sexta-feira, 6 de maio de 2011

Entre a dor e a esperança

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Imagem retirada do site Colloquium.


“A palavra é o meu domínio sobre o mundo”, já disse Clarice Lispector. Alguns anos mais tarde, outra literata sensível e maravilhosa, a Elisa Lucinda, definiria a poesia como uma possibilidade de captar a essência do cotidiano. O poeta seria, para ela, como um fotógrafo, que, com sua câmera fotográfica (a palavra), capta um trecho do correr dos dias, eternizando-o no verso. E assim, dou início a este texto prestando as minhas homenagens às Elisas, Clarices, Drummond’s e tantos outros poetas que utilizaram-se/utilizam-se da palavra para manter vivos todos os momentos, os bons e, claro, os maus, que também fazem parte da vida. E eu, entretido pelos meus draminhas pessoais, assistindo a esse turbilhão de acontecimentos dos quais o nosso tão pequeno mundo tem sido palco, mas deixando tudo isso passar sem a oportunidade de vir até aqui e registrar, em um post que seja, "a vida exterior, com seus teatros, as suas palavras de café, os seus almoços ruidosos e cheios de risos, as suas aventuras picantes, as suas peripécias, as suas alegrias...", como versava Aluisio Azevedo em sua Girândola de amores.


Não são, todavia, exatamente risos, amores e alegrias que têm protagonizado a infindável história da humanidade ultimamente. Somente no século XXI, o nosso planeta já foi palco de inúmeros desastres naturais, dentre os quais, se quisermos nos ater aos mais destrutivos e divulgados, podemos citar o tsunami na Ásia (2004), o Furacão Katrina nos EUA (2005), o terremoto no Haiti (2010) e o mais recente sismo sofrido pelo Japão, acompanhado por um tsunami (2011). Em se tratando de terras brasileiras, podemos mencionar não um terremoto – o que já houve por aqui –, mas a recente tragédia causada pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro, cujas imagens de dor, perda, coragem e solidariedade chocaram todo o mundo, despertando lágrimas e mobilizando voluntários por todo o país.


Culpa da natureza?, da ação humana?, de Deus? Cheguei a acompanhar num fórum virtual sobre a catástrofe no Japão uma discussão entre pessoas mais centradas, indiferentes e fanáticos religiosos, que culpavam o distanciamento do homem das coisas de Deus pelo ocorrido no oriente. Na época do ocorrido na Ásia e no Haiti não foram raras as ocasiões em que ouvi acaloradas discussões sobre o “desprezo” ao Cristianismo em terras orientais como causa das respectivas tragédias. A velha estória de um controverso Deus que ora ama incondicionalmente ora ignora ou mesmo destrói quem não o segue conforme os mandamentos da igreja. E assim, o nome de Deus e as considerações sobre o pecado continuam a servir como subterfúgio para religiosos mais preocupados em apontarem os outros, desviando a atenção de suas próprias misérias, do que em assumirem a responsabilidade sobre as coisas do mundo.


Mas, como diz uma poesia que ainda não escrevi, “em meio às dores, os sabores”. Em tempos de tragédia, é sempre notável a referida mobilização social em prol das vítimas. Ressalta-se, nesse âmbito, as pequenas e grandes ações, como, no caso do Haiti, a mobilização dos governos de vários países. Foi feita até mesmo uma releitura, em espanhol, da canção We Are the World, de 1985, escrita por Michael Jackson e Lionel Richie em benefício da África. Esta releitura, escrita por Gloria Estefan, teve o título de Somos el Mundo, e teve como intuito arrecadar fundos para ajudar as famílias no Haiti. Durante os desastres na região serrana do Rio, resultado de anos de descuido urbanístico, doações de roupas, mantimentos e afins chegaram de todo o país, sendo a Cruz Vermelha a grande mediadora nesse processo, havendo sido ela também a responsável pela criação de um site de busca de desaparecidos no Japão. São apenas alguns poucos exemplos, claro, mas que já dão notícias da existência do sentimento de responsabilidade e cidadania de muitos. Como me disse uma vez o amigo virtual Daniel Mendonça, “volto a crer na humanidade...”


E foi em meio às notícias sobre as conseqüências do sismo no Japão e das deploráveis ocorrências na Líbia que pisou por essas terras o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, circunstância que a presidenta Dilma Rousseff considerou como o encontro histórico entre a primeira mulher presidente do Brasil e o primeiro presidente afrodescendente dos Estados Unidos. E não é que, lendo na web notícias sobre o tema, dei-me com uma curiosíssima charada? “O que é, o que é... um pontinho afrodescendente no quadro dos presidentes americanos?” Bom, humor negro à parte, se estamos falando de pioneirismo, podemos colocar ao lado de Dilma e Obama a belíssima Elizabeth Taylor, carinhosamente chamada de Liz Taylor, que não foi presidente, claro, mas nem por isso deixou de ser uma grande mulher, militante na luta contra a AIDS, primeira atriz a receber um cachê de US$ 1 milhão, ao atuar no poderoso Cleópatra (1963). E assim caminha a humanidade... Morre Liz Taylor alguns dias após a visita de Obama ao Brasil (23/03) e, após ela, o também grande José Alencar (29/03), após uma longa batalha contra o câncer. A proximidade das mortes e a equivalência de idade entre ele e Liz Taylor (79 anos) foi apenas uma coincidência para lembrar ao mundo a falta que lhe faz seres humanos como esses. E nos resta a ressonância das palavras do ex-vice-presidente em uma entrevista concedida à repórter Adriana Dias Lopes, da Veja: “[...] a humildade se desenvolve naturalmente no sofrimento. [...] Uma das lições da humildade foi perceber que existem pessoas muito mais elevadas do que eu [...].Pensando bem, o sofrimento é enriquecedor.”


Como se todas essas perdas fosse pouco, no dia 7 de abril, uma fatídica quinta-feira, um louco entra numa escola em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, e resolve disparar tiros entre os estudantes, matando doze deles e ferindo outros tantos. O caso, que causou grande comoção em todo o país, inclusive lágrimas da presidente brasileira durante discurso, ocasionou maior atenção a questão do bulliyng, dado o fato de ser isso o que, aparentemente, levou o jovem Wellington a cometer tal atrocidade contra os adolescentes da escola na qual ele próprio havia estudado. Bom, a despeito das motivações do assassino, fica a certeza de que ele foi tão vítima quanto os inocentes “que foram retirados da vida tão cedo” pelas suas mãos.


