou quem a quisesse ajudar., ao passo que a vida real consta de meninas que, na situação de Claireece, não vêem outra saída que não a prostituição, não raro se drogando etc. etc.. Pensamentos como esse, porém, costumam ser perigosos, pois podem aparecer simplesmente como uma sutil justificativa para a nossa negligência diante da existência de meninas marginalizadas como Claireece. Os produtores do filme, tal como eu e você, obviamente sabem que, como a história da protagonista, podem haver versões piores, ainda mais doloridas. Lee Daniels, no entanto, objetiva muito mais que retratar uma realidade. Ele objetiva mostrar que há esperança para quem vive tal realidade.

Tal esperança pode vir, por exemplo, através da doçura e dedicação de uma professora como a Srta. Rain (Paula Patton), personagem que está longe dos estereótipos criados sobre o professor, não raro reproduzidos em longa-metragens ou mesmo na teledramaturgia. Srta. Rain – diferente de uma certa Erin Gruwell,, de “Escritores da Liberdade” – não apela para a venda de roupas íntimas com o objetivo de arrecadar dinheiro para a compra de material didático para seus alunos (!!!). Ela simplesmente gosta de ensinar, como ela própria diz; faz bem o seu trabalho como professora e ajuda a nossa sofrida protagonista em um momento de extremo abandono. Perdoe-me pela menção, aparentemente depreciativa, à Erin Guwell. Em momento algum nego os méritos de “Escritores da Liberdade”. O fato é que, em minha opinião, “Precious” está mais próximo de uma realidade. Realidade essa habitada por pessoas solidárias, dispostas a ajudar (e não a se sacrificar). E é isso que é preciso ficar após o filme: há gente disposta a ajudar, há gente preocupada com o outro, há gente que faça bem o seu trabalho, tal como Srta. Rain e Sra. Welss.

Bom, a essa última, por se tratar da personagem de Mariah Carey, permito-me dedicar um parágrafo. Finalmente uma atuação boa de Mariah, que até então vinha aparecendo em algumas obras sem quê nem porquê, isso sem falar no angustiante, decepcionante, horrendo “Glitter – O brilho de uma estrela”, onde, como atriz, ela se mostra uma excelente cantora. Desta vez, porém, desprovida de sua glamourosa beleza, a loira (que em “Precious” está morena) tem uma participação pequena, porém intensa, vivendo na pele de uma simpática assistente social. Confesso haver sentido uma certa resistência ao filme quando vi que o nome de Mariah figurava no elenco. Veio-me algo como “Xiii, já vi tudo. A personagem de Mariah será a salvadora da protagonista. As duas formarão uma dupla, cantarão juntas e todos serão felizes para sempre!”. Enganei-me. Não há o “brilho da estrela” que é Mariah, tampouco há um final feliz...

Isso é importantíssimo em “Precious”: a ausência do que vive a nos ser imposto como belo. O que temos é tão somente a presença de personagens comuns, todos eles humanos, palpáveis, e raramente expressando algo além de um lamento contido. A grande dor, porém, fica a cargo de Claireece, que, apesar de todo um histórico de dissabores, apesar de um destino certo (Spoilers!), se decide por seguir a diante. Assim, “Precious” nos deixa a mensagem de que lutar pela sobrevivência após haver saído de uma situação difícil pode ser mais doloroso do que se submeter a ela, mas sempre valerá mais a pena lutar, sempre será mais digno. Não é de maneira alguma por ela e nem tanto pelos filhos que Claireece é obstinada em sua caminhada. Há uma causa maior que isso tudo. E é esta causa, unida à causa das tantas meninas com história similar a dela, que a torna indubitavelmente preciosa...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Princesa e o Robô

Título original: A Princesa e o Robô
Ano: 1983
Direção: Maurício de Sousa
Roteiro: Itsuo Nakashima, José Márcio Nicolosi
Gênero: Animação/Aventura/Comédia/Romance
Origem: Brasil
Duração: 93 minutos


