sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Ser ou não ser? Uma reflexão sobre a hipocrisia


Sou defensor da liberdade religiosa, mas zombo de uma ministra, especificamente, pela sua religiosidade.

Sou defensor da família, mas contrato travesti na Av. Pedro II antes de voltar para a minha esposa e filhos.

Faço da liberdade de expressão a minha bandeira, mas reajo agressivamente quando confrontado com o contraditório.

Luto pela igualdade de gênero, mas faço da misandria a base de minhas ações.

Busco a elevação espiritual, mas desde que a minha busca não extrapole os limites da zona sul.

Saio hasteando bandeira com os dizeres “mais amor por favor”, mas viro o rosto quando a ajuda me é solicitada.

Sou militante pelos direitos da comunidade LGBT, mas subestimo ou até mesmo desejo a morte dos gays que se dizem contrários à militância.

Sou protestante e sigo a Palavra de Jesus, mas me coloco no papel de juiz e até defendo a eliminação – e não a salvação – dos que perturbam a paz.

Sou bonzinho e espiritualizado, mas me restrinjo a um grupo de pessoas e não me relaciono com qualquer um por uma questão de “frequência energética”. Até porque “cada um é responsável pela sua própria evolução”.

Reivindico respeito, pois preciso que se respeite o meu direito de desrespeitar os outros.

Sou professor, mas dou aos meus discentes uma interpretação dos fatos como sendo uma verdade absoluta.

Idealizo uma educação livre de ideologias, mas apoio projetos que visam cercear a liberdade de professores e alunos.

Vivo em defesa da vida, mas ergo uma bandeira em prol do aborto com a mão esquerda e outra em prol da pena de morte com a mão direita.

Sou super politizado e exerço a minha cidadania, mas não me envolvo com o tema política desde 29 de outubro.

Sou mente aberta, evoluído, intelectual e raro como pessoa, mas, no fundo, eu desprezo o ser humano e suas idiossincrasias, e tudo o que quero é mostrar a minha vida falsamente extraordinária no Instagram com fotos badaladas e check-in's invejáveis no Facebook.

Sou tudo isso, mas na verdade... na verdade mesmo, até humano eu já deixei de ser faz tempo, dedicando-me a ser nada mais, nada menos que um tremendo de um idiota.

sábado, 8 de dezembro de 2018

A árvore do Preto-Velho

Uma vez recebi de um Preto-Velho a orientação de, afastado do centro urbano, buscar uma árvore grande, frondosa... e, uma vez diante dela, recuar três passos, como forma de pedir licença e permissão, abraçando-lhe e fazendo-lhe uma pergunta em seguida. Segundo o Preto-Velho, a resposta me seria dada imediatamente a esse ato de respeito e reverência à Mão Natureza. E finalizou a orientação me dando um gole de cachaça e me aplicando o passe.

Habitante de uma cidade de concreto como Belo Horizonte – que, mesmo que erguida por entre serras, adquire, cada vez, a atmosfera cinzenta da “cidade que nunca dorme” –, até então não encontrei a tal árvore, e, por conseguinte – ou a despeito disso – tampouco encontrei a resposta para a pergunta que já não me lembro qual era.

Vivo a fazer tantas perguntas... Qual teria sido a da vez?

Mas talvez não exista de fato a tal árvore que, do alto da sabedoria contida em seu tronco e em sua imponente copa, possa trazer respostas às minhas elucubrações. Talvez – e é uma possibilidade que se me revela a cada dia mais forte – não hajam mesmo respostas, resumindo-se a existência a esse eterno caminhar para o nada, o breu, o desconhecido.

Talvez não exista mesmo essa coisa de felicidade e tampouco ações ou conquistas que nos possam proporcionar um bem-estar duradouro, e, no final das contas, devamos nós nos contentar com aquele bem-estar passageiro de ir sozinho ao cinema no final da tarde e, com alguma sorte, reencontrar aquele colega da facul ou aquele amor cuja presença jamais lhe foi oportunizada. São algumas das migalhas que a vida dá... mas mesmo pra isso é preciso ter sorte.

Talvez a conquista de alguma paz interior seja mais árdua para a nossa geração porque ela está condicionada a alcançar mais views, mais likes e mais comentários no Instagram, e a depressão se instala quando você, com os seus quatrocentos e poucos seguidores, se percebe um sujeito pouco ou nada interessante, sem uma vida badalada, sem um emprego descolado ou uma carreira louvável, sem um estilo excêntrico e uma aparência que lhe permita colocar no perfil uma foto sem camisa e óculos escuros com os aparelhos da academia ou a praia de Ipanema no fundo.