Agora, temos a recente morte do líder terrorista Osama Bin Laden – efusivamente comemorada pelos americanos, embora trate-se, a despeito de qualquer coisa, de um assassinato e embora a Al-Qaeda, embora enfraquecida, permaneça ativa –, e, do lado de cá, no Brasil, o reconhecimento, pelo STF, da união estável entre pessoas do mesmo sexo, reforçando a chama de esperança de milhares de casais homossexuais e militantes na causa LGBT por uma vida mais justa e livre da discriminação e homofobia.


Neste ponto, o meu caro leitor pode estar se questionando sobre o porquê deste post retrospectivo em pleno mês de maio. Bom, eu diria que este post é tanto para compensar a minha negligência ao não escrever aqui sobre temas de tanta relevância como para dizer que os altos e baixos fazem da vida uma balança que ora pende para um lado ora pende para o outro, sendo preciso que cada um de nós, cidadãos, siga rumo ao ideal de igualdade, justiça, inclusão, cidadania e paz. Parece utopia, mas, se assim o parece, é porque vivemos em uma sociedade que banaliza o mal e, de inúmeras formas, nos educa para que desenvolvamos em relação a ele um sentimento de resignação em vez de revolta. Não é utopia a credulidade ativa, assim como não é utopia dizer que os homens e mulheres que fazem ou fizeram história, a notória solidariedade do povo brasileiro, os avanços da justiça rumo a uma nação mais igualitária e as demais questões positivas abordadas neste texto são, na verdade, uma felicidade anunciada, o que nos leva a crer que seja verdade o que diz aquela música dos Titãs: “O mundo é bão, Sebastião”, apesar dos sobressaltos com os quais a mídia nos bombardeia todos os dias. Então, que assim seja.


sexta-feira, 22 de abril de 2011


Esta terra, os astros. o sertão em paz.
esta flor e o pássaro feliz que vês,
não sentirão, não poderão jamais viver
esta vida singular que Deus nos dá.

Foi na terça-feira, 12 de abril do ano corrente. Eu caminhava rumo a minha casa, fazendo aquele costumeiro trajeto, o qual não faço apenas nas raras ocasiões em que me animo a esperar na estação o ônibus que circula pelo meu bairro. Assim, passando ao lado daquela igreja na qual outrora realizei tanta coisa boa e bonita, senti-me, de repente, convidado por aquele hino de paz que os meus ouvidos captaram como a ressonância de um tempo remoto, porém saudoso, bonito, durante o qual existia em mim ainda a ingênua credulidade no ser humano e no ideal de plena felicidade. A despeito da referida chamada, segui o meu caminho ainda por alguns segundos, com passos hesitantes rumo à rua que, se tomada, anularia qualquer possibilidade de eu retornar à igreja, cedendo ao convite que me era feito.

Parei. Retornei, entrei na igreja e, na entrada, fui recebido por duas pessoas, que me saudaram com a “paz de Cristo”, o que me levou a me sentir feliz e acolhido, dado que, a despeito da fé fragmentada que me habita em tempos atuais, sei que quando se deseja a “paz de Cristo” no contexto da igreja católica, está se desejando alguma coisa muito boa e bonita. Em paz, entrei então na reunião da renovação carismática, observando que, para uma terça-feira à noite, continuava atraindo um número para lá de significativo de pessoas. Então, de mochila nas costas e receoso de chamar a atenção, fiquei ali, no fundo da igreja, cantando a música cuja letra eu ainda sabia, escorregando, porém, na coreografia. Eu participara significativamente de eventos e grupos daquela igreja durante alguns anos, havendo sido brusco o meu afastamento, e seria no mínimo constrangedor para mim que conhecidos daquela época me vissem e considerassem ser um possível retorno a minha presença ali. Me encabulava interpretar o papel do filho pródigo, e eu não havia voltado... Tanto que, quando informado por uma senhora da existência de assentos disponíveis, apenas agradeci. Eu não pretendia acomodar-me em um dos assentos. Tampouco pretendia permanecer ali por muito tempo, tanto que não permaneci.

Mas foi bom estar naquela que fora a minha segunda casa durante tanto tempo e rever tantas das pessoas queridas de uma época.

Folheando as páginas que até então se escreveram sobre a história da minha religiosidade, percebo haver oscilado entre a intensa participação cristã, que beirou o fanatismo religioso, e o profundo afastamento, que beira o ateísmo. Nunca, porém, cheguei a algum dos extremos, e, vale observar, não é com lástima nem com prazer que o digo, tais são as tantas dores e sabores experienciados de ambos os lados. A minha trajetória como cristão – iniciada aos catorze anos e impulsionada pelo meu amigo Ricardo – é perpassada por um belo aprendizado sobre humanidade, solidariedade, amor e otimismo que eu quero levar pela vida toda. Então, como julgar mal aquele tempo? Como pensá-lo como “tempo perdido” se a fé tanto me preencheu e tanto bem me fez? Sim, com tudo o que tinha de ruim, com tudo o que tinha de medo, com tudo o que tinha de fuga da homossexualidade, com tudo o que tinha de tentativa de escapar da vida medíocre que eu julgava levar, tudo aquilo era bom. Os encontros do MOJUAC – Movimento dos Jovens Unidos a Cristo – nas tardes de sábado, os encontros da RCC – Renovação Carismática Católica – nas noites de terça, as conversas com Ricardo, os meus planos de tornar-me irmão missionário e ser encaminhado para realizar missões no Equador, como aconteceu com a Margarida (Margarida, cadê você?), e, principalmente, a constante sensação de paz e de correspondência amorosa vindos de um Deus que era todo amor e misericórdia. E, para alimentar a alma, eu lia o texto sugerido pelo Ricardo. “Mesmo que os montes se retirem e as colinas vacilem, meu amor nunca vai se afastar de você (...)” (Isaías 54,10). E traço um breve paralelo entre aqueles tempos e os atuais, nos quais tantas buscas vãs pelo amor me levam a dar de cara com a desumanidade e indiferença dos “éles” e “éfes” da vida, que eram possibilidades nulas naquela relação com Deus.

E me lembro dos pontos engraçados: Rosilda me dizendo que a minha coreografia da música “Heis que faço novas todas as coisas” mais parecia uma tentativa de apanhar mosquito; eu tentando “converter” os meus familiares; eu impressionado com a beleza do Pe. Marcelo Rossi, que tornou-se ícone do catolicismo nos finais dos anos 90; a minha carteira com dezenas de orações que eu acreditava me protegerem etc. Só recentemente, Ricardo, Bruna – que era protestante/evangélica naquela época – e eu nos vimos numa crise de risos incontrolável na mesa de uma pizzaria, lembrando o grande desafio de Ricardo, que, sem saber como salvar a si próprio do inferno, se compadecia com a minha situação, indo ambos desesperados para a igreja. E, por mais de uma vez, eu me confessei com o Pe. Álvaro, temido pela rigidez que lhe era característica, mas que, no contato pessoal, era afetuoso e amigo.