Tal como os internautas que comentaram e avaliaram o filme aqui, eu tenho "A Princesa e o Robô" como uma boa recordação de minha infância. Recordo-me bem de que, após assistí-lo, custava-me parar de cantarolar o refrão de "O Brilho de um Pulsar" pela casa, merecendo, por isso, as reprimendas de minha mãe. Passaram-se, porém, vinte e sete anos após a produção deste filme, e temos, atualmente, crianças com gostos distintos da geração de crianças que assistiu ao "A Princesa e o Robô". Essa mudança é boa? É ruim? Sinceramente não sei. Embora seja cristalino para mim que o mundo regrediu em muitos aspectos desde a década de 80, procuro esquivar-me de comentários nostálgicos do tipo "Os filmes de hoje em dia são uma porcaria!". As coisas não são bem assim. Os tempos mudam e, paralelos a eles, mudam-se as pessoas, os seus anseios, receios etc., e tudo o que a Arte faz é refletir essas mudanças. E garanto que as histórias da Turma da Mônica não ficaram para trás. Elas acompanham, continuamente, as referidas mudanças. "Turma da Mônica Jovem", por exemplo, surgiu com o objetivo de não perder um público adolescente que não mais se contenta com os conflitos infantis das quatro simpáticas crianças (cinco, com o Chico Bento).

"A Princesa e o Robô" é, talvez, um filme impassível de uma grande e objetiva crítica, sendo fator principal para tanto o fato de ele ser estrelado pela turminha. Ou seja: quem não curte a Turma da Mônica simplesmente não gosta deste filme. "Xuxinha e Guto Contra os Monstros no Espaço" (filme ao qual não assisti) apresenta-se a alguns como um grande caos na animação brasileira, mas trata-se da visão de telespectadores que nem sequer apreciam ou apreciaram a Xuxa como Rainha dos Baixinhos. Logo, o mencionado filme de 2005 se torna alvo de algumas críticas negativas com as quais nos deparamos. Isso não lhe parece injusto? A mim parece. Bom, então temos essa razão-chave: algumas animações (e até filmes comuns, adultos), bastante despretensiosas, procuram agradar não necessariamente pela história, mas pelos conhecidos e amados personagens que apresentam.

Nesse âmbito, “A Princesa e o Robô” apresenta um pequeno problema, o que torna possível um pouco de crítica racional e objetiva acerca do mesmo: muito embora trate-se do primeiro filme completo da turma, sem divisão por episódios, observa-se que a turma, propriamente dita, não tem uma história, não participa efetivamente do filme. Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão simplesmente estão ali, como meros coadjuvantes, deixando o posto de protagonistas para o Robozinho, Lorde Coelhão e a Princesa Mimí (que engraçado escrever esses nomes atualmente!). Isso, no entanto, seria um erro apenas para os dias de hoje, pois era plausível na época. Tanto que eu só vim a percebê-lo ao rever o filme recentemente. Vejamos: estando a turminha no auge da fama na década de 80 e boa parte da década de 90, Maurício de Sousa era o suficientemente esperto para saber que, para agradar ao seu público, não se fazia necessário atribuir grandes feitos aos personagens da turma, sendo que já agradava, e muito!, o simples fato de os mesmos aparecerem na telinha, munidos das estranhezas hilárias que os caracterizavam (a comilona, a forçuda, o que trocava os “erres” pelos “éles” e o que tinha fobia de água). Há um bom tempo não leio histórias da turma. Gostaria de fazê-lo para ver como são atualmente. Mas tenho o palpite de que apenas aquelas características não seguram mais uma história. Não que a turminha não seja mais amada. O fato é que atualmente temos um público infantil, em boa parte, mais exigente.