Talvez na teledramaturgia a felicidade só fique para o final não apenas como forma de manter o público cativo ao longo da trama, mas, também, como forma de dizer que só existe felicidade possível quando tudo acaba.

Talvez... apenas talvez...

Uma coisa, porém, é fato: mais que com “avanço conservador”, “alastramento do fascismo” ou “regime ditatorial”, #resistência tem a ver com a gente conseguir sobreviver à nossa própria mente adoecida. Tem a ver com a gente acordar amanhã e perceber que venceu mais um dia. #resistência tem a ver com a gente sair vitorioso sobre os nossos próprios demônios e permanecermos vivos, apesar de nós mesmos.

Eu vi o sol nascer hoje. E estou fazendo força para vê-lo de novo amanhã.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Ideologias versus princípios

Fonte: Médium, 2019.

Gente, deixa eu contar pra vocês uma coisa que muita gente parece desconhecer: quando você é favorável ou contrário a algo, tem-se aí o que se convencionou chamar de PRINCÍPIO, que, de acordo com a definição terceira do Houaiss, significa “ditame moral; regra, lei, preceito”. Dada a complexidade da existência humana, é fato que opiniões estanques só fazem criar sujeitos inflexíveis e, por conseguinte, inaptos à dinâmica da vida e incapazes de acompanhar o seu fluxo. Logo, é natural que algumas exceções fujam àquela regra tida como primeira (tais como roubar para matar a fome ou matar em legítima defesa). Havemos de nos ater, no entanto, ao fato de que um preceito demasiadamente maleável, moldado, descaradamente, ao sabor de nossas escolhas, preferências, humores e afins, revela, em lugar de princípios, um caráter frouxo e uma desonestidade intelectual lamentável.

Toda essa introdução é pra dizer exatamente o que você está pensando: ser contra a violência e a cultura do ódio é ser contra MESMO, e não apenas quando essa violência e ódio atingem o meu grupo, o meu familiar, o meu cachorro ou o meu político de estimação. Bancar o bonzinho e espiritualizado e, de repente, ficar fazendo piadinha e até acusar de farsa a agressão sofrida por um candidato – que, democraticamente, tem pleno direito de estar concorrendo ao cargo de Chefe do Poder Executivo – é cair na mesma relativização que tanto faz do Brasil uma nação marcada pela desigualdade.
Tão desonesto quanto é frequentar o culto e fazer ouvidos moucos e vista grossa para a morte de uma vereadora negra ou para a violência que vem fazendo uma curva ascendente no gráfico de homicídios motivados por homofobia, só pra citar um exemplo.
Uai, mas que empatia e tolerância é essa que me permite aplaudir quando o candidato ao qual sou contrário é esfaqueado? Que senso de fraternidade em Cristo é esse que me permite me antecipar a Ele e separar as ovelhas dos bodes (Mt 25:31-46) com base em preconceitos que Ele próprio rechaçou? Que igualdade é essa que idealizo hierarquizando o valor da vida de negros, empresários, policiais, travestis, favelados, ateus, conservadores, domésticas, professores etc.?
São os nossos princípios que guiam as nossas escolhas e não o contrário. Princípios podem, sim, serem revistos ao longo da vida, mas quando de repente falham quando o seu opositor se fode, é sinal de que suas ideologias já os corromperam, o que tira totalmente de você o direito de exigir princípios de seus governantes. Ah! E mentiras reconfortantes também não mudam nenhuma realidade tá?
O sonho de um Brasil para TODOS não pode demandar a extinção de uns e outros, o que, por si só, revelaria um sonho sem alicerce firme e uma ética de caráter duvidoso. A paz que almeja se estabelecer por meio da guerra é uma paz leviana e covarde, incapaz que é de acolher em seu seio a divina e maravilhosa diversidade humana. “Todos ganham quando todos ganham”, sobretudo no que tange à vida e à dignidade. Não se esqueça disso.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Assim como a Fênix - Francisca Gomes



“Compreendamos, então, a utilidade do sofrimento em nossa vida e aprendamos com este salutar medicamento que, com sua aspereza, saneia nosso caráter. Deus, Pai soberanamente justo e bom, coloca-nos sempre nos cenários em que atuaremos com os antagonistas certos, para com eles ressarcirmos nossas dívidas e nos tornarmos, todos, protagonistas de uma história com desfecho feliz.” (pág. 163)

