sábado, 21 de fevereiro de 2015

Cinquenta Tons de Cinza


Eu estava com os olhos vidrados no telão. O cinema estava lotado, e não era por menos, visto se tratar da quinta-feira seguinte à tão esperada pré-estreia. A minha volta, amigos desapontados como resultado da comparação entre o filme e o livro que havia lido com voraz dedicação. Na trama, é chegado um momento de clímax intenso, quando, de repente... as letras do cast surgem, Beyonce começa a cantar e as luzes do cinema são acesas. O filme havia acabado. E foi assim a minha primeira experiência com o longa Cinquenta tons de cinza no último dia 12: frustrante. Não obstante, eu sentia faltar alguma coisa. Eu sentia ser precipitado avaliá-lo naquele momento, quando a influência dos meus amigos, ávidos leitores da trilogia, tendia a ser determinante. Ademais, eu não havia concluído a leitura da obra, a qual dera início há poucos dias antes da sessão de cinema com a intenção primeira de redigir o presente. Assim, nada de comentários depreciativos sobre o filme nas redes sociais. Não ao menos até que eu concluísse a leitura da obra, o que consegui nos primeiros minutos de uma Quarta-feira de Cinzas (qualquer semelhança é mera coincidência). E o inesperado aconteceu: a minha intenção primeira de redigir uma crítica comparativa sobre livro e filme se converteu em uma necessidade de focar o livro, considerando a “importância” inferior do filme apesar do estardalhaço que o mesmo vem causando.

Já chegamos, a propósito, a um ponto-chave para esta discussão: uma análise de fato imparcial de ambas as obras só é possível sem o conhecimento prévio das mesmas. O problema, porém, é que isso se tornou inviável diante do BOOM que o livro fez desde que lançado por aqui, de modo que, ouvindo um e outro comentário, eu já era capaz de definir o texto de E L James: romance erótico sobre garota inocente que recebe a proposta de ser objeto das fantasias sadomasoquistas de jovem bonitão ricaço. É isso. E, diante de uma definição tão sucinta, convém lembrar que está em pauta nada menos que a chamada “literatura de massas”.

Faz-se necessária uma explanação acerca do que chamo de literatura de massa, no que serei o mais breve possível, sem me enveredar por teorias complexas e desnecessárias a este texto. A literatura de massa – também chamada por alguns críticos de subliteratura e literatura marginal – se opõe a dita “literatura culta”, da qual se diferenciaria pela sua qualidade estética, temática etc. Em linhas gerais, a literatura de massa apresenta uma estrutura simples, linear, de modo a deixar claros para o leitor o início, o meio e o fim da trama, bem como a dualidade entre “mocinhos e vilões”. Essa modalidade literária busca conduzir as emoções do leitor, geralmente com um desfecho catártico precedido pelo clímax, e aborda temas universais com tons ficcionais, sendo esses temas não raro determinados e encomendados previamente pela editora. Ou seja: existe todo um trâmite mercadológico por trás da literatura de massa, do que vivem os autores que escrevem sob encomenda. Naturalmente, o sucesso é uma finalidade em ambos os casos. Não obstante, o reconhecimento deve vir de públicos e instituições específicos, sendo tal reconhecimento uma representação concreta das fronteiras entre o culto e o marginal, o que vai ser estudado no âmbito acadêmico e o que vai ficar para o gosto popular.

Quando E L James debruçou-se sobre a criação do que hoje chamamos de Cinquenta tons de cinza, ela não estava a dar um tiro no escuro. Eis a história anterior à estória: o sucesso da trilogia já lhe surgia como uma probabilidade diante das proporções que uma fanfiction de sua autoria (Master of the Universe) sobre a saga Crepúsculo vinha tomando na internet. Aos poucos, a historia assumia um tom notoriamente erótico, o que levou James a mudar os nomes dos personagens e publicar a história em um site próprio. Portanto, pasmem: são os jovens Edward e Bella que inspiraram os lascivos Christian e Anastasia, e daí surgia Cinquenta tons de cinza..

1 – O livro


Devo confessar que, quanto mais pessoas à minha volta falavam sobre Cinquenta tons de cinza, menos disposição eu tinha para a sua leitura, partindo do princípio (relativamente equivocado, depois descobri) de que, com fãs por toda a parte – inclusive onde a leitura jamais estivera entre as atividades habituais –, não poderia haver ali algo além do chulo e do simplório, o que, dentre outras características, o definiria como literatura de massa.

