Título original: God's Not Dead
Ano: 2014
Direção:
Harold
Cronk
Roteiro: Hunter Dennis, Chuck Konzelman, CarySolomon
Gênero:
Drama
Origem:
Estados Unidos
Duração: 113
minutos
Uma noite de domingo, 21/09/2014,
foi quando tive a oportunidade de assistir ao longa “Deus Não Está Morto” (God's Not Dead, 2014), o qual, apenas
pelo trailer, já me havia causado um misto de curiosidade e certo incômodo,
impulsionando-me, naturalmente, a assisti-lo. Foi um filme muito comentado naquele
ano e aclamado por uma parcela substancial de religiosos, sobretudo católicos e
evangélicos/protestantes (sempre fico em dúvida quanto ao termo correto a
utilizar). Foi naquela mesma época, quando 2014 já se despedia, que comecei a pôr
no papel – ou, melhor dizendo, na página do Microsoft Word – algumas ideias
sobre a obra de Harold Cronk, que, quase dois anos depois, viria a dirigir uma
continuação para o filme. Não obstante, considerando o fato de que tanta gente realmente
competente já havia resenhado a obra, me pareceu desnecessário fazê-lo também,
certo que eu estava de não ter muito a acrescentar. Soma-se a isso a
consciência que eu tinha de que, ao fazê-lo, ser-me-ia inevitável tocar em
questões delicadas no tocante à religiosidade, à crença, à diversidade e afins.
Assim, optei, à época, por guardar comigo as minhas reflexões sobre o longa, adotando
a famigerada “política da boa vizinhança” e evitando atritos nas redes sociais,
sempre repletas de usuários pré-dispostos à atuação jurisdicional. Com isso
posto, se me decido por fazê-lo agora – quando dois anos já se passaram e até
uma segunda parte do filme já saiu de cartaz –, faço-o em virtude da toda a
discussão que assisti, em âmbito político (infelizmente) acerca de questões
religiosas, liberdades individuais, bem como de direito à crença e à
não-crença. Ademais, de 2014 para cá, muito eu soube de intolerância religiosa,
de vozes que se levantaram contra a reprodução da Paixão de Cristo por uma
transexual durante a XIX Parada do Orgulho LGBT de São Paulo*, mas se
mantiveram caladas diante de ataques a terreiros de umbanda e afins.
Desde já, vale afirmar
que o filme em si, lamentavelmente, frustrou as minhas expectativas positivas e
superou as más, configurando-se, para mim, como nada mais que a expressão dos
ideais de um ainda esmagador número de indivíduos conservadores,
preconceituosos e intolerantes. Não obstante, é justamente a você, que é adepto
de uma religião cristã e curtiu o filme em pauta, que convido a prosseguir com
a leitura desta crítica, redigida por um cara também simpatizante do
cristianismo e defensor ferrenho da liberdade religiosa. Confie em mim...
“Deus Não Está Morto” tem
a sua trama embasada em uma situação que, embora improvável**, é até digerível,
visto que a minha experiência pessoal me certifica da existência de professores
de fato capazes de absurdos semelhantes aos cometidos pelo professor Radisson
(Kevin Sorbo), que, devido a sua intolerância e ideologias, resolve perder
tempo pirraçando o calouro Josh Wheaton (Shane Harper) por causa de sua fé
cristã. E esse, aluno inteligente e, a princípio, aparentemente firme em sua fé
cristã, se propõe também a perder o seu tempo pirraçando o professor em lugar
de simplesmente abandonar a disciplina, trancar a matrícula ou, como seria mais
acertado, recorrer à direção da Universidade a fim de registrar uma queixa
contra a abusiva e expressa intolerância religiosa do professor.