A manhã era o momento mais difícil (não que seja fácil agora), tão hercúlea me parecia a tarefa de sair da cama e enfrentar o dia, fazendo do toque do despertador algo como um apito de um árbitro de MMA a anunciar a hora de eu me colocar no ringue e, passado o período de descanso que me era proporcionado tão somente pelo sono, encarar o temível adversário que era a minha mente. E nessa luta, como era sabido, não seria eu o vencedor. A depressão que há anos vinha se desenvolvendo desembocara numa espécie de transferência, uma paixão arrebatadora por um terapeuta alternativo, oportunamente (e dolorosamente) trazendo à tona questões complexas sobre mim mesmo. E foi em meio a esse turbilhão que conheci a poesia de Francisca Gomes, sem, em momento algum, porém, imaginar que ela viria a desbravar novos horizontes em sua produção literária, escrevendo um romance no qual tanto vi refletido da minha própria história.

Devo, porém, confessar que, por mais que eu me haja regozijado com o meu exemplar de “Assim como a Fênix” em mãos, acompanhado de alguns mimos relacionados à Doutrina Espírita gentilmente enviados pela IDE Editora como brinde, eu não me via verdadeiramente disposto à leitura de um romance do gênero. Havendo recentemente me aventurado pela leitura de um romance espírita, bem como pela tentativa de leitura de outro, eu me via resistente a essa literatura, enfadonhas que se me haviam mostrado aquelas experiências. Havia, porém, um significativo ponto a favor de “Assim como a Fênix”. Muito mais relevante do que a profundidade do seu título ou a incontestável qualidade de sua belíssima capa, havia o fato de se tratar de uma obra de Francisca Gomes, escritora que, além de ser objeto do meu mais profundo afeto, havia sido capaz de me encantar com a sua poesia, impossibilitando-me crer que seria diferente em sua narrativa. E, assim, lá fui eu me enveredar pelas desventuras e resgates da personagem Míriam.

E eis que, dentre as tantas surpresas com as quais me deparei durante a leitura, está o fato de se tratar de um livro corajoso, dedicado que é à abordagem de temas ainda espinhosos para considerável parcela de nossa sociedade. Trata-se, porém, de uma abordagem sóbria, livre do radicalismo e passionalidade característicos da tão necessária militância. Racismo, depressão, suicídio, bullying e homossexualidade desfilam pelas páginas do esmerado texto de Francisca Gomes com menor ou maior destaque, mas sempre com o tom necessário à sensibilização do leitor para a dor humana na experiência de cada uma dessas situações.

Há que se considerar o fato de não ser imediata a empatia pela personagem central. Sendo-nos já apresentada como uma mulher tomada por uma dor com motivações desconhecidas a princípio, é um tanto árduo para o leitor torcer pela mesma já de início, vez que dela nada se sabe além de seu notório estado depressivo. Convém, no entanto, que mesmo essa resistência seja objeto de atenção, podendo refletir uma dificuldade humana de se sensibilizar e lidar com a dor do próximo. Numa análise puramente literária, porém, percebe-se uma pequena falha na apresentação da personagem, que, com suas dores, silêncios e resistências, torna-se um tanto indigesta para o leitor. Isso, no entanto, se dá apenas nos capítulos iniciais, depois dos quais o leitor vai sendo totalmente envolvido pela personagem, pelas suas tragédias pessoais – que bem justificam o seu sofrer – e, sobretudo, pelo seu crescimento e autodescoberta.

A narrativa ganha considerável fôlego a partir do acidente sofrido por Míriam, ao final do segundo capítulo. Não por acaso, o acidente que se apresenta como ponto de virada na narrativa se dá em meio a uma tempestade, que, em literatura e algumas outras expressões artísticas, é símbolo comumente utilizado como prenúncio de grandes mudanças. E é a partir daí que o leitor é positivamente arrastado por uma avalanche de reviravoltas que só fazem provar o precioso amparo de uma força maior que, como bem prova a história de Míriam, escreve certo por linhas certas.