Outro ponto negativo se refere às aparições da personagem Magali. Corrijam-me se eu estiver equivocado, mas em 1983, se bem me lembro, a Magali não tinha ainda uma revistinha própria, sendo que suas aparições restringiam-se aos gibis alheios. O que se percebe, portanto, nas animações de Maurício de Sousa daquela época, é uma tentativa para lá de forçada de se inserir a personagem nas histórias. Em “A Princesa e o Robô” é imperdoável o fato de o personagem Anjinho ter maior destaque do que ela, sem falar nas cenas em que não se fez questão em desenhar a personagem. Ela simplesmente desaparece em algumas ocasiões. A mim, particularmente, Magali cativava pela doçura. Hilária a cena em que, ao entrar na casa de um dos personagens (provavelmente da Mônica), Magali abre a geladeira e apanha uma melancia, com extrema espontaneidade, deixando Mônica boquiaberta.

Destaque para a dupla Lorde Coelhão e seu espião esquisito. Maurício de Sousa se saiu bem na reprodução do clichê do bandido chefão que não fazia nada além de dar ordens e do seu espião idiota. Destaque também para as canções e para a abertura do filme. O narrador tem uma entonação belíssima.

A atuação dos dubladores, como sempre, é perfeita, e os mesmos defendem bem os seus personagens. Apenas recentemente eu fui descobrir que a dublagem do Cebolinha é realizada por uma mulher (Angélica Santos). Bom, talvez devêssemos comentar um pequeno erro de produção: uma cena em que o Cebolinha aparece somente de cueca – já que havia acabado de acordar – seguida de um corte e outra cena em que ele aparece já vestido. Bom, ele estava na rua, portanto não teria como se vestir. O filme, no entanto, é tão despretensioso que não carece de tal observação. Talvez seja justamente esta a beleza do filme: a despretensão. Não se trata de um clássico Disney, criado com a clara intenção de eternizar-se (no que não há nada de negativo). “A Princesa e o Robô” é apenas uma animação leve para quem gosta da turminha. Merecia um final diferente, talvez com uma mensagem de caráter educativo ou algo do tipo, mas Maurício optou por um fim mais cômico. Nem por isso, todavia, a história deixa de passar mensagens boas acerca de solidariedade, amor, honestidade e não-violência. Como filme mereceria nota 6. Haja vista, no entanto, que o mesmo não deve ser avaliado por essa ótica, eu lhe dou nota 9,5, como filme da turminha que fez parte da minha saudosa infância!

Do Começo ao Fim

Título original: Do Começo ao Fim
Ano: 2009
Direção: Aluizio Abranches
Roteiro: Aluizio Abranches
Gênero: Drama
Origem: Brasil
Duração: 100 minutos

As críticas ao filme “Do começo ao fim” estão se tornando tão inúteis quanto o próprio filme, tal é a repetitividade delas. Que isso não seja interpretado como uma “crítica às críticas”. Muito pelo contrário, as considero naturais, uma vez que o filme frustrou a expectativa dos inúmeros telespectadores que, assim como eu, foram como que ludibriados por um trailer inquestionavelmente belíssimo! Aliás, “Do começo ao fim” levou-me a vivenciar a primeira experiência de me decepcionar com um filme cujo trailer o superava.

Não reparem, mas discorrerei mais acerca do trailer, pela razão que explicarei logo a diante. Esse consegue deixar o telespectador exatamente na tensão que o filme como um todo deveria deixar. O fundo musical que perpassa todo o vídeo promocional e a boa seleção de cenas são elementos que contribuem para que se pense que “Do começo ao fim” se trata de um bom filme. Ledo engano... O que ele tem de ousado é tão somente a proposta, e não se permita enganar pensando que o filme lhe proporcionou alguma reflexão, pois não foi o filme quem fez isso, mas o trailer.

