terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Sobre fé e escuta

O céu de fim de tarde é pura poesia com o tom azul-marinho que assume antes de se converter em completa escuridão. Em pensar que em algumas horas ele será, de novo – e se não chover – de um azul-celeste límpido como a água das nascentes! Mas veja que interessante: mesmo no breu a poesia reside, talvez por haver nele a promessa da manhã. E se a gente aplicasse em nossa vida essa lição da natureza, compreendendo que tudo tem a sua contraparte?

Sentado na pracinha enquanto descansava da minha caminhada, me pus a observar uma pequena, que – após se alternar, alegremente, entre os brinquedos e aparelhos de ginástica – correu de volta para o interior do condomínio. Decerto os pais lhe haviam imposto um tempo limite fora de casa. E foi pensando nas mil possibilidades da menina, ainda alheia às dores do amanhã, que me peguei pensando nas minhas.

Interlocutora atenta que é, a vida é infalível em oferecer respostas, e foi nas primeiras sombras que cobriam o dia que pude contemplar as respostas das quais carecia. Convém não hesitar em fazer perguntas e, em seguida, ficar atento aos sinais, que virão não envoltos em uma aura sobrenatural, mas nos movimentos simples da vida.

Porque o desejo supremo do Divino não é chegar causando – porque, diferente de nós, Deus não carece de palcos e holofotes –, mas, sim, estar mais próximo de nós. Por isso Ele se utiliza do trivial para estabelecer conosco uma comunicação.

Portanto, calma, tenha fé, escute... Essa dor vai passar. É horrível enquanto ela perdura, eu sei bem, mas é igualmente gratificante quando a gente olha para trás e vê o quanto ela era pequena e até desnecessária!

Apenas vá para a janela e mira o horizonte. O manto escuro que que o Criador lançou sobre a terra envolve também aquele que, dentro em pouco, será o responsável pela sua contratação. É o mesmo manto que cobre o médico que vai tratar aquele parente tão querido ou aquele amigo que amanhã vai lhe dar uma excelente notícia! É o manto sob o qual está também aquele que virá a ser o amor da sua vida! Não é maravilhoso? Veja como vocês estão próximos...

Respire, se acalme, preste atenção. A vida não é uma grande vilã. E, em lugar de se revoltar contra ela, convém vive-la com dignidade e coragem, sem nunca fazer ouvidos moucos para as suas lições.

É bom ficar atento, pois, tal como a menina do meu condomínio, a gente também tem um tempo limite pra brincar.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Da paciência consigo

“Fiz tudo errado de novo!”

Ao menos foi esse o pensamento que me veio tão logo abri os olhos pela manhã. Passados alguns dias de vitória sobre um comportamento do qual estou lutando para me desvencilhar, lá estava eu de novo, desanimado, decepcionado comigo mesmo, debatendo-me para sair da cama e culpando-me pela nova recaída.

Passaram-se alguns minutos até que eu me refizesse, fizesse o sinal da cruz e fosse tomar o café.

Por favor, tenha um pouco mais de paciência com você. A cura é processual, e as oscilações são comuns ao longo da jornada. Ninguém é feito só de força, e há que se ter paciência na desconstrução de hábitos arraigados, talvez, há vinte ou trinta anos.

Há os que conseguem dar a volta por cima em questão de dias? Talvez haja, mas esse é o funcionamento deles, não o seu. Amar a si mesmo passa, sobretudo, por acolher as próprias debilidades. Não para perpetuá-las, claro, mas para reconhece-las como uma parte sua. Uma parte que você não quer mais que o governe, mas, ainda assim, uma parte sua.

Seja firme, mas pega leve. Parece paradoxal, mas não é! E vai ficar mais fácil à medida que você direcionar o foco da autocrítica exacerbada para o compromisso com a reforma íntima.

Comprometa-se, sim, com a autotransformação, mas tenha em mente que você vai falhar de vez em quando, e, quando menos esperar, estará enviando uma mensagem, estalqueando aquele ex, falando mal dos outros, assistindo à pornografia, apelando para as drogas, cultivando pensamentos sombrios etc.

