Há assuntos aos quais é sempre válido
retornar, por mais que se saiba que nunca se pode alcançar a compreensão de
quem está disposto a não entender. Não obstante, a construção de um mundo
melhor para todos demanda persistência, paciência e amor. Assim sendo, embora
eu não lecione atualmente, tentarei me utilizar da minha formação como
professor e ser o mais didático possível na discussão deste tema. Assim sendo,
voltemos à bela Raissa Santana.
Ao sair vitoriosa do concurso Miss Brasil no
último sábado, Raissa foi tema de muitas conversas, posts e tweets pelo Brasil
afora. Por um lado, se regozijava com o fato de ela ser a segunda negra a
vencer o concurso. Por outro, se menosprezava esse fato sob a alegação de que é
apenas uma bela mulher que concorreu em pé de igualdade com as demais modelos e
venceu por mérito.
Ok... De fato, exaltar em demasiado o fato de
a moça ser uma mulher negra pode ser problemático, uma vez que evidenciar à
exaustão a diferença também é segregar, também é estabelecer o embate.
Lembremos que ela venceu o Miss Brasil, e não o “Miss Brasil Afro”. Portanto, é
inegável que, antes de mais nada, ela seja uma “representante da beleza da
mulher” de modo geral, como ela mesma disse em entrevista ao Estadão.
Evidenciar demais a “beleza negra” se configura como um problema na medida em
que leva ao entendimento de que Raissa é uma negra muito bela, mas, se
considerada em um contexto mais amplo, essa beleza se torna relativa...
Definitivamente, não! A moça é de fato linda e não desbancou apenas as demais
negras do concurso. Ela desbancou todas, ela foi tida como a mais bela de todas
e ponto.
Mas...
Por outro lado, reduzir a nada o fato de ela
ser a segunda negra a vencer o concurso após trinta anos da vitória de Deise
Nunes também é equivocado, e, para ser um pouco mais firme, é também
desonesto... Se você não vê importância na segunda vitória de uma mulher negra
do Miss Brasil, devo entender que, seguindo a sua linha de raciocínio, nesses
trinta anos nenhuma negra saiu vitoriosa simplesmente porque, de fato, não
houve nenhuma que atendesse aos pré-requisitos do concurso. Ainda nessa linha –
em um país no qual as mulheres negras são ¼ da população e 50% do total de
mulheres –, ao longo de trinta anos não houve uma negra que pudesse representar
a beleza da mulher. Sério, cá entre nós, você acredita mesmo nisso?
É preciso deixar bem claro que em momento
algum eu defendo que uma mulher negra deva
vencer o concurso por ser negra. Isso
seria ridículo e desonesto tanto com ela como com as demais modelos. Nenhum
negro deve ser colocado onde quer que seja por
ser negro. É justamente o contrário. O
que eu defendo é que nenhuma negra seja desclassificada no Miss Brasil, no Miss
Universo e no escambau por ser negra, entendeu?
Olhe ao seu redor. Veja os sujeitos em cargos
de liderança. Veja os políticos. Veja as telenovelas. Veja nas universidades.
Veja nos shoppings... Veja e me diga quantos negros você viu nesses espaços. Veja
e me diga se você realmente acha que eles
só não estão ocupando esses lugares por não haverem sido bons o suficiente, e
não por serem negros.
Em vários espaços e circunstâncias, negros
são preteridos diariamente, meu caro, e o fato de você não querer ver não vai
mudar isso. Tenho percebido com muita clareza que discursos extremos têm sido
oriundos de uma necessidade de se posicionar de maneira contrária ao que se
chama de “esquerda” Nesse contexto, coloca-se contra as cotas raciais, contra a
militância LGBT, contra o feminismo etc. Não vou entrar no mérito de cada um
desses pontos e tampouco falo aqui a favor deles. O que quero é fazer um alerta
e expressar aqui o quanto me assusta como a necessidade de se distanciar de uma
ideologia tem nos levado a esquecer quem nós somos. Nós temos nos deixado
doutrinar pelas ideologias com as quais, no início, apenas flertávamos devido a
algumas ideias que iam ao encontro das nossas. E, dessa forma, temos deixado de
pensar por nós mesmos. O embate político tem se saído melhor do que a televisão
naquilo que há muito ela tenta fazer: nos alienar.
Meu caro, confie em mim: não existe ideologia
boa ou má. Existem ideologias diferentes, com pontos convergentes e divergentes
entre elas. Você pode transitar entre elas sem risco de vida. Você pode
preferir uma delas. O que você não
pode é permitir que elas o definam determinando quem você deve ser.
E, em tempo, vale informar que na mesma
entrevista em que Raissa afirmou que não se vê como representante da beleza
negra, mas, sim, representante da beleza da mulher, ela também afirmou que será
porta-voz da causa negra e defendeu a diversidade racial nos concursos de
beleza. Ou seja: ao fazer a famosa
afirmação – à qual, diga-se de passagem, o Estadão, não por acaso, deu destaque
– ela não se posicionou contrária à luta dos negros. Foi uma afirmação de
empoderamento, uma reafirmação de que, enquanto mulher negra, ela é capaz de
representar também as brancas, as amarelas e afins.
E isso, sem dúvida, é verdade. E o meu
profundo desejo é que nada e ninguém possa deter Raissa, Deise e todas as
mulheres deste Brasil afora, pois elas trazem em si o potencial de fazer do
mundo um lugar mais amoroso, mais fraternal e mais feliz.
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