sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Shakespeare Apaixonado

Título original: Shakespeare in Love
Ano: 1998
Direção: John Madden
Roteiro: Tom Stoppard, Marc Norman
Gênero: Romance
Origem: Estados Unidos/Inglaterra
Duração: 122 minutos


Quero poesia em minha vida. E aventura. E amor. Acima de tudo amor. Não a atitude simulada do amor... mas o amor que avassala a vida. Incontido, desgovernado, como um motim no coração. Que nada possa deter. Nem a tragédia nem o êxtase.


São esses os apaixonados dizeres – enunciados pela doce personagem de Gwyneth Paltrow – com os quais o telespectador é brindado ainda nos primeiros minutos de Shakespeare Apaixonado, filme vencedor de sete óscars no ano de 1999. Nesse ponto, devo confessar a minha provável inaptidão para comentar essa obra de John Madden, tal é a variedade de opiniões por mim identificadas nas tantas pesquisas que fiz na internet. Os sete óscars a ela cedido – em especial no tocante às categorias Melhor Filme, Melhor Atriz (Gwyneth Paltrow) e Melhor Atriz Coadjuvante (Judi Dench) são alguns dos pontos nevrálgicos dos críticos ao comentarem a obra, que, a princípio, eu defino como belíssima, reconhecendo, porém, o fato de a mesma deixar o telespectador com a sensação de haver-lhe faltado algo.


Nesse âmbito, se eu quisesse (e pudesse) listar o que falta a Shakespeare Apaixonado, eu colocaria, como primeiro elemento da lista, a consistência. Embora ciente da possibilidade de estar eu equivocado, parece-me ser inconcebível ao telespectador moderno uma história de amor – estória, para este caso – alicerçada em uma premissa inverossímil, como é o caso do romance entre Will (Joseph Fiennes) e Viola (Gwyneth Paltrow). Esta última, antes mesmo de conhecer o seu amado, já era, de alguma forma, apaixonada pelo mesmo, tal era o seu encantamento diante das peças que assistia no magnífico The Rose Theatre, onde, na vida real, Shakespeare realizou os seus primeiros trabalhos, acredita-se. O personagem de Fiennes, por sua vez, apaixona-se pela heroína à primeira vista, deslumbrando-se com a sua imagem ao conhecê-la durante uma valsa. E aí temos um outro problema: enquanto Will descreve para seu companheiro a bela mulher que contempla diante de si, a sua descrição não corresponde ao que o telespectador vê de fato.


Aqui, vale tecer alguns comentários sobre a atuação de Paltrow em Shakespeare Apaixonado. Dela, pode-se dizer, em primeiro lugar, que é uma mulher de aparência comum, dando vida a uma personagem talvez doce demais para o que um homem com o perfil psicológico do personagem Will pudesse esperar de uma mulher. Isso, porém, o telespectador releva sem dificuldade. Em segundo lugar, menciona-se o fato de que a interpretação afetada de Paltrow nas manifestações do exacerbado amor de sua personagem soa como sarcástica, o que, a despeito de tratar-se de uma comédia, não me parece ser a intenção de Madden. O amor ali, penso, era para parecer sincero. Tudo isso, creio, deve-se muito à inadequação de Paltrow para o papel, o que me leva a lamentar o fato de Kate Winslet – a Rose DeWitt Bukkater, de Titanic (1997) – haver recusado o papel. Não sejamos, porém, assim tão duros com Gwyneth Paltrow. Ela tem lá os seus momentos de brilho no filme, e, apesar dos pontos negativos, acaba por defender bem a sua Viola. A sua atuação, porém – e disso eu estou certo – não a torna digna de desbancar concorrentes como Fernanda Montenegro e Maryl Streep, como aconteceu.


Ainda focando as atrizes, prefiro não entrar no mérito da premiação com o óscar à Judi Dench, não podendo negar, todavia, que as três ou quatro aparições da atriz como a imponente Rainha Elizabeth, somando algo próximo de seis ou sete minutos, são o suficiente para que o telespectador perceba que Dench não está ali a passeio. Acredito haver uma certa tendência a exaltarmos a atuação de atores idosos no cinema, não sei se por respeito ou se pelo brilhantismo que o tempo, naturalmente, atribui a esses atores, mas isso nem me parece lá de grande relevância. A personagem de Dench, com sua fala incisiva, sua expressão lacônica, dividida entre a consciência da dureza de ser mulher e a necessidade de fazer a justiça dos homens, coloca a atriz em alto patamar, rendendo-lhe, sim, muitos merecimentos.


