segunda-feira, 4 de junho de 2018

Aprecie a travessia

 

Encerro expediente às 17h00 e sigo pela avenida Augusto de Lima, virando à direita na Bias Fortes. Nada de gastar com serviços de transporte. Já havendo feito esse trajeto, sei que, não havendo contratempos, chego à Praça da Liberdade em menos de trinta minutos, o que me dará outra meia hora para passear por entre as estantes da Biblioteca Pública antes de a mesma fechar as portas. Na mosca! Adentro o edifício Professor Francisco Iglésias às 17h27. Devolvo o delicado “Enternecidamente”, de Mercês Maria Moreira, e corro ao segundo andar, ciente de quão curto é o tempo que me resta.

Com a desenvoltura de quem ali já estagiou há exatos dez anos, localizo as obras com facilidade a partir dos números de chamada anotados de antemão. “Quantos livros posso levar?”, pergunto apenas por desencargo de consciência, já sabendo a resposta. Também, pudera, nenhum filho de Deus conseguiria ler, no prazo de duas semanas, os sete livros por mim listados. Resignado, retorno ao primeiro andar com os três volumes em mãos: uma bela parceria entre Elisa Lucinda e Rubem Alves, um muito elogiado título de Deepak Chopra e um outro um tanto intrigante, dado haver sido supostamente escrito por uma inglesa que, optando pelo anonimato, serviu de canal para o próprio Cristo.

Efetivado o empréstimo, saio da biblioteca às 17h55. Afoito por já dar uma espiada nas obras, busco um banco livre na Praça da Liberdade, mas eis que o cenário de algumas das minhas mais encantadoras memórias se encontra demasiadamente escuro para a leitura, sobretudo em se tratando de alguém com visão subnormal. É melhor ler no ônibus, no caminho de volta para casa. Retornar sentado, porém, só mesmo no 3053, que faz o seu retorno pela rua lateral do prédio onde trabalho. Concluído isso, sigo os 2 km de volta, descendo a avenida Bias Fortes, circundando a Praça Raul Soares e adentrando a Augusto de Lima à esquerda. E lá estou eu, à postos na rua Ouro Preto aguardando o ônibus que não tardou a chegar. Embarco, sento como o planejado e me dedico à leitura da contracapa e das orelhas de cada uma das obras.

Foi um pouco antes, no entanto – quando eu ainda aguardava o meu ônibus na Ouro Preto – que, surpreendido por um sentimento de gratidão pelos simples ocorridos das últimas duas horas e meia, me veio uma reflexão e, por conseguinte, a inspiração para este texto. Enquanto aguardava o lotação, dei-me conta de que tudo havia dado certo: sem gastos desnecessários, eu havia chegado à biblioteca a tempo, havia localizado os títulos dos quais necessitava e, com disposição e vigor suficientes, eu havia feito o caminho de volta, estando ali, com os tão queridos livros na mochila e prestes a embarcar e seguir rumo à minha casa.

Muita gente me poderia dizer que sentir-me grato por coisas tão simples equivale a contentar-me com migalhas, estar com a vida ganha ou qualquer bobagem do tipo. Penso, no entanto, que isso depende muito do ângulo sob o qual se escolhe encarar essas pequenas grandes conquistas. Eu optei por encará-las a partir do fato de ser a biblioteca pública uma alternativa a qual tantos de nós recorrem diante da impossibilidade de adquirir determinado livro. Optei por encará-las a partir da conclusão de que, felizmente, vivemos em um contexto no qual os livros são permitidos, havendo até instituições governamentais que os disponibilizem para empréstimo. Optei por encará-las considerando a existência de tanta gente que, por limitações impostas por alguma deficiência ou por avançada idade, jamais poderia ir e voltar a pé por aquele mesmo caminho. Optei por encará-las a partir da ciência de que muita gente nem sequer poderia considerar a possibilidade de frequentar a biblioteca pública em razão do horário de trabalho e afazeres afins.

E é essa avaliação que tornou grandes as pequenas conquistas e, de repente, fez o meu sentimento de gratidão maior que as tantas inquietações que me tumultuavam a mente. A despeito de não ter carro e nem mesmo vislumbrar a possibilidade de vir a dirigir, eu tenho o transporte público que eu posso pagar e que me permite o fácil deslocamento, mesmo no contexto de uma cidade com trânsito caótico. A despeito da baixa visão, eu poderia me sentar no ônibus e, lançando mão dos meus óculos de leitura ou da minha lupa, viajar nos meus livros. A despeito das insatisfações que eu possa ter a respeito de onde atualmente moro, eu estava rumo à minha casa, certo de um lanche, um banho, uma pesquisa na internet, uma telenovela e uma noite de sono. Ao cair da noite, quantos de nós segue vagando a esmo sem ter pouso certo ou mesmo sem a certeza de um dia seguinte, tal é a exposição à violência das ruas.

Se bem que essa certeza nenhum de nós tem de fato... Então, se é assim, não seria mais adequado o exercício da gratidão pelas graças comumente despercebidas? Acordar; tomar café; ter um ônibus que, mesmo lotado, possibilita o deslocamento até o trabalho; ter colegas que fazem rir; almoçar; respirar; viver... E isso nada tem a ver com conformismo. Muito pelo contrário, tem a ver com mudar o foco da falta, das coisas que ainda não temos, para a infinidade de tesouros que temos agora, sendo justamente isso, essa gratidão, esse reconhecimento, o que nos dá o ânimo, a energia necessária para nos empenharmos na concretização dos nossos objetivos, na realização dos nossos sonhos.

Como posso eu ser digno do “gran finale” se me mostro incapaz de reconhecer os pequenos milagres do dia a dia. Seria como desejar obter boas notas sem prestar atenção às aulas. Ora! Não espere demais de uma vida cujas tantas graças você ignora. Não se engane aguardando aquele grande momento que, como num passe de mágica, trará beleza e sentido a todas às coisas. Pelo contrário, enxergue a beleza agora, desvencilhando-se da ideia de que viver pressupõe um árduo, penoso e monótono percurso até o diploma, até a viagem tão sonhada, até o grande amor, até aquela promoção no trabalho, até a aposentadoria, até o paraíso... Dá pra se divertir bastante ao longo desse percurso, e quanto mais você reconhece isso, mais você se apercebe do fato de que a concretização daquele grande sonho é apenas mais uma benção entre tantas!

E se o meu conselho não lhe for o bastante, tome para si, então, as palavras do grande João Guimarães Rosa, que, a despeito dos aclives e declives de suas veredas, nos ensina que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” E a felicidade? Ah!, a felicidade... Ela “se acha é em horinhas de descuido.”

Texto originalmente publicado em minha coluna no Eu Sem Fronteiras.