O preconceito, no entanto, não é e nunca será uma base positiva para quaisquer conclusões. Assim, curioso, procurei saber um pouco sobre a obra, deparando-me com um vídeo criado pelo jovem vlogueiro Felipe Neto, sempre impiedoso e bem fundamentado em suas opiniões. Vale muito a pena assistir. Felipe Neto é conhecido (e famoso) pelas suas opiniões certeiras e recheadas de humor e palavreado chulo, o que não foi diferente em sua crítica ao livro Cinquenta tons de cinza, na qual, sem se colocar contra as práticas sadomasoquistas propriamente ditas, ele foca as premissas improváveis, o grau de submissão da protagonista e o perigo de as leitoras se identifiquem com Anastasia Steele. Parecem-me pontos interessantes para abordarmos aqui. Vejamos.

1.1 – Premissas

1.1.1 – A protagonista: Anastasia x Anastasia

A história parte de uma premissa de fato um tanto improvável. Temos uma protagonista prestes a se formar em Literatura Inglesa, trabalhadora, que dirige o seu próprio carro e que divide o quarto com Katherine Kavanagh, sua amiga descolada e de personalidade forte. Anastasia é, portanto – ou ao menos deveria ser –, uma mulher independente. A sua personalidade, todavia, se contrapõe a tudo isso: Anastasia é desengonçada, descuidada quanto à aparência, excessivamente tímida e, aos vinte e um anos, é virgem e só beijou dois homens na vida. Ou seja: o estilo de vida da protagonista em nada combina com a sua personalidade, e esta, por sua vez, em nada combina com tudo a que ela será capaz de se submeter ao longo da narrativa.

Neste ponto, precisamos retomar a nossa discussão inicial sobre a literatura de massa. O objetivo aqui é vender o máximo possível, o que demanda a criação de uma personagem que reúna em si qualidades universais do universo feminino, sendo a maioria delas oriundas do senso comum e do fato de ainda vivermos em uma sociedade patriarcal. É mais ou menos o mesmo recurso do qual se valem as telenovelas para promover as minorias, despertando a simpatia do público pelo homossexual bonzinho, pelo deficiente faz-tudo, pela garota de programa super honesta etc.

Ou seja: parte-se do estereótipo para se alcançar objetivos diversos: promover a discussão sobre determinado tema, postular uma determinada ideia etc. Em Cinquenta tons a intenção parece ser criar a identificação entre leitor e protagonista, sendo as mulheres, adolescentes e jovens, leitoras em potencial. Ademais, E L James precisava preparar o terreno para a estória que pretendia contar: quanto mais insegura Anastasia parecesse e quanto mais poderoso e frio fosse Christian Grey, melhor seria o efeito da relação entre eles sobre os leitores, sobretudo no campo sexual.

1.1.2 – “Aparência? Riqueza? Poder?”

Comumente, a literatura de massa visa a conduzir a imaginação do leitor rumo ao consumo, o que não surpreende se considerarmos o capitalismo como o berço da literatura de massa. E isso chega a ser gritante em Cinquenta tons. Anastasia resiste a todas as investidas do seu velho amigo José Rodríguez, apaixonado por ela, e Paul Clayton, irmão caçula do seu chefe. Não obstante, após uma mera entrevista, ela se interessa subitamente por Christian Grey, a quem ela jamais vira antes. Neste ponto, é importante notar um importante recurso utilizado pela autora com vistas a nos conduzir a uma determinada idéia sobre sua heroína. Porém, já aviso: trata-se de uma tentativa fracassada. Vejamos.

Anastasia, a narradora da trama, desde o princípio apresenta ao leitor uma imagem negativa sobre si própria, e, por razões já explicadas aqui, a baixa autoestima como uma característica marcante sua se fazia necessária à trama. Então, objetivando mostrar ao leitor que a opinião de Anastasia sobre si mesma não corresponde à realidade, ela apresenta dois personagens inúteis à trama: José e Paul, ambos interessados em Anastasia. Isso, no entanto, não resolve muito, visto que, ao longo da narrativa, a narradora se mostra tão tola e submissa que a imagem negativa sobre ela prevalece. E, quanto aos dois personagens mencionados, eles só nos fazem lembrar que a protagonista parece não ser muito inclinada a se relacionar com pessoas como ela, optando pelo grande e controlador empresário, mesmo que este não passe de um estranho que pretenda submetê-la a situações degradantes, e não estou me referindo às práticas BDSM. A propósito, até mesmo a sua amiga, Kate, em determinado momento é descrita como uma pessoa que freqüentou os melhores colégios, viajou a vários lugares etc. Logo, temos uma idéia sobre os gostos de Anastasia em se tratando de pessoas.