Quanto a Fiennes, não resistirei a mencionar que o mesmo não está, infelizmente, tão, digamos, “exposto” como estaria quatro anos mais tarde em Mata-me de Prazer (2002). A despeito dessa lástima, porém, o ator defende bem o seu papel, dando vida a um Shakespeare romântico, engraçado, o que fica difícil de imaginarmos sobre o dramaturgo à leitura de tragédias como Otelo, Hamlet e mesmo Romeu & Julieta. A meu ver, Fiennes aparenta ter a idade certa para o papel (tinha apenas 28 anos na ocasião das gravações, mas o personagem aparentava estar na casa dos trinta) e a aparência pertinente ao que o diretor pretendia: sedutor, com um olhar que, de acordo com a necessidade, se alterna entre o frio, o piedoso e o apaixonado. Isso, porém, ainda não o torna digno do óscar e fico feliz que a Academy of Motion Picture Arts and Sciences não haja cometido em relação a ele o mesmo erro que cometeu ao premiar Paltrow. Já a indicação do mesmo na British Academy of Film and Television Arts, na categoria Melhor Ator, e no MTV Movie Awards, na categoria Melhor Revelação Masculina (e que revelação...!) parecem-me justas.


Talvez pela mescla de romance, comédia e fatos e personagens reais, Shakespeare Apaixonado chegue ao final como uma obra inacabada, ou mesmo como uma obra que tinha às mãos tudo o que lhe era necessário para ser ainda maior, não sabendo aproveita-lo, contudo. Isso, porém, está longe de reduzi-la a um filme ruim. Muito pelo contrário, tratamos aqui de uma obra bastante corajosa por apresentar um Shakespeare sensível e “gente boa” quando tanto especula-se acerca do caráter, sexualidade e religiosidade do verdadeiro William Shakespeare. Uma bela direção de arte, um impecável figurino e texto apaixonado. Tudo isso coloca o filme em merecido destaque, efetivando-o como aquela estória que a gente pode assistir por repetidas vezes com o mesmo encantamento. Enfim, um bom filme. Um bálsamo para almas, tal como a minha, apaixonadas...


(...)


– Queres partir? Ainda não amanheceu. Do rouxinol – não da cotovia – era a voz que te feriu o ouvido. Canta assim todas as noites. Ouve, amor, é o rouxinol.


– Foi a cotovia... anunciando o sol... não o rouxinol. Olhe, amor, o rubor das luzes invejosas que tinge as nuvens no levante. As velas noturnas se apagaram. A aurora pousa os pés na crista das montanhas. Devo partir para viver... ou ficar e morrer.


– Não é a luz do dia que vês. É um meteoro, talvez, que o sol exala para guiar-te esta noite como uma tocha a caminho de Mântua! Fica mais um pouco. Ainda é cedo.


– Que me prendam. Que me matem. De bom grado teu desejo vou cumprir. Prefiro ficar. Não quero partir. Oh morte, és bem-vinda! Julieta assim o quer.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Considerações sobre o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência e a sua luta de todo dia


Esta imagem, comumente vista em páginas de discussão online sobre a temática da deficiência, eu retirei do blog da vereadora Edileuza (Tucuruí/PA), do PSC.

Uma breve consulta à internet foi o suficiente para proporcionar-me, há pouco, algum contentamento, visto que a mesma me notifica, em inúmeros resultados de uma busca ao Google, sobre ações promovidas pelo mundo afora em comemoração ao 3 de dezembro, escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para mais intensa conscientização acerca da condição e demandas da pessoa com deficiência. Assim, temos o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, em 3 de dezembro, e o Dia Nacional de Luta da Pessoa Portadora de Deficiência (sic), em 21 de setembro, celebrado nesta minha pátria amada. Dezembro, aliás, consta de inúmeras datas comemorativas que, de algum modo, se relacionam dentro dessa temática inclusiva. Dentre elas, parece-me pertinente destacar ainda o Dia da Criança Defeituosa (sic), em 9 de dezembro, o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro, e o Dia do Deficiente Visual, em 13 de dezembro.


Essas, diferentemente de datas comemorativas como o Natal, não existem para o culto a uma grande personalidade ou a um grande feito, constituindo-se, sim, como dias para a reflexão acerca do quanto há ainda por fazer no âmbito da inclusão e respeito concreto à cidadania do outro que não enxerga; que se locomove com dificuldade; que aprende/assimila as informações em tempo mais longo que os demais, ditos comuns; que não escuta; enfim, de todos aqueles que, por apresentarem-se física, mental e/ou sensorialmente fora do padrão de normalidade socialmente estabelecido, carecem de terem atendidas as suas peculiaridades, promovendo-se, assim, a concretização do ideal de igualdade e respeito à diferença. Essa, aliás, é a mais complexa e bela dualidade não raro trazida à baila nos contextos de discussão/estudo em inclusão social.


