“Rafael não sabia naquela época e nem
agora que às vezes a distância chega e ela é, como Estrela da Manhã, um tipo de
demônio que vai se infiltrando na família devagarzinho, de forma bastante
silenciosa. A distância é um demônio que não tem cheiro nem volume, mas que
também esfria o ar ao redor dos que são possuídos por sua presença e, quando os
corações se dão conta, já estão duros ou doloridos demais para lutar. Refazer o
caminho é um ato de fé. Reencontrar entes queridos e amigos da infância a um
passo é um esforço que não deveria ter esse nome. Às vezes o demônio se vai, às
vezes, não. Mas o fato é que, bem ou mal, Rafael os tinha ali, ao final do dia,
quando chegavam de seus afazeres do mundo e, dentro de casa, queriam continuar
lá fora, com suas mentes plugadas no que tinham vivido e ouvido e pouco se
importavam com os que estavam no entorno, dentro das paredes físicas do lar.
Comida congelada girando no micro-ondas e as falas monótonas da novela das nove
grasnando na TV.” (p. 220-221)
Não é novidade que a popularização da
internet deu origem a um novo jeito de fazer dinheiro, trazendo benefícios
tanto para quem oferece como para quem compra serviços via web. Indivíduos do
mundo todo descobriram em si um empreendedor em potencial, de modo que, se
ontem nossas alternativas de conforto estavam restritas, por exemplo, ao táxi e
às lavanderias, hoje temos a comodidade de chamar um motorista através do Uber e
de nos valermos do Lavemcasa para nos poupar do trabalho de lavar roupas. E,
avançando um pouco mais, adultos curiosos – dos que são mais tímidos aos que
simplesmente idealizam relações com jovens de beleza top model – têm à disposição sites que oferecem o serviço de Striper Virtual. E, como se não bastasse
– pasme –, existe até um site que possibilita a realização de “macumba” online (site
esse cujas intenções não sei se cômicas ou perversas, mas que existe, existe).
A internet é, definitivamente, um
terreno de muitas possibilidades, e, se em tempos de preconceito, disputa
política e afins é muito comum escutarmos que ela pode ser usada tanto para o
bem como para o mal, imagine então quando, através dela, um garoto de onze anos
consegue despertar e trazer para este mundo o próprio demônio... É o que
acontece no envolvente livro Estrela da
Manhã, de André Vianco. E se a você, leigo no assunto, o título parecer
bonito ou até mesmo poético, espere até saber o significado de tal expressão,
bem como ver o delicado subtítulo da obra: 7 dias, 7 nomes, 7 mortes.
Uma das coisas que mais alegram um
leitor é a possibilidade de estabelecer um link entre as várias leituras que já
fez, e foi exatamente o que me ocorreu ao ler Vianco, que me trouxe à memória
uma matéria que há muito eu havia lido na Superinteressante, que, em sua 174ª,
dedicou sete horrendas páginas ao Príncipe das Trevas. E eis que a matéria
trazia em suas primeiras linhas o seguinte.
Num mundo dominado pela tecnologia, com educação
e informação em larga escala, imaginou-se que não haveria mais lugar para ele.
Engano. No alvorecer do terceiro milênio ei-lo aí, vivo e atuante, ainda que
transformado e sem os superpoderes de outrora. Ele (...), o Diabo, a mais
intrigante das figuras que povoam o imaginário humano. (MORAIS, 2002, p. 56).
Ora, o diabo não apenas sobrevive ao
mundo pós-moderno, imbuído da mais alta tecnologia, como também se faz presente
graças a ela e através dela. Isso, claro, ao menos no contexto ficcional.
Um garoto frágil, uma família
desestruturada, um colega de classe metido a valente e uma escola negligente
criam o cenário perfeito para a entrada do demônio, que, na história de Vianco,
necessita do tenebroso aplicativo “Pé na Tumba” para estabelecer contato com
este mundo, desde o início uma metáfora perfeita para os malefícios também
trazidos pela rede. A citação que abre esta resenha está aí para não me deixar
mentir. Nesta obscura narrativa, até mesmo o famigerado tabuleiro ouija – em
torno do qual há ainda tanta curiosidade e histórias pra lá de cabulosas – se
torna fichinha diante do maléfico aplicativo, configurando-se apenas como uma direção,
um instrumento que vai informar a chave para o verdadeiro inferno quando
lançada no Google.
Uma das características do bom escritor,
creio, é a habilidade em promover o consenso: todos que leem a obra x, gostam
do personagem A, torcem pelo personagem B, odeiam o personagem C e por aí vai.
E tudo isso, claro, bem arquitetado pelo escritor, que vai conduzindo o seu
leitor pela narrativa, valendo-se de técnicas diversas para provocar-lhe as
emoções que pretende. Portanto, não se engane: literatura é trabalho! E André
Vianco cumpre bem com o seu ao fazer o leitor se compadecer do jovem Rafael,
odiando os seus algozes – com um especial asco pelo personagem Maguila, apelido
de Fábio Eduardo – e torcendo para que se cumpra a vingança, mesmo que através
de uma criatura tão temida no mundo real. Até mesmo a escolha do nome e apelido
do antagonista revela um cuidado na criação daquele personagem, tudo com a
devida intenção de levar o leitor a odiá-lo: Maguila, alcunha de um ex-boxeador
brasileiro, em contradição a Fábio Eduardo, nome composto que – com perdão a
todos que, como eu, têm nome composto – passa a impressão de estarmos diante de
um garoto mimado ou até mesmo maricas.