Bons tempos aqueles.

1999, porém, veio para pôr fim àquilo tudo. Foi o ano da minha mudança de bairro, e, entristecido, me vi obrigado a me afastar de tudo. E foi bom, mas eu só viria a saber isso mais tarde, quando, junto de minha irmã, me tornasse catequista na igreja cuja padroeira é Santa Luzia, a protetora dos olhos, o que por si só já era motivo para que Patrícia e eu amássemos tanto aquele ambiente. Desde pequenos tínhamos em nosso quarto um quadro com a imagem da santa. Durante alguns anos, Patrícia e eu, obrigados pela nossa mãe, íamos no dia 13 de dezembro às ruas do bairro no qual morávamos na infância a solicitar, com o quadro em punho, alguma quantia em dinheiro que, mais tarde, mamãe entregaria à igreja. Alguma promessa feita pela minha mãe, a mesma que, ainda hoje, costuma dizer que no período da Quaresma todos os demônios que permanecem presos durante o restante do ano são libertos dos seus grilhões, saindo pelo mundo a espalhar maldade. Bom, seria uma boa explicação para o ocorrido recentemente em uma escola de Realengo, no Rio de Janeiro. A verdade, porém, é que, aparentemente, meus pais, bem como muitos outros conhecidos meus, sempre viveram o catolicismo enquanto tradição familiar ou mesmo obrigação, nunca, no entanto, vivenciando a fé em sua essência como posso dizer que vivenciei.

Privilégio? Não sei. Tanto a Super quanto a Galileu já estamparam suas capas com matérias especiais sobre o tema, discorrendo sobre os incontestáveis benefícios da fé. Tudo o que sei, porém, é que essa vivência me permite conceber a fé não como a condição para a “felicidade”, mas como uma possibilidade. Não critico o ateísmo. Pelo contrário, admiro-o por julgá-lo corajoso, dado que o ateísmo, a meu ver, tem como base a certeza, a convicção da não existência de Deus e de nenhum deus. Parece-me ser tão difícil ter certeza de alguma coisa... Incomoda-me, no entanto, assistir a cenas de escárnio à fé dos outros. Penso que a igreja, enquanto instituição, é digna de severas críticas pelos preconceitos que ajuda a sucumbir, pela vista grossa que faz para certas questões etc. A fé, no entanto, por mais absurda que possa parecer a alguns, é, sim, digna do nosso respeito, principalmente por não raro ser ela tudo o que sustenta algumas pessoas. É tanta gente buscando saída em recursos obscuros. Me alegraria que a fé fosse o recurso apelado por todos. Assim, da mesma forma que o “não crer” é um tanto corajoso, crer também é maravilhoso. É como... sei lá... um mergulho no invisível, no inexplicável. É saltar do ponto mais alto e, incrivelmente, sustentar-se no ar sem o apoio de recursos como paraquedas e afins. Assim, seria equivocado julgar a fé como coisa de seres ignorantes, quando ela é, na verdade, privilégio de seres evoluídos.

Crer é sublime...

Confesso desconhecer os meus reais objetivos com esta postagem, autobiográfica em todas as suas linhas. Apenas queria dedicar uma postagem a este dia importante no qual se medita a paixão de Cristo, e me faz relativo bem relembrar, neste dia, os tempos idos da minha adolescência. Tanta coisa mudou... Ricardo e Bruna vêm frequentando reuniões sobre Espiritismo, tendendo ao Espiritismo Cardecista, conforme relatado ontem pelo Ricardo; Rosilda, Margarida e tantos outros daquela época desapareceram; Patrícia segue sendo católica, mas, creio, com conceitos distintos dos daquele tempo de catequista; e eu... Bom, eu opto por não rotular-me com adjetivos referentes a qualquer religião que seja. Procuro aprender aqui e ali, e não há religião melhor e mais edificante que o constante aprendizado. Há alguns anos tive boas lições de Espiritismo com o meu amigo virtual Gabriel Raphael, as mesmas que tive, ao lado de minha amiga Linda, com Tuco e Michele durante uma longa madrugada de janeiro. Com Rick Friano, outro amigo virtual – intelectual e budista – aprendi que minhas angústias, frustrações e traumas não me colocam em posição inferior e nem superior em relação a ninguém, mas em condições de igualdade em relação a todos. Com Renato e Romerito – católicos e amigos com atuação efetiva na minha vida – aprendo que os preconceitos do meio não me impedem de permanecer no mesmo sendo quem sou. Com o Pedro, ateu convicto e mestre extraclasse, aprendo a honestidade, a humanidade e a solidariedade como valores independentes de religião.

E assim, de todos os ensinamentos, eu – que não posso me enveredar por uma discussão mais complexa sobre Deus por não dispor do conhecimento necessário – sugeriria a consciência do outro e a luta diária pelo bem da humanidade, o que, pelo que sei, são ensinamentos que Jesus, Buda, Chico Xavier e a grande maioria dos líderes religiosos têm em comum. Sugeriria a postura reta e a gentileza dos que educam pela própria convivência. E sugeriria, enfim, que sejamos bons, para sermos felizes, e que sejamos felizes, para que a nossa vida valha a pena.

Em minh'alma cheia do amor de Deus,
palpitando a mesma vida divinal,
há um resplendor secreto do infinito Ser,
há um profundo germinar de eternidade.

Trecho de “Sim, eu quero”. In: Canta Povo de Deus. Belo Horizonte: Equipe Pastoral, 1993, canto 104, p. 38.


quarta-feira, 9 de março de 2011

Sobre Sandy, cerveja e publicidade

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Peça de divulgação da Campanha Devassa 2011, com Sandy Leah.
Imagem retirada de trade news.