Acontece. Por que você é fraco? Não! É só porque você é humano, e, como humano que é, tem dentro de si o potencial para sucumbir e para superar. As sementes da vitória e do fracasso estão abrigadas em você. Faça de si uma terra fértil para que germine aquela que vai fazê-lo sair do lugar.

Você é um ser humano... Não queira ser mais do que isso. Não pretenda-se um super-herói, mas, simplesmente, um ser que luta diariamente para vencer a si mesmo, “sem pressa e sem pausa”, pois é um dia de cada vez.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Um amor em construção

Amor-próprio é uma construção. Nenhum ser é pronto e acabado.

Por muito tempo, eu admirei (ou invejei) aqueles que eu julgava terem amor-próprio, sempre dividindo as pessoas entre as que se amavam e as que não se amavam. Somente depois de muitas situações que me renderam muita dor e bastante desgaste foi que percebi que aprender a se amar é um processo contínuo ao qual ninguém escapa.

Há, naturalmente, os que avançaram mais nesse processo. Há aqueles cujo amor-próprio atingiu um extremo, convertendo-se no mais profundo egoísmo. Há também aqueles tão perdidos de si mesmo que tudo aceitam dos outros, que pouco ou nada se cuidam, que pouco ou nenhum valor se atribuem...

Todos, porém, estão no caminho rumo a si mesmos, aprendendo, com o curso da vida, o que lhes acrescenta e o que lhes subtrai, o que os eleva e o que os diminui.

Alguém que pouco se ama pode, de repente, se surpreender com um elogio, uma promoção no trabalho, um reconhecimento etc., ao passo que alguém já mais avançado nesse processo pode sofrer uma perda, ganhar uma cicatriz, receber uma crítica etc.

Enfim, a vida é sempre mestra em nos ensinar a moderação na apreciação de nós mesmos. Porque somos algo ínfimo diante da imensidão que nos rodeia, mas nem por isso somos desprovidos de valor; pensamos ser mais esclarecidos em comparação a alguém, mas ignorantes perante a sabedoria que rege o mundo; estamos longe de ser Deus, mas a Ele nos assemelhamos e somos herdeiros do Seu poder...

Autoamor é, entre tantas acepções, equilíbrio entre a autocomiseração e o narcisismo. Enxergar a si sem se deixar cegar para o outro e vice-versa. Gostar de quem somos, mas ainda dedicados ao auto-aperfeiçoamento, à criação de uma versão 2.0, ainda mais avançada.

Você se ama quando cuida de si, quando se retira de contextos e situações que só lhe causam dor, quando deixa de mendigar atenção, quando não mais insiste em bater em portas fechadas e, sobretudo, quando se perdoa por fazer ou haver feito tudo isso.

O meu desejo é que, em lugar de ser cheio de si, você seja tomado de verdadeiro amor por si, acolhendo-se e superando-se a cada adversidade que vier desafiar esse romance.

Eu desejo que você se ame para poder amar, e, podendo amar, poder servir. É o mesmo que eu desejo pra mim.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Ser feliz é uma obrigação!

Você tem obrigação de vencer na vida. Não se trata de uma escolha, de algo do qual você possa abdicar sem pensar nas consequências que isso trará para você e para o outro. Você tem obrigação de, a cada dia, dar um passo rumo à sua felicidade. 

Eu vejo as pessoas dizendo coisas como “quero dar uma vida mais confortável para os meus pais”, “preciso oferecer algo aos meus filhos” etc. Não resta dúvida de que tudo isso seja de extrema relevância. Tenho convicção, porém, de que o que de melhor podemos oferecer ao mundo foge aos limites da matéria. 

Em nada contribuímos adquirindo uma cobertura no edifício mais alto do Leblon, do Alphaville ou do Belvedere. Muito fazemos pelo outro, porém, quando edificamos a nós mesmos, seja pela prática das virtudes, seja pelo exercício do bem, seja pelo inabalável empenho em tornar-se humano. 

Sabe aquele mito platônico no qual o cara escapa da caverna e, ao contemplar o dia lindo lá fora, retorna às sombras a fim de avisar aos demais? Perceba a beleza disso... É nos aproximando da luz – ou seja, nos tonando verdadeiramente humanos – que podemos mostrar aos outros o caminho. 

