quarta-feira, 17 de abril de 2019

A beleza triste das coisas

Madrugada. É sempre madrugada por aqui. Nariz congestionado e vozes na minha mente que não me deixam dormir. Tenho em mim escuridão suficiente para tornar nublado o mais belo dia de sol. Às cegas, tateio o pequeno criado ao lado da cama, na esperança de encontrar no smartphone entretenimento melhor do que a programação que minha abjeta existência é capaz de oferecer. Chegado à teledramaturgia desde a mais tenra idade, vejo nas vidas de mentira das redes sociais um passatempo necessário não necessariamente agradável.

Mergulhado em um estado deplorável no qual nada tenho a perder, acesso o seu perfil e o vejo lá. Em um vídeo – algo raro entre os seus stories, comumente dedicados à frases motivacionais e imagens de deuses indianos – ele pede desculpas pela “cara toda amarrotada” e define como “linda” a manhã chuvosa de então, adjetivo incomum para dias sem sol. Gesto típico de quem, grato pela vida, vê beleza em algo triste como um temporal.

A beleza triste das coisas...

Mais à diante, pede a um vira-latas, encolhido sobre uma almofada, que deseje um bom dia ao “pessoal”. De imediato, passo a invejar o cachorro, cuja existência lhe é, certamente, mais valiosa que a minha, já esquecida entre os tantos e tantos personagens que já contracenaram com ele neste interminável drama da existência. Na vida dele, tal como na minha própria, fui mero coadjuvante.

As emoções provocadas pelo cão tão notoriamente amado me trazem à memória os versos que escrevi há alguns anos, quando a poesia ainda era saída e possibilidade de expressão.

Como deve ser feliz a brisa que te toca.

Quão alegre deve ser o seio que o compraz.
Grande é o desejo e a saudade que sufoca.
Do seu beijo eu sou mendigo.
Um poeta pertinaz.

Escrevi, na lousa da memória, bem como em algum papel que já não tenho mais.

Olho, pela última vez, a face serena do recém-desperto homem-de-meu-mesmo-nome, antes de deixar o aparelho de lado. Uma punheta tão desesperada quanto ligeira impede a lágrima que se anuncia. Respiro. Três da madrugada. É sempre madrugada por aqui... O que começou como garoa se intensifica lá fora. Os meus cães, igualmente amados, estão também em segurança. Diferente de mim, que, arfante e prestes a cair no sono, juro pra mim mesmo que, um dia – no fatídico dia em que eu virar gente – ainda hei de compartilhar uma manhã contigo...