Início de ano, verão, calor, Carnaval e cerveja. E têm início as polêmicas peças publicitárias oriundas desse ramo. Mais problemáticas do que as próprias propagandas, porém, é o tratamento destinado a elas por essas terras, que oscilam entre os ideais inquisitórios da Idade Média e o mais exacerbado liberalismo, passando, raras vezes, por algum ponto de equilíbrio. Atualmente, muito se comenta sobre a peça publicitária criada pela Cervejaria Schincariol para divulgação da cerveja Devassa para esse início de 2011, estrelada pela insossa Sandy, a “Garota Devassa que não bebe cerveja”, como tem sido chamada. Como escritor que vem, obviamente, defender um ponto de vista, julgo válido esclarecer, desde já, que não pretendo fazer uma apologia ao consumo de álcool. Pelo contrário, embora beba ocasionalmente, não consigo enxergar a grande vantagem que muita gente vê em beber a ponto de tecer comentários vangloriando o péssimo estado no qual uma bebedeira lhe deixou. Mas, cada um na sua. Voltando à propaganda veiculada, pode-se dizer que as críticas negativas a mesma se concentram em dois pontos: i) a escolha da garota-propaganda, que, considera-se, é incompatível com a imagem da “mocinha com um lado Devassa” que o comercial postula, e ii) o fato de a garota Devassa não aparecer tomando a cerveja durante o comercial e, sabe-se, não gostar da bebida na vida real. No tocante ao primeiro ponto, aliás, li, no YouTube, dois comentários impagáveis postados por dois usuários. O primeiro estabelece uma comparação entre a Sandy fazendo comercial de cerveja e o Zeca Pagodinho fazendo propaganda do Dolly Guaraná ou sobre antitabagismo. O segundo afirma, veementemente, que, pior que a Sandy para esse comercial, só a Madre Tereza.

Brincadeiras à parte, alguns argumentos podem rebater, em parte, essas críticas. Em primeiro lugar, a aparente incompatibilidade da garota propaganda escolhida com a personagem que ela interpreta durante o comercial tem mais a ver com a imagem que se fez da moça ao longo de sua carreira, imagem essa arraigada na mente dos brasileiros, do que com a realidade sobre ela. Tanto é assim que as críticas às peças da cerveja se dividem entre as muito positivas, elogiosas, e as supernegativas. A Sandy está longe de ser desprovida de beleza, como alguns têm dito como argumento contra os vídeos. O problema é que a moça, creio, carrega o estigma do seu primeiro nome, coitada. Explico: consta na biografia da Sandy que os pais dela lhe deram esse nome inspirados pela Sandy Olsson, personagem pura, casta e boazinha de Olivia Newton-John no filme Grease - Nos Tempos da Brilhantina (um dos meus favoritos), de 1978. Não deu outra: a Sandy – cantora e garota Devassa de então – ficou igualzinha à personagem, só não tendo a sorte de “pegar” o John Travolta ainda jovem. Outro ponto é que estamos falando de um comercial, onde tudo é cenográfico. Logo, consumir cerveja durante a propaganda – o que nenhum artista, com exceção do Zeca Pagodinho, faz – ou na vida real não é e nem deve ser requisito para que a moça participe da campanha de uma cervejaria.

Realmente, o que pesou ali foi a interpretação da Sandy. A primeira peça da Devassa veiculada nesse ano – na qual a Sandy, inicialmente sem mostrar o rosto, vai entrando em um bar enquanto o locutor fala ”Todo mundo achava que ela era comportadinha, boa menina, dormia cedo...” – é muito divertida, criativa. E a segunda também, não fosse pelo fato de a Sandy falar durante o comercial. Apesar de nunca haver sido fã, admito que Sandy é talentosa, mas não como atriz. Lembram-se de Estrela-Guia (2001) e afins? Essa negativa qualidade interpretativa, mesclada à imagem que se construiu em torno da moça (ou que ela mesma construiu) ao longo de sua carreira, contribuem para que o telespectador custe a crer que Sandy tenha, de fato, um lado devassa. Na coletiva de imprensa da campanha Devassa, a moça bem que insistiu em falar sobre esse seu “outro lado”, afirmando nunca haver existido aquele lado meigo que, segundo ela, foram construindo a sua volta. Bom, Sandy está passando pelo mesmo que passaram artistas como Angélica, Eliana, Flávia Monteiro etc. Artistas que, por verem ir pelo ralo o seu sucesso com as crianças ou mesmo por quererem desbravar novas terras (só a Xuxa que ainda insiste), empenham-se na criação de uma nova imagem, mais descontraída, desencanada, desinibida. Estilo Devassa, enfim. Bom, tomara que a Sandy consiga, pois, no caso dela, a aparência e voz delicadas não ajudam. Mas, talvez, esse quadro seja revertido quando ela ceder aos insistentes convites da Playboy ou mesmo quando ela, finalmente, soltar um “pum”, ou coisa do tipo.

Peça de divulgação da Campanha Devassa 2010, com Paris Hilton.
Imagem adaptada de Web Luxo.

De qualquer modo, a escolha de Sandy para a campanha foi uma grande jogada do departamento de marketing da Schincariol: o vídeo está sendo exaustivamente assistido e comentado. Não é a primeira vez, no entanto, que uma propaganda da empresa causa rebuliço. Maior repercussão teve a campanha de 2010, que tinha como estrela a belíssima patricinha devassa Paris Hilton. Muito embora não mostrasse nada demais, a propaganda foi acusada de discriminatória e sexista, sendo, enfim, banida da TV por uma investida do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Após o episódio, a Schincariol veiculou uma propaganda ironizando a censura. A peça apresentava os seios do desenho da mulher – que é a logomarca da Devassa – cobertos por uma tarja, informando, no início, que o vídeo com Paris Hilton estava disponível na internet para aqueles que não haviam se ofendido com o mesmo. Bom, vale dizer que, conforme explica a publicitária Silvia Zampar, há uma ampla legislação no tocante à normatização para a produção e veiculação da propaganda. Logo, proibições (ridículas) como a ocorrida no caso da campanha da Devassa estrelada por Paris Hilton não acontecem num estalar de dedos, sendo, sim, resultado de um longo processo. Tudo isso, porém, torna-se uma grande palhaçada quando colocado diante de uma série de coisas realmente ofensivas que se vê dentro e fora da mídia, para as quais vive se fazendo vista grossa nesse país. Ao lado disso, temos a existência de comerciais realmente ofensivos, visto o forte apelo sexual, que não tiveram nenhuma repercussão e, pior, não sofreram a mínima retaliação. Citemos como exemplo um comercial da Kaiser, no qual a simpatia de José Valien Royo (o baixinho da Kaiser) cede lugar aos marmanjos Marcos Palmeira e Murilo Benício, que, em uma praia, conseguem manipular os movimentos de uma mulher, personagem da modelo Pietra Ferrari, através de uma garrafa de Kaiser. Felizmente, há quem tenha a cabeça no lugar, e nós podemos ver isso nas pertinentes considerações de Emílio Conde, que, questionando a postura do Conar, discorre sobre a sutil diferença entre sexualidade e sensualidade nas propagandas, fazendo menção a esse último comercial mencionado.