Salta aos olhos do leitor o comprometimento de Francisca Gomes com a sobriedade na abordagem dos temas aos quais se propõe. Nesse sentido, a mesma Míriam que busca na doutrina de Allan Kardec (1804 ­– 1869) suporte para lidar com a sua doença também recorre ao tratamento terapêutico e psiquiátrico, o que inclui o tratamento medicamentoso. Nesse âmbito, a obra se mostra fiel a um dos princípios básicos do espiritismo, que, tal como explica o item 8 do capítulo primeiro do Evangelho Segundo o Espiritismo, contesta a possibilidade de haver contradição entre a Ciência e a Religião, dado ser Deus o princípio básico de ambas. Assim, não há, em momento algum da narrativa, um posicionamento contrário de Arthur, psicólogo da protagonista, à sua frequência à casa espírita ou vice-versa. A alopatia e a espiritualidade caminham, portanto, lado a lado, configurando-se como tratamentos complementares um ao outro.

Assim, se de um lado a obra revela a intimidade de uma sessão de psicoterapia, cedendo espaço até mesmo para uma abordagem, mesmo que rasa, da transferência – situação comum ao processo analítico em que o analisando transfere suas projeções para o terapeuta –, de outro, o romance apresenta conceitos fundamentais ao entendimento do que vem a ser a Doutrina Espírita, bem como o funcionamento de uma casa espírita. Desse modo, “Assim como a Fênix” se revela como leitura adequada ao sujeito interessado em conhecer a doutrina, mas resistente aos espessos volumes escritos por Kardec e Chico Xavier (1910 – 2002), leituras essas obrigatórias aos que optam por se tornarem adeptos de tal filosofia.

No que tange ao tratamento do espiritismo em especial, merece destaque a muito bem-vinda “aula” que a autora, por meio do personagem Eduardo, nos dá quando da primeira visita de Míriam ao centro espírita (p. 160-165). Temos, ali, uma profunda e belíssima explanação acerca da utilidade do sofrimento, dada a sua função de mestre. Esse e outros ensinamentos dispostos ao longo da obra são, na verdade, universais e, portanto, necessários a todos, a despeito de inclinação religiosa ou filosófica.

Falhas pontuais podem, em certo nível, causar incômodo no decorrer da leitura, tais como uma aparente confusão entre os conceitos de homossexualidade e transexualidade (p. 180 e 329), bem como trechos que, mesmo que involuntariamente, podem transmitir a equivocada ideia de que os negros demandam a generosidade dos brancos (p. 150). Nada disso, porém, traz prejuízo real ao texto, que não tem o racismo e tampouco a homoafetividade como seus temas centrais, apresentando, sim, a depressão e, por conseguinte, o suicídio como grandes vilões da história e da vida humana.

Ainda no que se refere ao comprometimento de Francisca Gomes com a abordagem da Doutrina Espírita – comprometimento esse que deveria ser natural em toda obra do gênero, mas nem sempre o é –, há que se considerar o excelente trabalho que realiza ao, estrategicamente, revelar a ação da espiritualidade a partir da desmistificação da mesma. Aqui, portanto, não há aparição de espíritos e fenômenos sobrenaturais afins. O misterioso som de um piano que se ouve em um momento crucial da narrativa (p. 267) nada tem de misterioso, tendo origem de um rádio mal sintonizado (p. 272), e, se em certa ocasião o saudoso Chico Xavier, como consta em sua biografia, se aproximou de uma senhora durante uma reunião questionando se a mesma estaria viva ou morta, aqui não há motivos para tal preocupação. Estão todos bem vivos na obra de Francisca Gomes. Dessa forma, confronta-se o leitor com aquilo que ele talvez espere para, em seguida, desconstruí-lo, de modo a mostrar que “não há rituais, adivinhações ou coisas do tipo no Espiritismo” (p. 261), como bem alerta a personagem Samanta.

E, se na obra da escritora cearense, Deus não opera por meio de fenômenos metafísicos, decerto Ele o faz por meio da sincronicidade, termo esse cunhado por Carl Gustav Jung (1875 – 1961) como definição da ocorrência de eventos que coincidem de maneira significativa para os envolvidos. E é a partir desse conceito – naturalmente, sem menção na obra – que Francisca Gomes tece reviravoltas surpreendentes envolvendo tantos dos personagens (destaque para as revelações envolvendo os personagens Vicente e Samira). Nada é o que parece ser neste mais novo lançamento da IDE Editora, mas, tanto na leitura da obra como na vida, há que se ter certeza do infalível amparo do Criador.