Procuro não colocar em questão o fato de não haver conflitos no filme, uma vez que Aluizio Abranches, desde o princípio, deixou explícita a sua intenção de construir um filme libertário, objetivando promover a reflexão de que o amor, mesmo que numa representação postulada como “errada”, se torna uma aceitável e até bela possibilidade se considerado no contexto da realidade do nosso mundo, marcado por um caos ocasionado pela falta de consciência do outro. Em vez disso, porém, nos são apresentados dois personagens fisicamente belos, mas longe de serem simpáticos. Eles parecem tão absortos neles mesmos, que o telespectador não é levado a regozijar-se com eles em seus momentos de felicidade, tampouco entristecer-se e torcer pelos mesmos em seus momentos de solidão e saudade. Tanto faz para o telespectador se ambos voltarão ou não a viverem juntos. Será por quê? Bom, talvez os telespectadores hajam experimentado dissabores maiores do que uma bela oportunidade no exterior que lhes impossibilita uma costumeira transa com determinado parceiro.

A ironia foi extremamente exagerada, não é? Eu concordo, mas quem me lê há de convir comigo que ela chega a ser bem plausível se considerarmos, por exemplo, uma cena em que os personagens Francisco e Thomas (ou só um deles, não entendi bem) se masturbam enquanto se vêem pela internet. Essa cena, que parece querer expressar a urgência que os personagens têm um do outro, não consegue nada além de ser mais ou menos erótica e desnecessária. Podemos nos referir também à cena em que ambos dançam, pensando-se, neste ponto, na desnecessidade de eles estarem nus. Resumindo, o problema é o seguinte: essas e outras cenas seriam muito lindas se o filme conseguisse expressar, como pretendia, o amor entre aqueles personagens. Eles, infelizmente, são muito superficiais, o que nem é tanto culpa dos atores, mas do roteiro, da forma como as coisas vão caminhando no filme. O personagem Francisco, quando adulto, chega a parecer tolo ao chamar o irmão por aquele apelido tão sem graça (Tom-tom, ou algo parecido). É visivelmente forçado.

Ops! Eu mencionei a palavra “irmão”? Pois é, surpreendi você, não é? Você havia se esquecido de que os personagens são irmãos, certo? Bom, ao menos para mim, esse parentesco pareceu ser apenas um detalhe no filme, pois, com o decorrer do mesmo, a sensação que eu tinha era a de que me estava sendo apresentada apenas uma relação homoafetiva comum, o que me levava a perguntar para quê este filme foi feito. Essa, porém, não é uma pergunta difícil de se responder. Abranches parece ter construído “Do começo ao fim” com o objetivo de enaltecer alguns estereótipos gays (reproduzido por grupos gays específicos, vale ressaltar. Nada de generalizações). A beleza “top model” dos personagens, a riqueza presente nos ambientes, a oportunidade na Rússia. De forma alguma estou dizendo que os atores não deveriam ser bonitos. Muito pelo contrário... Essa beleza, porém – unida aos demais elementos mencionados – considerados no contexto da proposta de Abranches, acabam por revelar que o mesmo duvida que se possa criar um filme libertário com personagens comuns. Ou seja: a experiência de um amor pleno livre de preconceitos só é possível em um contexto específico. Você vê isso como um filme libertário? Ah, tenha dó...

Em um determinado momento, o telespectador se vê quase que desinteressado pelo final do filme. Afinal, se o filme não vinha mostrando nada, o que poderia mostrar de interessante no final? As metáforas também não são boas, e as que são, não funcionam. Destaque para uma delas: enquanto os personagens, quando crianças, falavam sobre passarinhos, gaiolas etc., o (às vezes chato) personagem Thomas vira-se para a governanta Rosa dizendo “Rosa, promete que nunca vai deixar que coloquem a gente em uma gaiola?” (nunca vi nada mais forçado), ao que o personagem Francisco responde “Eu não vou deixar”, resposta tola, haja vista que o paternalismo desse em relação a Thomás simplesmente desaparece na idade adulta de ambos, o que é uma pena, pois daria certo romantismo à relação. A mencionada personagem Rosa, por sua vez, é um dos problemas na trama. Numa cena de diálogo entre ela e Julieta – cena essa bem divertida, não nego – há a clara tentativa de se contextualizar aquela personagem, mas é apenas mais uma tentativa frustrada dentro do filme. A primeira cena de sexo entre os personagens também é um problema, e grave... Será que Abranches pensou que lançar uma cena de sexo logo no início da segunda fase do filme era a única forma de conscientizar o telespectador da existência de uma relação afetiva entre os personagens? Ou será que ele tinha muita pressa em mostrar tal cena, ciente de que, no Brasil, as pessoas dão a vida para ver uma cena de beijo entre homens no último capítulo da novela das oito?