Uma parcela substancial dos adolescentes
deve se identificar com os personagens de Vianco em Estrela da Manhã, visto haver ali tudo o que vivenciamos ou ao
menos assistimos no contexto escolar: o bullying, o garoto órfão, o valentão
sempre acompanhado dos comparsas que tornam mais fácil ser valente... E,
mesclando à ficção elementos da realidade, a obra vai cumprindo com sua função
catártica enquanto assistimos o maligno Estrela da Manhã vingar o jovem Rafael.
“Fantásticas” seria adjetivo muito aquém do que de fato foram as mortes da
diretora Susana e do Maguila. Mas tudo em seu tempo: o mal que nos purifica a
alma nos primeiros capítulos toma novas proporções e perde a nossa torcida no
decorrer da obra. E assim André Vianco nos conduz até onde ele quer chegar: o
mal pode parecer não ser tão mal assim, mas o bem deve vencer no final.
A obra de Vianco vem ao encontro de um
tempo em que os adolescentes, em sua maioria, têm a sua liberdade garantida no
limites da tela de um smartphone, o que ele trabalha de forma criativa e até
engraçada. A plataforma do app Pé na Tumba é semelhante a um site que, em algum
momento, qualquer leitor já acessou, sendo tentado por um plano premium e por
promoções travestidas de bem intencionadas. E nisso, talvez, uma metáfora tanto
para o estímulo ao demônio-consumo através da internet como para o perigo que a
internet representa se de livre acesso por crianças e adolescentes.
Mas, dentre todos os recursos
metafóricos, o maior mesmo são os “demônios” a serem enfrentados pelo jovem
Rafael. Num desenrolar alucinante, vemos garoto física e emocionalmente frágil
do início da narrativa evoluir para o combatente que deverá, sozinho, combater
a criatura que, contraditoriamente, elegeu para a sua proteção. E, cumprida a
sua “jornada de herói”, o jovem pode retornar para o lugar comum onde tudo
permanece igual, mas ele está mais forte.
Mas, e quanto ao Estrela da Manhã? Quem
é essa criatura que tira o sono dos personagens e leitores? Bom, Estrela da
Manhã é um ser horripilante, mas que, apesar do aspecto assustador, não detém
poder absoluto, dependendo do sinal do celular para se concretizar neste mundo
e não estando imune a feitiços localizados na internet. Embora seja
notoriamente um demônio, ele parece ser apenas um funcionário do manda-chuva,
que, nas páginas finais do texto, aparece em uma estranha roupagem... Trata-se
de um personagem tão dúbio quanto ao seu próprio nome. Vejamos: o nome do
personagem de Vianco é mencionado em algumas passagens bíblicas, sendo grafado
ora com iniciais minúsculas, como referência a Lúcifer (Is. 14:12), ora com
iniciais maiúsculas, como referência a Jesus (Ap. 22:16). Salvo exceções, é
essa marcação gráfica, bem como análise do texto dessas passagens, que nos
possibilita a identificação do personagem em discussão. Em outra passagem,
porém, a expressão é mencionada não como referência a uma pessoa ou ser, mas
como algo a ser concedido por Jesus àqueles que seguirem os seus mandamentos (Ap.
2:16-18). Logo, justifica-se o uso de tal expressão para referência a sujeitos
tão opostos: a famigerada estrela da manhã nada mais é que um dom também possuído
por Lúcifer antes de se rebelar contra Deus. Talvez se justifique aí a escolha
da expressão como nome próprio da criatura: Estrela da Manhã é, em diferentes
momentos, tido como algo bom e como algo ruim tanto para Rafael como para os
leitores. Embora o temível personagem seja o mesmo do início ao fim, ele é
contraditório do ponto de vista das diferentes sensações que provoca ao longo
da narrativa. Tão contraditório quanto às menções da expressão na Bíblia.
Há alguns pequenos incômodos, claro,
como a naturalidade com que o próprio protagonista e seus aliados lidam com a
possibilidade da compra de um fantasma e a solução encontrada pelo autor para o
esperado combate das últimas páginas. Solução essa que nos leva até mesmo a
questionar o mérito do protagonista. Nada disso, porém, diminui a obra, que
prende o leitor do início ao fim e, entre várias lições, nos chama a atenção
para a importância de que as instituições família e escola cumpram com o seu
papel. Afinal, um jovem hoje vítima de bullying na escola pode, amanhã, não contratar
uma criatura maligna via internet, mas adentrar essa mesma escola, abrindo fogo
contra alunos em salas lotadas. Educar é algo complexo, sem sombra de dúvida,
mas é, certamente, mais simples que mandar Estrela da Manhã de volta ao lugar
do qual nunca devia haver saído: o inferno... que não queremos reproduzir no
mundo real.
Referências
MORAIS, Jomar; BORGES, Rogério (il). “Satã
Vive”. In: Revista Superinteressante,
Ed. 174, mar. 2002, p. 55-61. Disponível em: <http://super.abril.com.br/historia/sata-vive>.
Acesso em: 22 mai. 2016.
VIANCO, André. Estrela da Manhã: 7 nomes, 7 dias, 7 mortes. São Paulo: Giz
Editorial, 2015.
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