“Compreendamos, então, a
utilidade do sofrimento em nossa vida e aprendamos com este salutar medicamento
que, com sua aspereza, saneia nosso caráter. Deus, Pai soberanamente justo e
bom, coloca-nos sempre nos cenários em que atuaremos com os antagonistas
certos, para com eles ressarcirmos nossas dívidas e nos tornarmos, todos,
protagonistas de uma história com desfecho feliz.” (pág. 163)
A manhã era o momento mais difícil (não que seja
fácil agora), tão hercúlea me parecia a tarefa de sair da cama e enfrentar o
dia, fazendo do toque do despertador algo como um apito de um árbitro de MMA a
anunciar a hora de eu me colocar no ringue e, passado o período de descanso que
me era proporcionado tão somente pelo sono, encarar o temível adversário que
era a minha mente. E nessa luta, como era sabido, não seria eu o vencedor. A
depressão que há anos vinha se desenvolvendo desembocara numa espécie de
transferência, uma paixão arrebatadora por um terapeuta alternativo,
oportunamente (e dolorosamente) trazendo à tona questões complexas sobre mim
mesmo. E foi em meio a esse turbilhão que conheci a poesia de Francisca Gomes,
sem, em momento algum, porém, imaginar que ela viria a desbravar novos
horizontes em sua produção literária, escrevendo um romance no qual tanto vi
refletido da minha própria história.
Devo, porém, confessar que, por mais que eu me haja
regozijado com o meu exemplar de “Assim como a Fênix” em mãos, acompanhado de
alguns mimos relacionados à Doutrina Espírita gentilmente enviados pela IDE
Editora como brinde, eu não me via verdadeiramente disposto à leitura de um
romance do gênero. Havendo recentemente me aventurado pela leitura de um
romance espírita, bem como pela tentativa de leitura de outro, eu me via
resistente a essa literatura, enfadonhas que se me haviam mostrado aquelas
experiências. Havia, porém, um significativo ponto a favor de “Assim como a Fênix”.
Muito mais relevante do que a profundidade do seu título ou a incontestável
qualidade de sua belíssima capa, havia o fato de se tratar de uma obra de
Francisca Gomes, escritora que, além de ser objeto do meu mais profundo afeto,
havia sido capaz de me encantar com a sua poesia, impossibilitando-me crer que
seria diferente em sua narrativa. E, assim, lá fui eu me enveredar pelas
desventuras e resgates da personagem Míriam.
E eis que, dentre as tantas surpresas com as
quais me deparei durante a leitura, está o fato de se tratar de um livro
corajoso, dedicado que é à abordagem de temas ainda espinhosos para
considerável parcela de nossa sociedade. Trata-se, porém, de uma abordagem
sóbria, livre do radicalismo e passionalidade característicos da tão necessária
militância. Racismo, depressão, suicídio, bullying e homossexualidade desfilam
pelas páginas do esmerado texto de Francisca Gomes com menor ou maior destaque,
mas sempre com o tom necessário à sensibilização do leitor para a dor humana na
experiência de cada uma dessas situações.
Há que se considerar o fato de não ser imediata
a empatia pela personagem central. Sendo-nos já apresentada como uma mulher
tomada por uma dor com motivações desconhecidas a princípio, é um tanto árduo para
o leitor torcer pela mesma já de início, vez que dela nada se sabe além de seu
notório estado depressivo. Convém, no entanto, que mesmo essa resistência seja
objeto de atenção, podendo refletir uma dificuldade humana de se sensibilizar e
lidar com a dor do próximo. Numa análise puramente literária, porém, percebe-se
uma pequena falha na apresentação da personagem, que, com suas dores, silêncios
e resistências, torna-se um tanto indigesta para o leitor. Isso, no entanto, se
dá apenas nos capítulos iniciais, depois dos quais o leitor vai sendo
totalmente envolvido pela personagem, pelas suas tragédias pessoais – que bem
justificam o seu sofrer – e, sobretudo, pelo seu crescimento e autodescoberta.
A narrativa ganha considerável fôlego a partir
do acidente sofrido por Míriam, ao final do segundo capítulo. Não por acaso, o
acidente que se apresenta como ponto de virada na narrativa se dá em meio a uma
tempestade, que, em literatura e algumas outras expressões artísticas, é
símbolo comumente utilizado como prenúncio de grandes mudanças. E é a partir
daí que o leitor é positivamente arrastado por uma avalanche de reviravoltas
que só fazem provar o precioso amparo de uma força maior que, como bem prova a história
de Míriam, escreve certo por linhas certas.
Salta aos olhos do leitor o comprometimento de
Francisca Gomes com a sobriedade na abordagem dos temas aos quais se propõe.