Mas não sejamos injustos, vai. “Do começo ao fim” não é uma catástrofe, tampouco me causou a sensação de haver perdido o meu tempo e dinheiro no cinema. O que permite isso, no entanto, é a brilhante atuação de Júlia Lemmertz, perfeita no papel de mãe acolhedora, afetuosa, amiga. Todas as cenas dela são gostosas de se ver. Houvesse ela permanecido no filme na fase adulta dos protagonistas... Infelizmente, porém, sua personagem teve que morrer, a governanta Rosa teve que cair fora e Alexandre, o pai, teve que se mandar, graças à aparente dificuldade de Abranches em tratar a relação homoafetiva e incestuosa de forma libertária na presença desses personagens. O personagem Thomás fala de livre-arbítrio no início do filme? Ah, sem pais e outros parentes próximos por perto até eu exerço o meu livre-arbítrio, ora. Com tantos obstáculos de peso a menos fica bem mais fácil... Mas voltando aos pontos positivos: Júlia é a estrela do filme, maravilhosa; o personagem de Fábio Assunção é meio apagado na trama, mas chega a chamar a atenção, uma vez que a gente sabe que, culturalmente, o pai é mais resistente em lidar com certos assuntos. Fábio defende bem o seu papel. Gabriel Kauffmann, a despeito das várias falhas na sua interpretação, arranca boas risadas em algumas cenas. O personagem Francisco, quando adulto, também chega a parecer simpático quando dialoga, em sua casa, com a personagem interessada por ele (esqueci-me do nome da personagem). E eu não deixaria de mencionar, claro, um belo diálogo que ocorre entre os personagens quando esses acabam de fazer amor. “Para entender o nosso amor seria preciso virar o mundo de cabeça para baixo”. A cena é marcante pela sua beleza.

O filme de Abranches é assim. Baseado em uma proposta maravilhosa, mas que não se concretiza. Não por má direção, pois, com base em seus trabalhos anteriores, julgo Abranches como um bom diretor. Em termos de roteiro, no entanto, “Do começo ao fim” é muito problemático... E levemos em consideração também o fato de que, pelo que consta, não foi um filme fácil de se fazer. Estrear um tema desses... O filme se torna imperdoável, no entanto, devido ao tratamento que foi dado a uma boa e pertinente idéia. Que pena...

O curioso é que algumas mentes limitadas têm interpretado as críticas negativas ao filme como uma manifestação de resistência à questão da homossexualidade, e então entram em apaixonada defesa à obra. Alguns outros, almas fúteis e corrompidas por determinados valores, talvez considerem este filme um merecedor do Oscar!, por mais que, lá no fundo, saibam que ele é bastante vazio, chegando a ser apenas parcialmente interessante, mas, no geral, inútil do começo ao fim.