Por mais que a narradora, em algumas ocasiões, se mostre relativamente resistente aos exagerados presentes de Christian, ela não deixa de vislumbrar, por exemplo, o fato de ele ter um heliporto sobre o prédio onde reside. Ela não demonstra realmente se importar com o fato de Grey lhe presentear com um automóvel novo, havendo vendido o fusca que, por haver pertencido à sua mãe, devia ter valor afetivo para ela. Ao viajar para a Geórgia a fim de passar uns dias com a mãe e se dar um tempo longe de Christian Grey, a personagem é surpreendida no momento do check-in por mais um presente do rapaz: ele providenciara a sua viagem na primeira classe, e ela não se abstém de enaltecer os benefícios de se viajar nessa modalidade, o que “é muito mais civilizado”, segundo ela. Ou seja: Christian vai comprando Anastasia no decorrer da narrativa, e isso é óbvio por mais que a narrativa apresente elementos que procurem nos convencer do contrário. Isso, naturalmente, não seria problema se Anastasia fosse assumidamente uma profissional do sexo, o que, infelizmente, não é o caso.

Analisando-se a narrativa por esse ângulo, talvez se possa conceber Anastasia Steele como apenas mais uma dentre os que constroem suas relações baseados em interesses, o que nos possibilitaria tirar da obra a mensagem de que esse tipo de relação tem seus benefícios, mas pode ser bem alto (e doloroso, e humilhante) o preço a ser pago...

1.2 – Submissão


Uma coisa é certa: a submissão de Anastasia e a obsessão de Christian por controlá-la é algo que não raro torna a obra irritante. A submissão ali extrapola as paredes do Quarto Vermelho da Dor e se instala no cotidiano dos personagens. Tudo o que ocorre, porém, é consensual, o que não necessariamente equivale a ser saudável. Na vida real, as próprias relações sadomasoquistas ainda são tabu. Imagine então uma relação de submissão total além do ato sexual.

Quando a obra foi lançada e agora, novamente, com o lançamento do filme, calorosas discussões tratam o papel da mulher, considerando-se o fato de que, após tanta luta pela ainda não plenamente conquistada emancipação feminina, uma trilogia vem enaltecer a posição de submissão da mulher em relação ao homem. Houve, inclusive, uma psiquiatra de nome Miriam Grossman que publicou um interessante artigo acerca do glamour em torno da relação estabelecida entre os personagens do filme. Também vale a pena ler.

São considerações indispensáveis, sem dúvida. Não obstante, acredito que nem essas e nem o chamado “politicamente correto”, tão em voga, devam ter peso maior que o fato de as obras haverem conquistado fãs pelo mundo todo, ultrapassando a marca de cem milhões de vendas. Então, analisemos os fatos a partir daí.

Em entrevista ao Fantástico, E L James afirma haver escrito as obras para o próprio deleite, havendo já afirmado, inclusive, que “a trilogia foi o resultado de sua crise de meia idade”, havendo ela reunido no livro todas as suas fantasias, como informa o Wikipédia. Em uma reportagem de capa da Revista Época, veiculada em julho de 2012, a jornalista Nathalia Ziemkiewicz afirma que o livro “foi escrito sob medida para as fantasias de submissão das mulheres modernas e autossuficientes”, bem como descreve o quão positiva foi a leitura da obra para a sua vida conjugal.

De fato, é muito bom que a trilogia surta efeito positivo na vida sexual dos leitores. Não há o menor problema nisso. Não é problema também que haja mulheres inclinadas a gostarem de assumirem uma postura mais submissa durante o sexo ou a curtirem um homem que faça um sexo mais forte. Um dos meus poucos argumentos em defesa do livro, inclusive, é quanto ao fato de que, quando as mulheres lançaram os seus sutiãs na fogueira, elas reivindicavam liberdade, e tal liberdade incluía fazer as próprias escolhas. Nesse âmbito, penso eu, ser sexualmente submissa – desde que haja regras e respeito nesta relação – pode ser uma escolha. Não há problema algum nisso.

Não há problema algum também no fato de um livro ou filme abordar tais relações de maneira positiva. O problema, caro leitor, é bem mais complexo. Em Cinquenta tons de cinza, o problema não são as relações sadomasoquistas em si, mas o que há em torno delas, a forma como o irresistível magnata seduz e manipula Anastasia, arrastando-a para um mundo talvez um tanto inadequado para uma mulher que acabou de viver a sua primeira experiência sexual. É ótimo que seja consensual, que haja palavras de segurança e outras regras para a segurança dela (o que, aliás, não são ideias brilhantes da cabeça da autora, mas, sim, regras já existentes nas práticas BDSM). E melhor ainda que ela sinta prazer naquela relação.

O grande problema ali é a idéia que o livro evoca acerca da posição da mulher através da construção da narrativa. Tal como as princesas Bela Adormecida e Branca de Neve à espera dos lábios masculinos que hão de despertá-las para a vida, ou a Cinderela cuja felicidade depende de que o sapatinho de cristal encaixe corretamente em seu pé, Anastasia se estatela no chão ao adentrar o escritório do magnata, precisa dele para salvá-la de ser atropelada por uma bike, desmaia nos braços dele quando do seu primeiro porre etc. Isso tudo como uma metáfora moderna de uma antiga concepção da mulher enquanto alguém que depende da presença do homem para manter-se de pé, para apoiar-se, pois sozinha ela não consegue, apesar de um diploma, um emprego e toda uma independência.