Ok, eu concordo com o
personagem em não negar a sua fé pela simples imposição de um professor
psicopata, mas será possível que não havia a possibilidade buscar uma solução
para o caso recorrendo-se a esferas superiores daquele contexto acadêmico? Seria
essa universidade assim tão displicente? Ou será que o embate estabelecido
entre aluno e professor revela nada mais que a incerteza de um quanto a sua fé
e a incerteza de outro quanto ao seu ateísmo? Ora, se há uma convicção pessoal
firme, como se justifica a obstinação por contestar o outro? Incerteza?
Vaidade? Ou seja: em uma breve explanação, já temos posta a premissa
inverossímil do longa, no que vale não ignorarmos o fato de que estamos
tratando de uma obra ficcional, na qual, logo, tal premissa se torna aceitável
e até necessária à criação do embate entre os protagonistas, sem o qual nem
sequer existiria o filme.
Então, no contexto da
trama, não é difícil chegar à conclusão de que, entre Josh e Radisson, é esse
último o mais errado naquela relação, uma vez que abusa de sua autoridade
docente ao tentar impor o seu ateísmo no contexto de uma universidade não
eclesial (a, acho, fictícia Hadleigh
University) e de um Estado laico. Em lugar de auxiliar os discentes na
construção do conhecimento, promovendo o questionamento (natural no contexto
acadêmico) e a oportunidade de reverem as suas escolhas, o professor Radisson
determina a declaração de que “Deus está morto” como condição para que se
evolua em sua disciplina. A esta altura, o filme apresenta ao telespectador o
herói/oprimido e o vilão/opressor, aprofundando-se, em seguida, em tramas
secundárias protagonizadas por personagens que, tal como Josh, se encontram na
condição de oprimidos em sua relação com outrem. A saber: a bela Ayisha (Hadeel
Sittu), que, desejosa de viver o cristianismo, vive em um mundo à parte em
virtude da tradição muçulmana imposta por seu pai Misrab (Marco Khan); o oriental
Martin Yip (Paul Kwo), que, ao decidir “aceitar Jesus” graças ao testemunho de
Josh, se vê às voltas com a desaprovação do seu pai, que vive na China (país
onde 47% dos habitantes de declaram ateus, levando-o a ser considerado o país
mais ateu do mundo); e Mina (Cory Oliver), cristã e esposa, justamente, do professor
Radisson, de quem é ex-aluna. Todavia, além de lidar com o ateísmo crasso no
marido, Mina lida ainda com o irmão Mark (Dean Cain***), capitalista insensível
que dá as costas à namorada Amy Ryan (Trisha LaFache), quando essa se descobre
com câncer.
Relendo o parágrafo
acima, você perceberá, desenhado nas entrelinhas, o grave problema do filme:
todos os personagens (Radisson, Misrab, o pai de Martin e Mark) que fazem
oposição aos cristãos (Josh, Ayisha, Martin, Mina e Amy) são sujeitos tiranos,
malvados e insensíveis. São visivelmente os vilões da trama, e não indivíduos
que, simplesmente, têm pensamento contrário ao cristianismo. Muito embora, vez
e outra, o filme mencione o livre-arbítrio – inclusive utilizado como
justificativa por Josh, quando, em uma de suas palestras para a classe, afirma
que só deseja que os seus colegas escolham por eles próprios e não por
imposição de um professor –, o mesmo, a todo o tempo, vilaniza os personagens
não cristãos. E, assim, temos um pai que agride e prende a filha ao descobrir a
sua fé em Jesus; um pai que ignora as convicções do filho; um namorado que
despreza a namorada quando essa se vê às voltas com uma doença não raro
sinônimo de morte e despreza a mãe idosa e demente; um homem que, além de
perseguir um discente cristão pelos corredores da universidade, ainda leva o
seu ateísmo ao ponto de prejudicar a sua relação com a esposa cristã, a quem
humilha durante um jantar em uma sequência absurda! E, claro, todos eles ateus
e, portanto, de acordo com a mensagem do filme, vilões, malvados e
opressores... Ora, se, na visão do filme, a opção por não ser cristão pressupõe
tais adjetivos, é natural chegar à conclusão de que, ainda de acordo com o
longa, os cristãos são bons e perfectíveis. Mas seria isso uma realidade na
vida fora do longa?