Peça de divulgação da Campanha Nova Schin 2010, com Ivete Sangalo.
Imagem retirada de axezeiro.com.

Antes disso, porém – pasmem –, a Schincariol já havia se metido em problemas. Entre esses, temos uma engraçada peça produzida para divulgação do guaraná Schin, onde um “primo chato” levava os parentes aos nervos ao tratar, levianamente, de temas delicados como a adoção. Não vejo quem pudesse se ofender com a propaganda, razão pela qual achei também ridícula a proibição. Defenderia, porém, a criação de um órgão que proibisse a comercialização do produto, de tão porcaria que é. Não a veiculação da peça publicitária...

Realmente grave, porém, foi o comercial veiculado pela mesma empresa durante o verão de 2005. Questões concernentes ao Estatuto do Idoso, criado em outubro de 2003, estavam ainda em voga. Finalmente os idosos tinham uma legislação mais consistente para assegurar-lhes os direitos. O tema havia sido, inclusive, seriamente abordado no folhetim das oito Mulheres Apaixonadas (2003). Nada disso, porém, foi pensado pela Schincariol de modo a desistir da produção de um comercial de gosto duvidoso, no qual dois jovens fogem desesperados de uma multidão de velhinhas sedentas de sexo, até pularem dentro de um freezer da Nova Schin e irem parar em uma praia repleta de jovens mulheres, entre as quais destacava-se o mulherão Ivete Sangalo, garota da marca há mais de dez anos, que encerra a propaganda com o inteligentíssimo slogan da campanha: "Quanto mais nova, mais gostosa". Recordo-me de, antes de ler qualquer coisa a respeito, haver me sentido mal ao assistir a propaganda, que parecia-me de mau gosto, reduzindo a melhor idade a uma deplorável fase na qual reina a carência por sexo com pessoas jovens. Ledo engano... ou, melhor dizendo, preconceito idiota na propaganda de uma cerveja que até hoje se auto intitula “Nova” quando é, na verdade, mais velha que as senhoras que aparecem no comercial.

Eu, que na época não tinha acesso à internet e era bem mais desligado dos acontecimentos do mundo, só fui saber que muita gente compartilhara do meu desconforto diante da peça publicitária quando fui prestar um vestibular na PUC Minas em meados de 2005 (no qual fui aprovado. Oba!) e um dos textos da prova de Língua Portuguesa tinham como temática esse lamentável episódio. Louvável, dessa vez, a atitude do Conar, cujas ações levaram à retirada do comercial do ar. Destaque para a bela carta-denúncia enviada ao Conar pelo pesquisador Pedro Paulo Monteiro, que foi um dos primeiros a repercutir o caso, e para o não menos pertinente e-mail de Delma Gama, publicado na imprensa, direcionado à Ivete Sangalo. Entre inúmeras considerações plausíveis, a autora da mensagem diz o seguinte: “Fiquei com pena de você e dos rapazes que correm até encontrar o freezer cheio de cerveja, porque a própria propaganda diz a fórmula para não envelhecer: morrer jovem!”.

É pena que a Ivete, pessoa a quem eu, ao lado de tantos, admiro pelo talento e pelo caráter que aparenta ter, haja se envolvido com tudo isso. Duvido que em algum momento a sua atuação no comercial haja sido maldosa, o que não lhe tira, claro, a responsabilidade sobre o mesmo. Bom, mas é um caso semelhante ao da Sandy, minha gente. Da mesma forma que essa não se importa se o fato de ter a sua imagem vinculada a uma marca de cerveja pode induzir jovens fãs que cresceram junto com ela a beberem, a Ivete também não se preocupou com os danos que o comercial da Nova Velha Schin poderia causar. É trabalho, caro leitor... e há milhões de reais envolvidos. Seria maravilhoso que a responsabilidade social fosse uma prioridade de todos os artistas, mas, sejamos compreensivos: se assim fosse, os lucros das estrelas seriam bem menores... Logo, pro inferno com a responsabilidade social. Quanta a essa ideia de propagandas induzirem pessoas a isso ou àquilo, eu sou meio contrário, mas confesso não ter uma opinião formada sobre. Só penso que, se nossos jovens estão se deixando influenciar por peças publicitárias a ponto de adquirirem hábitos negativos como o consumo de álcool, é sinal de que urge investimento pesado em dois pontos: criação e educação.

Bom, fica como consolo a divertida propaganda da Nova Schin que foi ao ar nesse início de ano: sem apelação, Ivete Sangalo recebe um grupo de artistas (selecionados com base em não sei que critérios) para uma feijoada com cerveja em sua casa. Todos interagindo na mais falsa felicidade. Ficou legal, mas nenhum comercial e nenhuma cerveja ganham da Bohemia, que, entre as suas pouquíssimas (e belas) peças publicitárias que já vi na mídia, impressionou com um delicado comercial regado a texto de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Se todos fossem
Iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar, a sorrir, a cantar, a pedir
(...)

Bom, mas se podemos tirar algo de realmente bom dessa cervejada toda, relembremos um válido comentário da Sandy, em uma entrevista concedida antes de toda essa história de Devassa. “...eu não gosto dessa sensação de perder o controle, de você não... não poder controlar o que você fala, o que você pensa, o que você faz, a coordenação do corpo...”. Portanto, leitor, saboreie com moderação e, se for dirigir, não beba (risos). Bom, e para não passar de cervejas para chinelos, eu não vou nem mencionar aquela propaganda da Havaianas que também foi proibida por apresentar uma avó incentivando a neta ao sexo descompromissado com o Cauã Reymond, porque é hipocrisia demais pra minha cabeça. O povo brasileiro tem cada uma, viu? Afinal, todo mundo tem um lado descontraído, desinibido e desencanado, ora. Exceto a Sandy, claro.

Referências:

ALFETUNES. Comentário sobre o vídeo Comercial Sandy Devassa | Todo mundo tem uma lado Devassa. In: YouTube. Criado em: 01 mar. 2011. Comentário em: 02 mar. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

ANÔNIMO. Estrela-Guia (telenovela). In: Wikipédia. Acesso em: 09 mar. 2011.

ANÔNIMO. Mulheres Apaixonadas. In: Wikipédia. Acesso em: 09 mar. 2011.

ANÔNIMO. Sandy. In: Wikipédia. Acesso em: 09 mar. 2011.