Pensar a luta cotidiana, todavia, é pensar, também, as histórias de sucesso; os bons resultados; os pontos de chegada alcançados por tantos indivíduos que, com suas cadeiras, bengalas e afins, perseguiram, obstinados, por anos a fio. Daí a pertinência de chamarmos de “data comemorativa” esse 3 de dezembro. Histórias de sucesso, conheço muitas, o que coloca-me na condição de um ser humano privilegiado enquanto colaborador de uma instituição que, a despeito das barreiras que se lhe apresentam nesse sentido, segue firme no seu propósito inclusivo. Assim, me vejo, todos os dias – seja no trabalho seja na vida pessoal –, premiado pela convivência com o ator surdo, com o jornalista com paralisia cerebral, com o cientista social cego, a psicanalista com baixa potência visual, o lingüista com limitações locomotoras e tantos outros.


Esses, no entanto, não devem ser tomados como modelos de pessoas com deficiência, o que, se ocorre, só faz ocasionar maiores preconceitos e promoção dos estereótipos. No contexto inclusivo há ainda gente – e gente bem intencionada, aliás – presa às concepções estereotipadas de indivíduos com limitações, defendendo, assim, a noção de que esses vivem em constante processo de superação. Não raro me chegam relatos de pessoas que, ao cumprirem com uma mera obrigação – como apresentar um bom trabalho acadêmico ou cumprir com seus horários no trabalho – tiveram suas ações exaltadas por trazerem consigo o estigma da deficiência. Assim, a deficiência se nos apresenta, ainda, como algo negativo a ser superado, por exemplo, por uma notável inteligência, uma inquestionável índole ou um generoso dom para as artes.


Promover as minorias por via de sua exaltação parece-me não ser um bom caminho, uma vez que, no contato com a realidade, não raro gera frustrações, além de ofuscar os impasses ainda existentes nesse contexto. Nesse 3 de dezembro, o Estadão noticiou que países desfavorecidos concentram 80% de incapacitados (sic), fazendo uma explanação sintética de dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo o Estadão, dos 65 milhões de pessoas que necessitam de cadeira de rodas, apenas um número irrisório tem sua demanda atendida nas regiões mais pobres. A notícia apresenta ainda números alarmantes em se tratando de empregabilidade e políticas de acesso para pessoas com deficiência. Partindo do contexto mundial para a minha vida pessoal, apresenta-se-me a irmã de uma amiga que, fisicamente limitada por ocasião de uma paralisia cerebral, só recentemente, aos 40 anos de idade, conseguiu a cadeira de rodas, a qual, finalmente, proporciona maior conforto para si e sua família. Família essa, aliás, que, não resignada com o diagnóstico médico de que a criança recém-nascida, hoje mulher, não suportaria por muitos dias, enveredou-se por uma constante luta para oferecer-lhe a qualidade de vida da qual é digna, dispondo apenas das deploráveis condições do SUS e de um e outro programa.


Como se vê, as histórias de sucesso trazem consigo ou atrás de si uma longa e dificultosa jornada, sobre a qual todos os setores sociais devem ter plena ciência para que se trabalhe mais arduamente pela atual e pelas próximas gerações de pessoas com deficiência. Avançamos muito, é verdade. De uma época em que usuários da Língua de Sinais eram tidos como criminosos e crianças com deficiência eram sacrificadas, passamos a uma época em que se discute a educação prioritariamente inclusiva, a acessibilidade, a inclusão digital e as tecnologias assistivas. Urge, porém, que avancemos muito ainda, cientes da não equivalência entre “histórias de sucesso” e “vitórias”, dado que uma vitória, no contexto da inclusão, deve significar a aceitação, o respeito e a acessibilidade plena, e para chegar a tanto, o Brasil e o mundo têm ainda um bom caminho a percorrer.


Quanto ao trabalho com pessoas com deficiência, devo dizer do mesmo enquanto um trabalho extremamente humanizador e inquestionavelmente generoso, uma vez que, mais que uma remuneração, proporciona um constante aprendizado e me forma como um ser humano mais humano, envolvido e solidário. Assim, apenas hoje, à beira dos 30 anos, fico a me perguntar onde eu estava, o que estava eu fazendo durante todo esse tempo para não haver me envolvido antes com o edificante trabalho em prol desse grupo do qual eu faço parte. Assim, me torno mais humano a cada vez que, por exemplo, ajudo o meu amigo com limitações locomotoras a se virar no banheiro ou oferecer-lhe o braço para descer uma escada, enquanto o mesmo, fazendo uso da visão perfeita da qual não disponho, fica atento ao atravessarmos uma avenida ou ao aguardarmos o meu ônibus. Assim, agimos um pelo outro e ambos pela construção de uma sociedade mais tolerante, igualitária e inclusiva.
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