quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Preciosa - Uma História de Esperança

Título original: Precious
Ano: 2009
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Sapphire (romance), Geoffrey Fletcher (roteiro)
Gênero: Drama
Origem: Estados Unidos
Duração: 110 minutos

Quando eu saia da sala onde acabara de ser exibido o filme “Preciosa – Uma história de esperança”, ouvi um senhor dizer algo como “Esse filme é uma verdadeira porrada na cara da gente”. E é, o que, ao meu ver, o torna digno de ser chamado de “um grande filme”! Eu sempre tive em mente que filmes que abordam questões tão sérias como preconceito, abuso etc., mais do que serem bons, devem ser inesquecíveis, e “Precious” consegue isso, seja pela magistral atuação de Gabourey Sidibe, seja pelo cuidado com que o tema central é tratado por Lee Daniels e equipe.

Atentemo-nos para o subtítulo que o título do filme ganhou em sua tradução brasileira: “Uma história de esperança”. É justamente isso que este inquietante longa-metragem é à medida em que, procurando esquivar-se dos clichês geralmente presentes em filmes do gênero, vai mesclando as dolorosas cenas – em sua maioria protagonizadas pela horrenda Mary, interpretada pela perfeita Mo'Nique – com os monólogos e devaneios de Claireece. Nesse âmbito, se nos apresenta uma questão, no mínimo, relevante: Claireece tem a introspecção como característica marcante, ela tem consciência de sua condição e, por mais que a princípio ela não faça nenhum movimento em direção às suas aspirações, ela tem sonhos, ela vive a fantasiar em sua mente como seria viver uma realidade melhor. Ou seja: uma realidade habitada por uma mãe amorosa, por um namorado apaixonado e seduzido e por intensas apresentações em shows ou simplesmente no coro da igreja. A postura inicial de Claireece diante de sua condição nem de longe pode ser concebida como resignação, se partirmos do princípio de que ter consciência e refletir sobre a própria condição é um passo fundamental para qualquer espécie de transformação.

A tensão do filme é amenizada por alguns (raros) momentos de humor, sendo que até esses carregam em si um tom de seriedade, cabendo-nos citar, por exemplo, um momento em que Claireece, ao se arrumar diante do espelho, imagina refletida ali a imagem de uma mulher loira e magra. Esse devaneio, unido aos demais em que ela aparece glamourosa e contente, porém sendo ela mesma (negra e obesa), nos permite a reflexão acerca de um conflito presente na mente de tantos de nós, negros e outras minorias: há de um lado a consciência de que ser diferente seria melhor, uma vez que, assim, estaríamos isentos de muitos infortúnios, e de outro há o desejo de sermos amados, respeitados e bem-sucedidos tal como somos. Em termos de humor, podemos mencionar ainda uma cena em que Clairrece, sentindo fome e não tendo encontrado o que comer em casa, foge sorrateira e alegre de uma lanchonete, abrigando nos braços um pote de comida que não pudera pagar. Hilária a cena, sendo impossível não torcer por Claireence nessa ocasião (afinal de contas, roubar parece-me legítimo quando se tem fome).

É certo que, em determinado momento, “Precious” possa nos parecer apenas mais um filmeco querendo iludir o telespectador com a idéia de que há esperança, uma vez que a protagonista tinha ao menos o desejo de mudança e encontrou quem a quisesse ajudar., ao passo que a vida real consta de meninas que, na situação de Claireece, não vêem outra saída que não a prostituição, não raro se drogando etc. etc.. Pensamentos como esse, porém, costumam ser perigosos, pois podem aparecer simplesmente como uma sutil justificativa para a nossa negligência diante da existência de meninas marginalizadas como Claireece. Os produtores do filme, tal como eu e você, obviamente sabem que, como a história da protagonista, podem haver versões piores, ainda mais doloridas. Lee Daniels, no entanto, objetiva muito mais que retratar uma realidade. Ele objetiva mostrar que há esperança para quem vive tal realidade.

Tal esperança pode vir, por exemplo, através da doçura e dedicação de uma professora como a Srta. Rain (Paula Patton), personagem que está longe dos estereótipos criados sobre o professor, não raro reproduzidos em longa-metragens ou mesmo na teledramaturgia. Srta. Rain – diferente de uma certa Erin Gruwell,, de “Escritores da Liberdade” – não apela para a venda de roupas íntimas com o objetivo de arrecadar dinheiro para a compra de material didático para seus alunos (!!!). Ela simplesmente gosta de ensinar, como ela própria diz; faz bem o seu trabalho como professora e ajuda a nossa sofrida protagonista em um momento de extremo abandono. Perdoe-me pela menção, aparentemente depreciativa, à Erin Guwell. Em momento algum nego os méritos de “Escritores da Liberdade”. O fato é que, em minha opinião, “Precious” está mais próximo de uma realidade. Realidade essa habitada por pessoas solidárias, dispostas a ajudar (e não a se sacrificar). E é isso que é preciso ficar após o filme: há gente disposta a ajudar, há gente preocupada com o outro, há gente que faça bem o seu trabalho, tal como Srta. Rain e Sra. Welss.

Bom, a essa última, por se tratar da personagem de Mariah Carey, permito-me dedicar um parágrafo. Finalmente uma atuação boa de Mariah, que até então vinha aparecendo em algumas obras sem quê nem porquê, isso sem falar no angustiante, decepcionante, horrendo “Glitter – O brilho de uma estrela”, onde, como atriz, ela se mostra uma excelente cantora. Desta vez, porém, desprovida de sua glamourosa beleza, a loira (que em “Precious” está morena) tem uma participação pequena, porém intensa, vivendo na pele de uma simpática assistente social. Confesso haver sentido uma certa resistência ao filme quando vi que o nome de Mariah figurava no elenco. Veio-me algo como “Xiii, já vi tudo. A personagem de Mariah será a salvadora da protagonista. As duas formarão uma dupla, cantarão juntas e todos serão felizes para sempre!”. Enganei-me. Não há o “brilho da estrela” que é Mariah, tampouco há um final feliz...

Isso é importantíssimo em “Precious”: a ausência do que vive a nos ser imposto como belo. O que temos é tão somente a presença de personagens comuns, todos eles humanos, palpáveis, e raramente expressando algo além de um lamento contido. A grande dor, porém, fica a cargo de Claireece, que, apesar de todo um histórico de dissabores, apesar de um destino certo (Spoilers!), se decide por seguir a diante. Assim, “Precious” nos deixa a mensagem de que lutar pela sobrevivência após haver saído de uma situação difícil pode ser mais doloroso do que se submeter a ela, mas sempre valerá mais a pena lutar, sempre será mais digno. Não é de maneira alguma por ela e nem tanto pelos filhos que Claireece é obstinada em sua caminhada. Há uma causa maior que isso tudo. E é esta causa, unida à causa das tantas meninas com história similar a dela, que a torna indubitavelmente preciosa...

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