ARONOVICH, Lola. Velhinha incentivando sexo em comercial da Havaianas? Não pode. In: Escreva Lola Escreva. Criado em: 23 set. 2009. Acesso em: 08 mar. 2011.

BRASIL. LEI No 10.741. 01 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Brasília, 2003.

CAMAROTEDEVASSA. Sandy Devassa. In: YouTube. Criado em: 01 mar. 2011. Acesso em: 09 mar. 2011.

CINEPLAYERS. Grease - Nos Tempos da Brilhantina. In: CinePlayers. Acesso: 09 mar. 2011.

CHRISRESENDE. Kaiser (Propaganda). In: YouTube. Criado em: 12 ago. 2008. Acesso em: 08 mar. 2011.

CONDE, Emílio. Oferecer a Genitália o Conar deixa ! Dançar sensualmente o Conar não deixa !. In: Os consumidores – Observatório das relações de consumo. Criado em: 07 fev. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

DIRETORDEARTEDAETOS. Devassa - Após ser censurada pelo CONAR. In: YouTube. Criado em: 02 mar. 2010. Acesso em: 08 mar. 2011.

DOUGLASFERT. A verdade sobre Sandy Devassa. In: YouTube. Criado em: 02 mar. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

GUSTAVO1995FONSECA. Havaianas Fit - Na Integra (COMERCIAL CENSURADO). In: YouTube. Criado em: 28 set. 2009. Acesso em: 08 mar. 2011.

NOVASCHIN. Nova Schin – Feijoada. In: YouTube. Criado em: 28 jan. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

OQUENDOP. NEW - Caminhão de Devassa - Com Paris Hilton e Luma Oquendo 27-08-10. In: YouTube. Criado em: 28 ago. 2010. Acesso em: 08 mar. 2011.

PENTEADO, Cláudia. “Sandy é um nome que não poderia passar na cabeça de ninguém”. In: Consumo e Propaganda. Criado em: 01 mar. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

PORTAL na categoria 'Artigos'. Schincariol x “velhinhas” Pesquisadores do Portal em ações efetivas contra a discriminação. In: Portal do Envelhecimento: sua rede de comunicação e solidariedade. Criado em: 26 ago. 2010. Acesso em: 08 mar. 2011.

PORTAL na categoria 'Geral'. Propaganda de Ivete para a Schin é uma agressão aos idosos. In: Portal do Envelhecimento: sua rede de comunicação e solidariedade. Criado em: 01 set. 2010. Acesso em: 08 mar. 2011.

SANDYLEAHH. Sandy Comercial Devassa campanha 2 Conga la conga (Oficial). In: YouTube. Criado em: 03 mar. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

SPROUSSE13. 'Comecial Cerveja Devassa (Com Paris Hilton). In: YouTube. Criado em: 27 fev. 2010. Acesso em: 08 mar. 2011.

THYSIL. CERVEJA BOHEMIA POESIA. In: YouTube. Criado em: 29 ago. 2007. Acesso em: 08 mar. 2011.

VIVIGASPA. Comentário sobre o vídeo Sandy – Todo mundo tem seu lado Devassa. In: YouTube. Criado em: 01 mar. 2011. Comentário em: 08 mar. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

ZAMPAR, Silvia. Comercial do refrigerante Schin censurado pelo CONAR. In: TuDiBão. Criado em: 18 jan. 2011. Acesso em: 08 mar. 2011.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Sobre transexualidade, travestismo, mídia e polêmica


Ariadna Thalia Arantes.
Imagem retirada de Tudo sobre BBB.

Não fazia meia hora que terminara a primeira eliminação do Big Brother Brasil 11 e os fóruns de discussão já estavam repletos de postagens que ou lamentavam ou comemoravam a saída de Ariadna, a primeira transexual a participar da versão brasileira do reality show. A carioca, escolhida pelo voto de Cristiano, primeiro líder do jogo, saiu da casa com 49% dos votos. Ruim para ela, ruim para a Globo, ruim para a torcida de Ariadna e, talvez, para a comunidade LGBT, que (sem generalização, claro) tinha a permanência de Ariadna como propícia a reflexões sobre a questão da transexualidade. Não se trata de uma certeza, obviamente, mas acredito, sim, que a “convivência” dos telespectadores com tipos geralmente discriminados seja benéfica, uma vez que vê-los durante 24 horas, em seu estado natural, pode invalidar alguns mitos e estereótipos.

Desconheço se era positivo ou negativo o comportamento de Ariadna dentro da casa. Nas poucas “espiadinhas” que dei, interessado na presença dela, não percebi comportamento diferenciado em relação aos demais participantes. Ao menos nada realmente gritante, afinal, os telespectadores do BBB devem estar acostumados a obscenidades, sem falar naqueles que assistem o programa justamente à procura disso. Tudo isso, portanto, dá-nos alguma base para ponderar que, ao ser eliminada do reality show, Ariadna pode haver sido vítima da intolerância que reina em terras tupiniquins. Formado o paredão – através da escolha de Rodrigo, que, ao atender o Big Fone, escolheu Lucival; através dos seis votos que os demais participantes deram para Janaina e através da indicação do líder Cristiano, que escolheu Ariadna – Janaina fez uma observação válida: "Só os rejeitados pela sociedade". Dizendo isso, a moça contemplava apenas o fator racial e social, mas muitos de nós, aqui do lado de fora, consideramos também a presença de um homossexual e de uma transexual naquele trio de “rejeitados”. É mais que possível, sim, que a saída de Ariadna seja consequência de preconceito, afinal, num país onde os telespectadores se mostram apavorados diante da possibilidade de assistirem a um beijo gay em horário nobre, não surpreende que não queiram se deparar, diariamente, com um “ex-homem” trocando carinhos com os colegas de confinamento. Imaginem então permitir que esse participante seja o ganhador do prêmio de 1,5 milhão de reais...

Nádia Almada. Imagem retirada de Virgin Media.

Caso diferente ocorreu na versão inglesa do programa, no Reino Unido, que, em sua quinta edição, teve como ganhadora do prêmio a transexual portuguesa Nádia Almada, que, aos poucos, foi conquistando a simpatia dos telespectadores. Tal como Ariadna parecia pretender fazer, Nádia nada contou sobre sua condição aos demais participantes do reality show, de modo que a mesma fosse sabida apenas pelos telespectadores. Não sei o que aconteceu por aquelas bandas, mas sei que por aqui muito se especulou sobre se Ariadna devia ou não contar que, em um passado distante, fôra Thiago. É, de fato, um assunto complexo. Embora por um lado contar pudesse ser interessante e até mesmo o mais honesto – dado que, enquanto para muitos rapazes da casa provavelmente não fizesse diferença, outros, sabendo, poderiam preferir evitar certos contatos físicos –, por outro lado, sabe-se que o transexual é aquele que, independente de cirurgia de redesignação sexual, desde sempre sabe-se do sexo oposto àquele com o qual nasceu. Logo, não entrar na casa espalhando isso aos quatro cantos pode haver sido uma decisão natural da cabeleireira Ariadna.