Quanto a mim, a princípio simples leitor, espectador da tragédia e redenção da personagem Míriam, confesso-me fortalecido após a leitura, mais confiante e suficientemente empoderado para lidar com as minhas próprias falhas, perdoando a mim mesmo e fazendo dos preconceitos, perdas e silêncios alheios um impulso para um novo voo. Pois, assim como a Fênix, é preciso se reerguer das cinzas e, mesmo que sob a pressão de grandes cargas, riscar o céu, em chamas, voando em esplendor e beleza. Tudo isso para, ao final, compreendermos que o nosso grande vilão é, sobretudo, nós mesmos.

***

Sousa, Francisca de Jesus Gomes de. Assim como a Fênix. 1ª edição. Araras, SP: IDE, 2018.



segunda-feira, 4 de junho de 2018

Aprecie a travessia

 

Encerro expediente às 17h00 e sigo pela avenida Augusto de Lima, virando à direita na Bias Fortes. Nada de gastar com serviços de transporte. Já havendo feito esse trajeto, sei que, não havendo contratempos, chego à Praça da Liberdade em menos de trinta minutos, o que me dará outra meia hora para passear por entre as estantes da Biblioteca Pública antes de a mesma fechar as portas. Na mosca! Adentro o edifício Professor Francisco Iglésias às 17h27. Devolvo o delicado “Enternecidamente”, de Mercês Maria Moreira, e corro ao segundo andar, ciente de quão curto é o tempo que me resta.

Com a desenvoltura de quem ali já estagiou há exatos dez anos, localizo as obras com facilidade a partir dos números de chamada anotados de antemão. “Quantos livros posso levar?”, pergunto apenas por desencargo de consciência, já sabendo a resposta. Também, pudera, nenhum filho de Deus conseguiria ler, no prazo de duas semanas, os sete livros por mim listados. Resignado, retorno ao primeiro andar com os três volumes em mãos: uma bela parceria entre Elisa Lucinda e Rubem Alves, um muito elogiado título de Deepak Chopra e um outro um tanto intrigante, dado haver sido supostamente escrito por uma inglesa que, optando pelo anonimato, serviu de canal para o próprio Cristo.

Efetivado o empréstimo, saio da biblioteca às 17h55. Afoito por já dar uma espiada nas obras, busco um banco livre na Praça da Liberdade, mas eis que o cenário de algumas das minhas mais encantadoras memórias se encontra demasiadamente escuro para a leitura, sobretudo em se tratando de alguém com visão subnormal. É melhor ler no ônibus, no caminho de volta para casa. Retornar sentado, porém, só mesmo no 3053, que faz o seu retorno pela rua lateral do prédio onde trabalho. Concluído isso, sigo os 2 km de volta, descendo a avenida Bias Fortes, circundando a Praça Raul Soares e adentrando a Augusto de Lima à esquerda. E lá estou eu, à postos na rua Ouro Preto aguardando o ônibus que não tardou a chegar. Embarco, sento como o planejado e me dedico à leitura da contracapa e das orelhas de cada uma das obras.

Foi um pouco antes, no entanto – quando eu ainda aguardava o meu ônibus na Ouro Preto – que, surpreendido por um sentimento de gratidão pelos simples ocorridos das últimas duas horas e meia, me veio uma reflexão e, por conseguinte, a inspiração para este texto. Enquanto aguardava o lotação, dei-me conta de que tudo havia dado certo: sem gastos desnecessários, eu havia chegado à biblioteca a tempo, havia localizado os títulos dos quais necessitava e, com disposição e vigor suficientes, eu havia feito o caminho de volta, estando ali, com os tão queridos livros na mochila e prestes a embarcar e seguir rumo à minha casa.

Muita gente me poderia dizer que sentir-me grato por coisas tão simples equivale a contentar-me com migalhas, estar com a vida ganha ou qualquer bobagem do tipo. Penso, no entanto, que isso depende muito do ângulo sob o qual se escolhe encarar essas pequenas grandes conquistas. Eu optei por encará-las a partir do fato de ser a biblioteca pública uma alternativa a qual tantos de nós recorrem diante da impossibilidade de adquirir determinado livro. Optei por encará-las a partir da conclusão de que, felizmente, vivemos em um contexto no qual os livros são permitidos, havendo até instituições governamentais que os disponibilizem para empréstimo. Optei por encará-las considerando a existência de tanta gente que, por limitações impostas por alguma deficiência ou por avançada idade, jamais poderia ir e voltar a pé por aquele mesmo caminho. Optei por encará-las a partir da ciência de que muita gente nem sequer poderia considerar a possibilidade de frequentar a biblioteca pública em razão do horário de trabalho e afazeres afins.