Temos, portanto, uma obra que sai na frente em se tratando das deliciosas descrições das cenas de sexo, e que, na contramão de si mesma, erra feio na construção de seus personagens e da relação entre eles. Cinquenta tons de cinza, portanto, não é um livro sobre uma mulher a explorar as delícias de sua sexualidade, mas, sim, um livro sobre uma relação doentia entre um homem imponente e uma mulher influenciável e emocionalmente dependente dele, bem ao gosto dos padrões que imperavam até meados do século XX. Tampouco é um livro sobre as práticas BDSM ou realmente favorável às mesmas, vista a necessidade de haver uma justificativa, um mistério acerca de uma infância de pobreza e abuso que justifique as preferências de Grey.

2 – Tons finais


Nas mãos de Sam Taylor-Johnson – diretora do longa que, só no Brasil, já levou milhões às salas de cinema – Cinquenta tons se tornou bem menos intenso, mas um filme interessante, com boas atuações por parte dos protagonistas Jamie Dornan e Dakota Johnson e um notável trabalho na sintetização dos pontos importantes do livro. Temos uma Anastasia convincente, mas um Christian nada misterioso, bem menos cruel e bem mais romântico, o que não se deve à atuação de Dornan, mas à adaptação do personagem para a telinha. Eu gostei da escalação dos atores, pois Dakota Johnson tem em sua expressão abobalhada um pouco do romantismo de Anastasia, ao passo que Dornan foi também uma boa escolha na medida em que, sendo jovem, tem uma expressão mais madura. Uma expressão angelical, definitivamente, não combinaria com Christian Grey. Há quem diga que Dornan é feio para o papel (!), no que vale a pena ressaltar que, no livro, a história é narrada em primeira pessoa, de modo que tudo o que nos é apresentado o é através do ponto de vista de Anastasia. Logo, no contexto da trama, a veracidade do que é narrado torna-se relativa, vista a parcialidade daquela que conta a história a partir de suas características subjetivas, emocionais e afins. Resumindo: o Christian da "vida real" (no contexto ficcional) pode muito bem ser mais "feio" que Dornan. Portanto, não se iluda.

As práticas BDSM parecem estar em segundo plano no longa, embora a cena que apresenta a primeira sessão de sexo entre Ana e Christian no Quarto Vermelho da Dor mereça alguns créditos, bem como o próprio quarto, que foi muito bem produzido. Quanto ao sexo, aliás, que frustrou tantas expectativas, ele aparece de maneira satisfatória, inclusive em termos de quantidade, considerando se tratar de um filme que pretende vender, não arriscando a sua bilheteria em um erotismo exacerbado. O telespectador, portanto, precisa se contentar com os pelos pubianos de Johnson e a base do pênis de Dornan, que aparece em um milissegundo. 

Outro erro do filme é não ser fiel à obra no tocante à narrativa em primeira pessoa, tal como acontecia em Mata-me de prazer (2002), no qual a protagonista narrava os sabores e dissabores de uma experiência amorosa  que, aliás, envolvia sexo com muita dominação  posterior ao fim de um casamento insosso. Parece que Sam Taylor-Johnson não aprendeu nada com o longa, que, aliás, também é adaptação de um romance de autoria de Nicci French. A narrativa em primeira pessoa no longa seria um interessante recurso a possibilitar ao telespectador uma melhor compreensão das emoções de Anastasia diante das tantas "novidades" que a vida com Grey lhe proporcionava.

Realmente, o filme não é algo do qual se deva esperar muito, vista a qualidade da obra que o inspirou. Vale dizer, no entanto, que, concluída a leitura da obra, tornei-me mais condescendente em relação ao filme, que fez o que pôde com o material que tinha, buscando equilibrar-se entre a necessidade de agradar o público, o desejo de ser campeão de bilheteria, a fidelidade à obra e as exigências de E L James.

Li, aliás, que E L James almeja ter maior controle sobre a adaptação cinematográfica do segundo livro da trilogia, Cinquenta tons mais escuros. E, embora a fama da escritora não seja das melhores nos corredores de Hollywood, talvez uma maior participação sua na adaptação seja algo positivo, pois nos possibilitaria compreender o que, exatamente, se passa em sua cabeça. Ou então apenas confirmaremos que, ao escrever a trilogia, a autora não fez nada além de reunir ali todas as suas fantasias esquisitas e ultrapassadas em relação aos homens. Tomara que não...


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