Vencermos a nós mesmos, nos elevarmos sobre as adversidades, é o que de melhor podemos fazer em prol da humanidade. 

Eu vi diminuírem drasticamente os meus pensamentos de morte quando me dei conta de que, ao me lançar no abismo, eu não iria sozinho. E foi aí que sair da depressão se tornou para mim não algo para o meu próprio benefício, mas um compromisso real com os que me rodeiam. Pois, ao sair de uma depressão, você tem a possibilidade de compartilhar com os outros o trajeto. 

É louvável quando a busca pela própria cura envolve um profundo comprometimento com a dor humana como um todo. Portanto, se o seu próprio bem-estar não é razão suficiente para provocar uma reação de sua parte – e eu bem sei o quanto o sentimento de menos valia pode nos conduzir a tal raciocínio – talvez lhe seja útil lembrar que, ao conseguir se curar, você também dá a milhares de pessoas a possibilidade de cura.

Naturalmente, você não precisa – e não vai – conquistar para si todas as medalhas. Importa, no entanto, que jamais lhe falte o ânimo de vitória, pois é a sua resiliência, persistência e garra – e não as suas posses – que inspiram os demais a também seguirem em frente. 

Atente-se para o fato de que, ao pensar sobre felicidade, você imediatamente recorre a seres que se fizeram grandes em profunda pobreza, sem nada deixar em termos materiais: Buda, Jesus, Sócrates, Epicteto e tantos outros. Obviamente, ninguém lhe está sugerindo aderir a uma vida ascética, o que seria um tanto estúpido. A sugestão é que as coisas sejam encaradas como meios, e não como fins, estando no horizonte aquilo que realmente há de nos elevar e nos fazer felizes. 

Eu quero que você não desista de você e que tenha consciência de que, ao vencer a luta diária, você leva consigo toda a humanidade. Essa batalha, sim, será o seu maior legado. 

Fique firme. 

E fica combinado que, quem chegar primeiro, avisa ao outro como se faz. 

Bom outubro.

sábado, 12 de setembro de 2020

A natureza pedagógica

Se você passar os olhos pela Mitologia Grega, verá algo interessante: jamais vemos um herói julgando-se azarado ou injustiçado. Até mesmo diante das mais terríveis tribulações, eles seguem firmes, pois têm ciência de que o objetivo primeiro dos deuses é o crescimento do ser humano.

Tudo tem uma razão se visto pela ótica pedagógica da natureza, pela lição que ela pretende nos proporcionar. A própria crise tem em si uma grande beleza, pois é um sinal de que trilhamos todo um caminho, esgotando uma experiência anterior para, então, vivermos algo novo.

Se o nosso mundo desmoronou, é porque está na hora de construirmos outro mundo, e uma sabedoria mais elevada nos julgou dignos e capazes de viver a crise para, então, construir o que precisa ser construído. Em algum lugar, alguém sabe que nós temos cacife para encarar o que se impôs em nossa vida. E qualquer semelhança com a frase “Deus não dá um fardo que não possamos carregar” não é mera coincidência...

Em geral, a vida nos aplica a pedagogia da escada: alcançamos uma estabilidade, mas já com uma parede diante de nós. O homem progride pulando de catástrofe para catástrofe, de degrau em degrau. E sacralizar a própria existência é dar sentido a esses sobressaltos.

Bendita seja a dor que muito nos honra, pois é sinal da existência de uma Inteligência Superior que nos sabe capazes, fortes, homens e mulheres o suficiente para darmos conta.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Motorista apaixonado

Ainda sofrendo as dores de uma história mal resolvida com o homem de meu mesmo nome, sentia os meus olhos marejarem ante as breguices de Gian e Giovani que se sucediam no rádio. E foi procurando conter as lágrimas que eu disse ao motorista – o meu quase xará –, em tom de pilhéria.

– Alexandre, eu estou achando que você está apaixonado, hein?

Estranhamente, recebi do cara que há pouco interagia tão descontraidamente comigo uma resposta séria, típica de quem tem a mente a quilômetros do momento presente.

– É... pior que eu estou mesmo. – Ele disse, reflexivo.