Neste ponto, vale
deixar bem claro aqui que, em momento algum, afirmo ser um problema os cristãos
serem contrários ao pensamento muçulmano, hinduísta, umbandista, ateu etc.
Isso, definitivamente, não é problema algum. Até porque estamos falando de um
filme voltado para o público cristão e, diga-se de passagem, produzido pela
Pure Flix, empresa de produção da indústria cinematográfica cristã. Logo, o
problema aqui de maneira alguma é o fato de o filme promover os ideais
cristãos, mas, sim, a forma como decide fazê-lo, conspurcando não apenas as
crenças contrárias ao cristianismo, mas as próprias pessoas que, por cultura,
tradição, criação ou opção, não são cristãs. Dessa forma, um filme que se
propõe a pregar o Deus Vivo nada faz além de endossar o preconceito e a
intolerância.
Confesso que, ao longo
do filme, eu torcia não pela conversão do tirano professor, mas, sim, pela
retratação do mesmo, bem como por um entendimento entre ele e o estudante Josh.
Mas, em um filme onde os nãos cristãos são todos vilões, qual seria o provável
final do maior vilão de todos, o temível professor Radisson? A morte,
naturalmente. Em uma sequência na qual Radisson segue em direção ao show do
grupo gospel de pop rock Newsboys na esperança de reatar os laços com Amy, que
o havia abandonado, o mesmo é atropelado, convertendo-se enquanto agonizava. A
mensagem, naturalmente, é muito clara: não há entendimento entre cristãos e
ateus, e Deus segue punindo impiedosamente quem não crê Nele.
Em interação com alguns
amigos, já tentaram me convencer de que tal desfecho objetiva, na verdade,
mostrar que a piedade de Deus é tamanha que, mesmo após uma vida de erros e de
negação a Sua Palavra, todos são dignos de Sua infinita misericórdia. Seria uma
mensagem bonita, se fosse uma realidade no contexto de “Deus Não Está Morto”,
cujo conjunto da obra não permite tal interpretação. A mim pareceu apenas um
final muito cruel, no qual uma multidão está feliz em um show gospel enquanto,
lá fora, em meio a chuva, um cara perde a vida justamente no momento em que ia
começar a acertar. Deus é misericordioso, mas o filme não, e, em meio a tantos
desfechos possíveis – como uma mudança de postura por parte do professor ou
mesmo uma vida solitária em virtude de sua natureza ranzinza –, opta pela
solução típica de folhetins ou de filmes comuns/não cristãos, nos quais o
vilão, merecidamente, sempre morre no final.
Mas o longa tem alguns
(poucos) pontos fortes, os quais se resumem às três palestras ministradas por
Josh, bem como a alguns diálogos, tais como o diálogo entre o Reverendo Dave (David
A.R. White) e Mina, e a relação entre Dave e o Reverendo Jude (Benjamin
Ochieng), que vive a instruir o amigo quanto à fé e aos desígnios de Deus. No
mais, porém, o telespectador é obrigado a lidar com a péssima e desnecessária
atuação de Willie e Korie Robertson, que, ao interpretarem eles próprios, cedem
uma entrevista à jovem Amy. Trata-se de uma sequência um tanto polêmica, visto
que a jovem questiona o casal quanto à contradição entre orarem a Jesus em
todos os episódios do seu programa de tevê e, ao mesmo tempo, terem um negócio
contrário à fauna. A sequência, no entanto, deixa claro que é o casal que está
correto, enquanto a jornalista não passa de uma jovem rebelde e contrária a
Deus. Ora, caçar patos em nome de Jesus pode. Questionar a incoerência disso é
preconceito e intolerância contra os cristãos. Sério...? Mais ao final do
longa, a mesma Amy, agora diagnosticada com um câncer, interage com os
integrantes do grupo Newsboys, momento no qual parece se evidenciar a sua
conversão... Afinal, a doença e a morte costumam conduzir à conversão. Resta
saber quanto à legitimidade de tal conversão... Vale ressaltar que, enquanto
humano que sou, eu também recorro a Deus em momentos de necessidade, comumente
esquecendo-o em momentos nos quais sinto estar bem. O problema aqui não é esse,
mas, sim, o fato de o filme aparentemente legitimar uma fé ocasionada pelo medo
da morte. Ademais, ateus não se veem perdidos diante de seu sofrimento. Onde
não há o refúgio da fé (que, sem dúvida, é algo consideravelmente positivo), há
o refúgio da família, dos amigos, do desejo de viver, dos planos para o futuro
etc.