Hairspray - Em Busca da Fama

Título original: Hairspray
Ano: 2007
Direção: Adam Shankman
Roteiro: John Waters (roteiro de 1988), Mark O'Donnell (peça musical), Leslie Dixon (roteiro)
Gênero: Comédia/Drama/Musical
Origem: Estados Unidos/Reino Unido
Duração: 117 minutos
O meu ingresso na idade adulta é marcado por, dentre tantas coisas, minha compreensão da Sétima Arte como boa oportunidade de se promover a humanização, tal é a possibilidade de que um filme seja origem de determinadas reflexões. Hairspray – Em Busca da Fama se encaixa na minha concepção de cinema com tal perfeição, que impressionou a mim mesmo. Confesso que, até então, filmes do gênero comédia não me haviam proporcionado grandes reflexões, e as poucas que houveram logo caíram no esquecimento, ficando em minha memória tão somente as boas risadas que o filme me fizera dar. Hairspray, no entanto, conseguiu ir além disso, uma vez que munido não apenas de piadas e cenas inusitadas, mas também de romance, crítica e otimismo.

Infelizmente ainda não tive a oportunidade de assistir na íntegra à versão original do filme, de 1988. Mas julgo que tanto o filme de John Waters como este remake de Adam Shankman apresentam-se como excelentes filmes para os seus respectivos tempos. A crítica que Hairspray – Em Busca da Fama faz à segregação racial e aos padrões de beleza se dá de modo que o filme caia como uma luva para o século XXI. A história se passa na década de 60, o que é apenas um recurso do roteirista para que o racismo seja abordado de maneira mais enfática (atualmente, não há problema nenhum no fato de negros e brancos aparecerem juntos na TV, muito embora o preconceito ainda existente faça com que poucos negros consigam chegar “lá”), mas sabemos que o filme está longe de objetivar uma mera conscientização histórica, sendo, sim, uma denúncia à intolerância dos dias atuais.

Ao contrário de alguns filmes que levam o telespectador a desejar que o par romântico protagonista se desfaça, sem final feliz, Hairspray consegue dar vida ao romance dos seus personagens. O telespectador acredita na paixão entre Tracy e Link, Penny e Seaweed, Edna e Wilbur. E isso ocorre não é devido ao excesso de cenas românticas (não há tal excesso no filme), mas por causa das cenas musicais como I Can Hear the Bells, (You're) Timeless to Me e Without Love. Aliás, algumas das tantas cenas musicais contidas no filme merecem destaque, uma vez que marcam momentos decisivos da trama: Welcome to the 60s, quando a personagem Edna supera seus medos, graças à insistência de Tracy, que, ao início da canção, diz “Estamos nos anos 60. As pessoas diferentes serão aceitas!” Essa bela afirmação, unida às belíssimas vozes de Terita Redd e Shayna Steele, além do momento em que Tracy e a mãe, após transformadas, saem da loja do Sr. Pinky – que, por sua vez, também esbanja simpatia – e dançam na rua, ao lado de uma série de figurantes. É uma cena belíssima, principalmente porque é impossível não torcer pela afetuosa e acolhedora personagem de Travolta. I Know Where I've Been marca um momento sério na trama. A canção é triste, e o filme carecia dessa tristeza. É belíssima aquela passeata até a emissora, liderada pela personagem da bela Queen Latifah, tendo ao lado Tracy, a única branca em meio àquela multidão. Única pelo menos até aparecer Edna, que se junta aos protestantes e, num belo gesto, se põe à frente dos policiais, impedindo-lhes a passagem quando esses querem prender Tracy. Without Love marca tanto por ser um inocente hino ao amor como por afirmar de forma mais enfática que os personagens estão apaixonados. Há, ali, algo que une aqueles personagens negros, brancos, pobres, ricos e acima do peso: o amor. Além disso, estamos nos aproximando do momento final, Link demonstra que não é mais aquele sujeito egoísta e Tracy se une aos seus amigos, que, a gente sabe, vão ajuda-la.