Nesse sentido, a mesma Míriam que busca na doutrina de Allan Kardec (1804 –
1869) suporte para lidar com a sua doença também recorre ao tratamento
terapêutico e psiquiátrico, o que inclui o tratamento medicamentoso. Nesse
âmbito, a obra se mostra fiel a um dos princípios básicos do espiritismo, que,
tal como explica o item 8 do capítulo primeiro do Evangelho Segundo o
Espiritismo, contesta a possibilidade de haver contradição entre a Ciência e a
Religião, dado ser Deus o princípio básico de ambas. Assim, não há, em momento
algum da narrativa, um posicionamento contrário de Arthur, psicólogo da
protagonista, à sua frequência à casa espírita ou vice-versa. A alopatia e a
espiritualidade caminham, portanto, lado a lado, configurando-se como tratamentos
complementares um ao outro.
Assim, se de um lado a obra revela a intimidade
de uma sessão de psicoterapia, cedendo espaço até mesmo para uma abordagem, mesmo
que rasa, da transferência – situação comum ao processo analítico em que o
analisando transfere suas projeções para o terapeuta –, de outro, o romance
apresenta conceitos fundamentais ao entendimento do que vem a ser a Doutrina
Espírita, bem como o funcionamento de uma casa espírita. Desse modo, “Assim
como a Fênix” se revela como leitura adequada ao sujeito interessado em
conhecer a doutrina, mas resistente aos espessos volumes escritos por Kardec e
Chico Xavier (1910 – 2002), leituras essas obrigatórias aos que optam por se
tornarem adeptos de tal filosofia.
No que tange ao tratamento do espiritismo em
especial, merece destaque a muito bem-vinda “aula” que a autora, por meio do
personagem Eduardo, nos dá quando da primeira visita de Míriam ao centro
espírita (p. 160-165). Temos, ali, uma profunda e belíssima explanação acerca
da utilidade do sofrimento, dada a sua função de mestre. Esse e outros
ensinamentos dispostos ao longo da obra são, na verdade, universais e,
portanto, necessários a todos, a despeito de inclinação religiosa ou
filosófica.
Falhas pontuais podem, em certo nível, causar
incômodo no decorrer da leitura, tais como uma aparente confusão entre os
conceitos de homossexualidade e transexualidade (p. 180 e 329), bem como
trechos que, mesmo que involuntariamente, podem transmitir a equivocada ideia de
que os negros demandam a generosidade dos brancos (p. 150). Nada disso, porém, traz
prejuízo real ao texto, que não tem o racismo e tampouco a homoafetividade como
seus temas centrais, apresentando, sim, a depressão e, por conseguinte, o
suicídio como grandes vilões da história e da vida humana.
Ainda no que se refere ao comprometimento de
Francisca Gomes com a abordagem da Doutrina Espírita – comprometimento esse que
deveria ser natural em toda obra do gênero, mas nem sempre o é –, há que se
considerar o excelente trabalho que realiza ao, estrategicamente, revelar a
ação da espiritualidade a partir da desmistificação da mesma. Aqui, portanto,
não há aparição de espíritos e fenômenos sobrenaturais afins. O misterioso som
de um piano que se ouve em um momento crucial da narrativa (p. 267) nada tem de
misterioso, tendo origem de um rádio mal sintonizado (p. 272), e, se em certa
ocasião o saudoso Chico Xavier, como consta em sua biografia, se aproximou de
uma senhora durante uma reunião questionando se a mesma estaria viva ou morta, aqui
não há motivos para tal preocupação. Estão todos bem vivos na obra de Francisca
Gomes. Dessa forma, confronta-se o leitor com aquilo que ele talvez espere
para, em seguida, desconstruí-lo, de modo a mostrar que “não há rituais,
adivinhações ou coisas do tipo no Espiritismo” (p. 261), como bem alerta a
personagem Samanta.
E, se na obra da escritora cearense, Deus não
opera por meio de fenômenos metafísicos, decerto Ele o faz por meio da
sincronicidade, termo esse cunhado por Carl Gustav Jung (1875 – 1961) como
definição da ocorrência de eventos que coincidem de maneira significativa para os
envolvidos. E é a partir desse conceito – naturalmente, sem menção na obra –
que Francisca Gomes tece reviravoltas surpreendentes envolvendo tantos dos
personagens (destaque para as revelações envolvendo os personagens Vicente e
Samira). Nada é o que parece ser neste mais novo lançamento da IDE Editora, mas,
tanto na leitura da obra como na vida, há que se ter certeza do infalível
amparo do Criador.
Quanto a mim, a princípio simples leitor,
espectador da tragédia e redenção da personagem Míriam, confesso-me fortalecido
após a leitura, mais confiante e suficientemente empoderado para lidar com as
minhas próprias falhas, perdoando a mim mesmo e fazendo dos preconceitos,
perdas e silêncios alheios um impulso para um novo voo. Pois, assim como a
Fênix, é preciso se reerguer das cinzas e, mesmo que sob a pressão de grandes
cargas, riscar o céu, em chamas, voando em esplendor e beleza. Tudo isso para,
ao final, compreendermos que o nosso grande vilão é, sobretudo, nós mesmos.
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Sousa, Francisca de Jesus Gomes de. Assim como a Fênix. 1ª edição. Araras,
SP: IDE, 2018.