Bom, eis a minha
opinião sobre o longa, que me assustou não devido a alguma resistência pessoal
que eu tenha à religiosidade ou ao cristianismo em si, mas, sim, pela forma
como um filme que se auto intitula cristão opta por conduzir as suas tramas,
promovendo a intolerância e reforçando estereótipos. Sem sombra de dúvida, Deus
não está morto. Não obstante, a minha esperança em um mundo mais tolerante e
com menos guerras de cunho religioso, certamente, quase morreu quando assisti a
esse filme.
***
*A menção a tal
episódio não necessariamente revela uma aprovação da minha parte à performance
da modelo transexual, sobre o que espero poder escrever em outra ocasião. O que
faço aqui é apenas questionar a indignação seletiva de alguns religiosos. Se
Cristo pregou a paz e a solidariedade e se, diante da performance da moça,
cristãos se sentiram pessoalmente ofendidos, esperava-se que, baseados nos
ensinamentos de Jesus, eles também de levantassem contra à intolerância às
demais religiões, estou errado?
**Ao final do filme,
antes da apresentação do cast, nos é
exibida a mensagem: “O filme ‘Deus Não Está Morto’ foi inspirado nos seguintes
processos jurídicos entre universitários e processos universitários que foram
condenados por causa da fé”. Não obstante, não pesquisei mais a fundo a fim de
conhecer as situações que supostamente chegaram aos tribunais e levaram à
produção do longa.
***Muito conhecido no
Brasil pelo seu personagem Clark Kent/Superman no seriado Lois & Clark: The New Adventures of Superman. Em 09/11/2010, o
ator esteve no Programa do Jô em virtude do lançamento do filme “Amor por
Acaso”, no qual foi par romântico de Juliana Paes.
***
Publicado originalmente
em CinePlayers.
Oi, Alex Gabriel! Conheci seu trabalho através do canal "poesia que edifica". Andei lendo aqui umas resenhas suas. Obrigada por compartilhar sua leitura. E, essa, em específico. Essa morte do professor (atropelamento) também me inquietou muito. Sou cristã. Contudo, esse desfecho me fez não gostar do filme. Afinal, que Deus é esse que castiga os seus?! Francisca, nossa amiga, tem uma poesia que diz "Deus não precisa perdoar". No sentido de que ele é amor, então, onde fica a mágoa pra que tenha que perdoar?! Mais uma vez, grata por seu compartilhamento. Ah! Amo Belo Horizonte, uai!
ResponderExcluirOlá! Como vai você? Perdoe por só agora lhe estar respondendo. O Google não me notificou do seu comentário! Fico feliz que tenha gostado do post. De fato, fiquei incomodado com o desfecho dado para o filme, que tinha tudo para ser um bom filme. Todavia, quando se coloca os preconceitos à frente das coisas, o resultado tende a ser desprezível... Ah!, a Francisca... Escritora e amiga querida, e cuja obra reune em si uma vasta sabedoria. Muito obrigado pelo seu comentário!
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