E é essa avaliação que tornou grandes as pequenas conquistas e, de repente, fez o meu sentimento de gratidão maior que as tantas inquietações que me tumultuavam a mente. A despeito de não ter carro e nem mesmo vislumbrar a possibilidade de vir a dirigir, eu tenho o transporte público que eu posso pagar e que me permite o fácil deslocamento, mesmo no contexto de uma cidade com trânsito caótico. A despeito da baixa visão, eu poderia me sentar no ônibus e, lançando mão dos meus óculos de leitura ou da minha lupa, viajar nos meus livros. A despeito das insatisfações que eu possa ter a respeito de onde atualmente moro, eu estava rumo à minha casa, certo de um lanche, um banho, uma pesquisa na internet, uma telenovela e uma noite de sono. Ao cair da noite, quantos de nós segue vagando a esmo sem ter pouso certo ou mesmo sem a certeza de um dia seguinte, tal é a exposição à violência das ruas.

Se bem que essa certeza nenhum de nós tem de fato... Então, se é assim, não seria mais adequado o exercício da gratidão pelas graças comumente despercebidas? Acordar; tomar café; ter um ônibus que, mesmo lotado, possibilita o deslocamento até o trabalho; ter colegas que fazem rir; almoçar; respirar; viver... E isso nada tem a ver com conformismo. Muito pelo contrário, tem a ver com mudar o foco da falta, das coisas que ainda não temos, para a infinidade de tesouros que temos agora, sendo justamente isso, essa gratidão, esse reconhecimento, o que nos dá o ânimo, a energia necessária para nos empenharmos na concretização dos nossos objetivos, na realização dos nossos sonhos.

Como posso eu ser digno do “gran finale” se me mostro incapaz de reconhecer os pequenos milagres do dia a dia. Seria como desejar obter boas notas sem prestar atenção às aulas. Ora! Não espere demais de uma vida cujas tantas graças você ignora. Não se engane aguardando aquele grande momento que, como num passe de mágica, trará beleza e sentido a todas às coisas. Pelo contrário, enxergue a beleza agora, desvencilhando-se da ideia de que viver pressupõe um árduo, penoso e monótono percurso até o diploma, até a viagem tão sonhada, até o grande amor, até aquela promoção no trabalho, até a aposentadoria, até o paraíso... Dá pra se divertir bastante ao longo desse percurso, e quanto mais você reconhece isso, mais você se apercebe do fato de que a concretização daquele grande sonho é apenas mais uma benção entre tantas!

E se o meu conselho não lhe for o bastante, tome para si, então, as palavras do grande João Guimarães Rosa, que, a despeito dos aclives e declives de suas veredas, nos ensina que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” E a felicidade? Ah!, a felicidade... Ela “se acha é em horinhas de descuido.”

Texto originalmente publicado em minha coluna no Eu Sem Fronteiras.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Marielle Franco, presente!


Quando uma mulher, negra, lésbica, feminista, ativista, defensora dos direitos humanos e 5ª Vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro em 2016 é morta; quando uma militante o suficientemente corajosa para contrariar o sistema e criticar o que há de nocivo neste país é morta; quando uma socióloga e política com peculiar bravura e espírito público é morta; quando lemos comentários de ódio contra a vítima, tomando como compreensível e até louvável a sua morte – “falou contra a polícia, foi a favor de bandido, é nisso que dá” –, a gente precisa parar para refletir sobre o País que queremos e sobre os rumos que temos tomado.
Como se não bastasse a dor da perda, é preciso que encaremos ainda o fato de que os tiros disparados contra Marielle não atingiram somente a ela, mas também aos pobres, negros, moradores de favela, mulheres e LGBTs. Atingiu a todos esses que, incompreendidos em sua luta, são tidos como baderneiros, imorais, bizarros, defensores dos “direitos dos manos” etc., assim rotulados por gente que nunca adentrou as estreitezas de sua dolorida realidade.
Transcrevo aqui a pergunta feita pela própria Marielle um dia antes de sua morte. "Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?" Quanto ainda teremos que sofrer para entender o que, à direita e à esquerda, definitivamente não tem funcionado neste país? Quantos sobressaltos ainda se farão necessários para que aprendamos a viver como nação? Quanto teremos ainda que perder para, finalmente, nos darmos conta da desprezível atuação das forças contrárias ao bem, à justiça e à equidade?
Infelizmente não sei, restando-nos, portanto, confiar no empenho e competência da polícia, a quem cabe a investigação, bem como torcer para que mais essa tragédia nos sirva de alerta para o mal que as tantas divisões nos têm feito e, sobretudo, para o quão doentes estamos enquanto sociedade.
“Que tiro foi esse?” Então... parece que, finalmente, nos veio a resposta. É o tiro que, dia após dia, tem matado a cada um de nós.
Marielle Francisco da Silva (27/07/1979 - 14/03/2018).
Segue em paz.
Que Jesus te receba.
Que Jesus te guarde.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Das cobranças que nos afastam de nós