Há quem diga, porém, que o silêncio sobre o assunto, mais que uma decisão de Ariadna, foi uma imposição da Globo. Alguns consideram que a moça haja assinado um contrato com a emissora comprometendo-se a não contar sobre sua transexualidade. Bom, não creio que a emissora chegue a tanto, mas tenho como certo que a sua preferência fosse que a carioca permanecesse no programa chegando a se envolver com algum/alguns dos rapazes. Objetivo: gerar polêmica, deixar os outros em maus lençóis, ganhar audiência. Duvido que haja quem não saiba que os participantes desse tipo de programa são escolhidos a dedo, de modo a termos em todas as suas edições o belo rapaz, a linda moça, o gay, o ex-ator pornô, o sem sal etc. Nada melhor que a diversidade confinada para gerar uma boa polêmica. Programas como BBB nada ensinam, em nada contribuem para o desenvolvimento cultural dos telespectadores, apelando sempre para a vulgaridade. Se programas como esse, no entanto, são tudo o que temos como líderes de audiência, a saída de Ariadna pode, sim, ser uma perda lamentável. Como bem disse Adriana Galvão, presidente do Comitê da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da Ordem dos Advogados de São Paulo, a permanência de Ariadna no programa, tal como as situações provocadas pelo seu silencio em relação a sua transexualidade, podiam revelar como as pessoas lidam com a diversidade sexual. "Isso pode mostrar até que ponto as pessoas são homofóbicas ou não", disse a advogada.

De uma forma ou de outra, talvez a breve estadia de Ariadna tenha nos dado já uma boa base para saber da profunda ignorância das pessoas sobre o tema da transexualidade e deduzir “até que ponto as pessoas são homofóbicas”. Enquanto alguns brothers da casa juram não ter percebido nenhuma saliência na peça inferior do biquíni da moça e outros acreditam que a mesma se chame Ariel na “vida real”, devido a uma metáfora utilizada por Pedro Bial durante o discurso de eliminação, João Gabriel, o ex-marido da transexual, é alvo de preconceito na rede social Orkut, em uma comunidade oficial de uma torcida organizada do Vasco, da qual faz parte. A revolta dos torcedores se deve ao fato de João Gabriel haver assumido para a imprensa haver vivido um relacionamento com a ex-BBB, o que, na visão deles, mancha a imagem do time. Bom, isso reproduz bem o que é o preconceito: ou você se adéqua à maioria para fazer parte do grupo ou você está fora do grupo.


Andréia Albertine. Imagem retirada de Val Cabral.

Aliás, essa coisa de futebol e transexualidade me faz lembrar nada menos que o caso Ronaldinho, hoje esquecido, para a sorte dele, mas nunca realmente esclarecido de modo a não deixar dúvidas, o que agora pouco importa, já que a grande maioria nem se lembra mais do assunto e dado que o próprio travesti Andréia Albertine – morto na madrugada do dia 9 de julho de 2009, vítima de uma meningite que complicou-se com uma pneumonia – retirou todas as acusações que fizera contra Ronaldo uma semana após a confusão. Obviamente, isso pouco ou nada tem a ver com Ariadna, que, vale ressaltar, é transexual e não travesti. Não obstante, esse e tantos outros casos servem para discutir o imenso atraso cultural e intolerância de muitos dos brasileiros. Recordo-me de, quando do ocorrido, haver participado de conversas sobre o tema, fosse em fóruns virtuais ou rodas de amigos, e haver me deparado com torcedores angustiados. E a angústia, bem me lembro, se dava não pela possibilidade de o jogador ser um desonesto e haver se negado a pagar o que havia combinado com Andréia, mas pelo fato de o seu jogador, outrora chamado fenômeno, haver mantido relações com um travesti, como se isso anulasse os seus méritos como grande futebolista.

Assuntos como homossexualidade, transexualidade, travestismo e correlatos precisam ser abordados de maneira realmente séria e não estereotipada pela mídia. O portal Hora de Santa Catarina, aproveitando o caso Ariadna, chegou até mesmo a disponibilizar em sua página uma breve explicação sobre essas e outras terminologias. Entender as coisas é um bom passo para não termos preconceito. Até então, porém, travestis e transexuais – salvo raras exceções como Fernanda Carraro e Letícia Venturini, que deram um show de interpretação, dublagem, beleza e criatividade no programa Gente que brilha, exibido pelo SBT entre outubro de 2004 e abril de 2005 – só tiveram destaque na mídia devido a polêmicas.


Miguel Falabella.
Imagem retirada de Canal da Notícia.

Foi Miguel Falabella quem, criativo e revolucionário como sempre (ou quase sempre), promoveu uma discussão interessante na aparentemente extinta série A Vida Alheia, referindo-me aqui ao episódio “O direito de cada um”, que foi ao ar em 13 de maio de 2010. Nesse episódio, o jogador de futebol Balu (Dudu Pelizzari) é visto entrando em um motel com o travesti Doris (Bruno Kimura), tornando-se, assim, alvo da revista de celebridades “A Vida Alheia”, que estampa em sua capa a sensacionalista chamada “Balu flagrado no motel com travesti”. O interessante nesse episódio – ou o “surpreendente”, como bem disse Falabella em entrevista à Folha – é o fato de o fictício jogador Balu, em entrevista a um estranho programa (aparente programa de fofocas comumente exibido à tarde), dizer que é maior de idade, faz bem o seu trabalho como jogador e está no direito de escolher quem bem lhe interesse para levar ao motel. Nesse episódio, o travesti Doris termina ganhando fama, sendo novamente capa da “A Vida Alheia”, dessa vez de forma positiva. Assim, a revista acabou sendo digna dos cumprimentos do jogador.

Quando perguntado se o episódio era uma referência clara ao “Ronaldo Fenômeno”, Falabella responde que “Não é o Ronaldinho, é apenas uma inspiração como várias inspirações que a gente pega e mistura. Mesmo porque os nossos escândalos não chegam nem perto dos ingleses e dos americanos. Isso de originalidade é uma bobagem. Todas as histórias já foram contadas. O negócio é como contá-las e o frescor de diálogo, por isso que a gente aposta no diálogo que traga um ruído novo da TV aberta. Pelo menos é a proposta”.