You Can't Stop the Beat dispensa comentários. Não posso negar que o grande problema da trama – a segregação racial no Programa Corny Collins Show – é resolvido com muita facilidade, de forma um tanto superficial. A personagem Inez Strub se torna a principal dançarina do programa, após ser a mais votada na competição. Ela, todavia, mal aparece dançando, e, quando aparece, dá apenas uns passinhos fracos. A alegria dos personagens, no entanto, é contagiante; Amber e Velma Von Tussle têm um fim merecido (e engraçadíssimo!). Em um final alternativo, Velma ia presa, o que seria meio que exagerado no contexto do filme. Merece destaque a caracterização inesperada de Tracy, tal como a atitude solidária dessa e do personagem Link, ao juntarem-se aos seus amigos Penny e Seaweed, quando esses, inebriados pelo seu amor e pela música, entram no palco impulsivamente. Se a aparição de negros e brancos dançando juntos na TV era um absurdo, imagine então a aparição de um negro e uma branca em demonstrações de afeto. Destaque também para a belíssima aparição da personagem Edna nesta cena. Não é apenas Tracy que fica surpreendida ao ver sua mãe entrar no palco, mas também o telespectador. Observe o movimento que ocorre atrás de Edna quando essa entra. Não sejamos ingênuos, nenhum dos dançarinos sabia da existência de Edna. O movimento se dá pelo simples fato de que aquela Edna esconde o grande John Travolta, fenômeno dos musicais de outrora. E convenhamos: ele bem que merece. Embora neste filme ele não se apresente maravilhosamente como dançarino, sua interpretação é brilhante!

E pra fechar com chave de ouro, Motormouth Maybelle encerra o show, para o ódio da “Srta. Branquela”, com afirmações belíssimas e otimistas como “O futuro não diferencia negro de branco”. Queen Latifah sempre me pareceu uma grande, mas desperdiçada, atriz. Em Hairspray, no entanto, ela se supera pela personificação da mulher durona e batalhadora e pela ironia dos seus cabelos loiros.

Os personagens de Hairspray têm vida própria: Tracy (e creio que Nikki Blonsky também) é tão carismática, assim como o simpático Corny Collins, que aparece sorrindo em praticamente todas as suas cenas. O personagem de Zac Efron parece-me um tanto apagado e caricato, mas a sua interpretação é boa, e, convenhamos, com aquela aparência ele não precisa ter interpretação perfeita. Elijah Kelley defende bem o seu personagem e apresenta-se tão sedutor quanto o Johnny Castle, de Dirty Dancing. Ao lado dele, temos Cynthia Rhodes em sua excelente interpretação de boa amiga e adolescente apaixonada disposta a passar por cima de tudo para viver o seu amor. Tracy, Edna, Wilbur, Sr. Pinky, Corny Collins... todos são personagens humanitários e essa é a principal beleza do filme.

Hairspray talvez peque por apresentar uma história em que os negros parecem não lutar se não tiverem o apoio de um branco. Todos pareciam tão satisfeitos com o chamado “Dia do Negro”, tão resignados. Até mesmo a idéia de se realizar uma caminhada até à emissora parte de Tracy. Bom, mas talvez eu deva reconsiderar a minha colocação, pensando-se no fato de a história se passar na década e 60. Outro ponto é que, no momento final, percebe-se que todos os dançarinos e toda a platéia está tão feliz com a premiação de Inez e com a decisão de Corny Collins de que, dali em diante, o seu programa seria para sempre integrado. O racismo, então, parte apenas de Velma e Amber? Toda a luta de Tracy e dos negros foi apenas contra elas? Há também novamente o fato de Inez vencer a competição. Sinceramente, pareceu-me a melhor escolha (seria previsível demais se Tracy fosse a vencedora), mas parece-me no mínimo improvável que ela recebesse tantos votos.

Qualquer ponto negativo do filme, no entanto, é superado pelas suas inúmeras qualidades. O Brasil costuma dar traduções desprovidas de sentido aos filmes norte-americanos, mas no caso deste – Hairspray – Em Busca da Fama – podemos pensar na fama não como uma conquista pessoal, mas como a conquista do sucesso na luta pela igualdade!