Já dizia o pai da psicanálise: “Antes de diagnosticar a si mesmo com depressão ou baixa autoestima, certifique-se primeiro de que você não está, de fato, cercado por idiotas”.

Você já se perguntou quantas das ações do seu dia a dia têm como base os seus anseios mais profundos e quantas delas estão alicerçadas em expectativas alheias? Pois eu gostaria de lhe propor esse breve exercício, ao qual eu mesmo me tenho dedicado com considerável empenho ultimamente. A escrita pode ser bastante útil aqui, elencando-se em duas colunas todas as ações, comportamentos e hábitos voltados ao atendimento das próprias necessidades e aqueles destinados a atender às expectativas alheias. Trata-se de um exercício que, comumente, rende bons resultados em sessões de terapia. Acredite em mim.

Você perceberá que a dor, na grande maioria das vezes, se dá pela nossa tola necessidade de ser aceito, de estar de acordo, de atender a expectativas criadas sobre nós, mas sobre as quais nunca tivemos responsabilidade alguma. E, assim, o humano converte-se em um autômato, sempre programado para atender às demandas de uma sociedade que nunca vai considera-lo bom o bastante. Pois, depois da graduação, é preciso fazer o mestrado, e depois o doutorado, e depois construir uma família, e depois ter filhos, e depois ter o emprego perfeito... Há sempre um depois que o mantêm na sensação de falta, de incompletude, consequência de uma sociedade que, em lugar de orientar o indivíduo a agir no mundo de acordo com a sua própria volição, prepara-o para acreditar-se livre em um regime escravagista. Um escravo conformado, um ser habituado às sombras na Caverna de Platão.

Você não precisa ir para a faculdade, que nada mais é que uma alternativa para a tão sonhada ascensão social. E mesmo isso não precisa ser um sonho seu. Você não precisa estar na moda se adora e se sente bem com os seus tênis surrados e aquele estilo tido como “démodé”. Você não precisa encher a cara ou fumar maconha por medo de ser isolado do grupo de amigos. Se o seu estilo é mais caseiro ou se curte um cinema em vez da balada, o ideal talvez seja trocar de amigos em vez de anular-se. Você não precisa fazer nada além de ser ético, justo e compassivo para com os outros. Trata-se, aqui, de ser um egoísta no bom sentido, cultivando aquele egoísmo que equivale não à arrogância e indiferença, mas, sim, a ser aquilo que você realmente é. Talvez um arrogante e indiferente... quem sabe? Para sabe-lo, basta investigar-se, basta finalmente comparecer ao encontro marcado consigo mesmo desde que estreou neste mundo.

Fazer parte de uma minoria não necessariamente equivale a ser o errado da história. Não conseguir se encaixar não raro é uma benção. Os grandes homens que a humanidade já viu – como Jesus, Giordano Bruno e Gandhi, só para citar alguns deles – fizeram história justamente por haverem se destacado pela diferença, por pensarem fora da caixinha, por saírem dos padrões estabelecidos e viverem a sua verdade. Paga-se um preço por isso, é claro. Alguns são crucificados, queimados ou baleados. E, neste ponto, talvez você me pergunte: “Mas, Alex, de que vale a pena viver a minha verdade se posso ter o isolamento, o preconceito ou até a morte como consequência?” Ora! É uma questão de escolha, valendo considerar que uma vida pautada pelas expectativas alheias já é a morte, um estado vegetativo, nem de longe uma vida de verdade. Portanto, vá fundo, olhe para você, investigue-se e seja aquilo que você realmente é. Há consequências, e elas podem sim ser fatais. Mas, ainda assim, eu prefiro uma consequência fatal a uma vida perpassada pela fatalidade.

Não desista de você!