Bianca Soares e Alexandre Frota. Imagem retirada de Quem Acontece.

Programas mais sofisticados como A Vida Alheia, porém, continuam perdendo para programas como BBB ou versões mal sucedidas como Casa dos Artistas, reality show exibido pelo SBT entre 2001 e 2002. Em sua quarta e última edição, intitulada “Casa dos Artistas 4: Protagonistas de Novela” e que não tinha muito a ver com as edições anteriores, o programa teve como participante a travesti Bianca Soares, o que, penso, não gerou grande polêmica devido à baixa audiência do programa. Bianca, porém, foi a segunda eliminada do programa, por razões que não conheço bem, mas penso ser pelo seu desempenho ruim nos testes. É uma pena, pois a proposta do programa era lançar um novo talento que protagonizaria uma telenovela do SBT, e seria inovador ver uma travesti protagonizando uma novela. Por outro lado não há muito problema, já que nem a “grande ganhadora” Carol Hubner chegou a protagonizar a novela que lhe fora prometida...

Bom – tomando emprestada a expressão usada por Ariadna, que disse ontem em entrevista no Projac que deseja que “as portas se abram” para ela – parece que poucas portas se abriram para Bianca Soares além das portas da Brasileirinhas, produtora brasileira de filmes pornográficos, que se escancararam para ela. A moça, além de protagonizar alguns filmes da produtora, chegou a fazer cenas de gosto duvidoso com o brutamontes Alexandre Frota.

Acabamos por falar de pessoas bem diferentes entre si, mas que, infelizmente, na minha opinião, têm algo em comum: tanto Ariadna como Nádia e Bianca chegaram a se prostituir antes da "fama". Foi essa, aliás, uma das revelações “bombásticas” feitas por Ariadna durante a sua estadia na “casa mais vigiada do Brasil”, o que, talvez, pode haver sido desfavorável a sua permanência no programa. É difícil tocar em temas como a prostituição, até porque estamos em uma sociedade dividida entre aqueles que a condenam e aqueles que a defendem com o argumento de ser ela uma profissão como qualquer outra, e uma profissão digna. Será? Bom... complexo, e isso envolve inúmeras questões, inclusive questões morais, as quais não mencionarei aqui para não parecer um moralista chato, até porque não é esse o tema desta postagem. Enfim, desconheço as razões que levaram as pessoas mencionadas a recorrerem à prostituição, pois são casos específicos. Mas é certo – e lamentável – que, em sua maioria, os transgêneros recorram a esse tipo de trabalho não por prazer, mas pela falta de oportunidades. No contexto brasileiro temos visto alguns tímidos avanços nesse sentido, mas a falta de entendimento sobre a condição dos transgêneros ainda os condena ao comércio do corpo.


Roberta Gambine Moreira, a Roberta Close. Imagem retirada de Veja.

Obviamente, um artigo sobre transexualismo, mídia e polêmica não poderia deixar de mencionar a musa Roberta Close, pessoa a quem eu tenho cá críticas a fazer, mas que é, a meu ver, digna de grande admiração pela luta de décadas pelo seu reconhecimento legal como mulher. Ao lado dela, temos tantos outros “transexuais e transgêneros que de algum modo trouxeram benefícios para a sociedade [LGBT}, seja lutando em favor das minorias, seja como pessoas públicas que se destacam artística, cultural, científica ou politicamente”, conforme o disposto no site Wikipédia, que apresenta uma lista bem completa de transexuais e transgêneros publicamente conhecidos.

Resta-nos agora torcer pelo futuro de Ariadna – que, esperamos, montará seu centro de estética a despeito de não haver recebido o premio – e por tantas outras pessoas que, como ela, têm um histórico de luta, exclusão e intolerância. E, claro, torçamos por mídias melhores, que contribuam de fato para que futuras Ariadnas, Biancas, Nádias, Robertas e tantas outras tenham uma vida mais digna e com mais e melhores oportunidades nessa sociedade brasileira que, amedrontada e preconceituosa, insiste em permanecer na ignorância sobre temas que, como esse, vivem a lhe bater à porta.



Referências:

Anônimo. Anexo: Lista de transexuais e transgêneros publicamente conhecidos. In: Wikipédia. S.d.

ANÔNIMO. Curiosidades sobre Big Brother. In: O guia dos curiosos. S.d.

ANÔNIMO. E Deus criou a mulher. Ou quase. In: JC OnLine. Recife, 19 jun. 1998.

ANÔNIMO. Morre travesti que se envolveu em polêmica com Ronaldo. In: FOLHA.com. 09 jul. 2009, 23h46.

ANÔNIMO. No embalo da Ariadna, entenda o que é um transexual. In: Hora de Santa Catarina. 19 jan. 2011, 13h11.

BRANDÃO, Lívia. Papo sobre Ariadna, saída do armário e pegação no 'BBB 11'. In: BigBlog. 19 jan. 2011, 12h30.

CIMINO, James. "A realidade é bem mais dura", diz Miguel Falabella sobre "A Vida Alheia". In: FOLHA.com. 18 jul. 2010, 07h44.

MAIA, Maria Carolina. Eliminação de Ariadna coloca o BBB11 no paredão. In: Veja. 19 jan. 2011, 17h32.

MIRZEIAN, Clarissa. Primeiro Paredão do BBB 11 contempla a diversidade. In: E-Band. 17 jan. 2011, 13h55.

REDAÇÃO. “BBB 11": "Só os rejeitados pela sociedade", diz Jana sobre Paredão. In: JC Online. 18 jan. 2011.

S.C.C. com agências. Nádia Almada enfrenta grave depressão. In: Correio da Manhã. 05 set. 2005.

SANTOS, Eliane. Ex-marido de Ariadna, do 'BBB 11', sofre retaliação de torcida de futebol no Orkut. In: ego. 12 jan. 2011, 21h26.

SOUZA, Richard; AMARAL, Luiz Cláudio; COSTA, Fabrício. Ronaldo: confusão com travesti no Rio. In: globoesporte.com. 29 abr. 2008, 08h46.

VALLADARES, Ricardo. Estranho no ninho. In: veja on-line. Edição 1868. 25 ago. de 2004.

ZYLBERKAN, Mariana. Globo na mira de polêmica. In: Diário de S. Paulo. 13 jan. 2011, 18h02.