Versado na estúpida arte de me apaixonar, empolguei-me, pronto para bombardeá-lo com os conselhos que eu nunca segui. E eis que Alexandre me interrompeu antes que eu desatasse a fazê-lo.

– Mas não é o tipo de paixão que você está pensando, não.

– Não? – Perguntei, buscando na memória algum outro tipo de paixão que levasse as pessoas a escutarem músicas melodramáticas.

– Não. – Alexandre prosseguiu. – É que eu perdi o meu pai há quarenta dias e estou tentando me habituar a escutar as músicas que ele gostava.

Engoli em seco, receoso de falar alguma bobagem e novamente às voltas com a minha dificuldade em encontrar o que dizer diante de uma situação tão dolorida como a morte. Alexandre continuou, visivelmente emocionado.

– É que eu sempre choro ao escutar as músicas preferidas dele, e por isso estou tentando me acostumar com elas para parar de chorar na frente dos outros.

Estas últimas palavras foram ditas quando o carro já estacionava em frente ao meu condomínio. Pensei no meu pai, que neste mesmo dia, pela manhã, estivera em minha casa, resolvendo com o zelador questões não resolvidas por mim no espaço de um ano de moradia. Pensei em todas as razões – das utilitárias às não utilitárias – que tornam tão difícil a perda de um pai ou de uma mãe.

Não sei o que levou a óbito o pai de Alexandre. Talvez ele haja sido vítima do maldito vírus que se alastrou por toda a humanidade. Talvez haja sido a idade ou as doenças comuns ao seu avanço.

Enfim... Não sei e nem vou saber.

Lamentei, porém, não haver encontrado algo de significativo para dizer ao Alexandre, bem como o fato de haver passado a maior parte da viagem contendo as lágrimas por um outro Alex tão indigno de ser lembrado, enquanto o motorista continha as suas pela triste ausência do pai; um Alex que, além de ignorar a minha existência, provavelmente nem curte Gian e Giovani.

Não há muito o que fazer – nem por mim e nem pelo motorista –, a não ser fazer desta tentativa de prosa poética o meu minuto de silêncio pelo pai do Alexandre.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O dinossauro na autoestrada

Se você tem mais de duzentos e vinte e sete anos, certamente conhece este quadro (risos). Tal como os misteriosos “quadros das crianças chorando”, ele era comumente encontrado em casas mais humildes.

Recordo de, em criança, ficar observando-o em nossa casa lá no bairro Itaipu, onde morei até os meus dez anos de idade. A sensação que ele me causava, porém, não era boa, visto que – inocente que eu era –, concebia-o como uma fotografia, e não como a pintura que de fato é. Lembro de perguntar aos meus pais se aquilo havia acontecido por perto ou em outro país, sendo essa última possibilidade tranquilizadora para mim.

A vulnerabilidade dos motoristas – confirmada pelo veículo capotado – diante da criatura gigantesca me assustava, provocando um misto de pavor e piedade.

Não sei que fim teve aquele quadro. Apenas sei que o mesmo não nos acompanhou quando nos mudamos no final de 1994.

E hoje sei também que se trata de um quadro de 1980, intitulado “Dinosaurier auf der Autobahn" (O dinossauro na autoestrada) e de autoria do suíço Giuseppe Reichmuth. Parece-me que o pintor nasceu em 1944, mas não sei o que anda fazendo ou se ainda vive. É possível que haja sido engolido por um dinossauro...

domingo, 28 de junho de 2020

Do Orgulho à Liberdade



Há exatos 51 anos, um atrito entre a polícia de Nova Iorque e frequentadores de bares locais – sobretudo no contexto do Stonewall Inn, localizado no bairro de Greenwich Village, em Manhattan – marcou o dia 28 de junho como o Dia do Orgulho LGBT+.

A expressão Orgulho LGBT+, ainda pouco compreendida por muitos que lhe criticam o uso por não considerar digna de orgulho a condição homossexual e afins, surge como o oposto à “vergonha” e à “culpa” que a sociedade insistia (e ainda insiste) em tentar incutir no sujeito que escapa aos padrões da heterormatividade.

No meu entendimento, o substantivo “orgulho” não pressupõe que haja alguma vantagem em ser LGBT+. Até porque, convenhamos, não há vantagem alguma nisso, assim como não há vantagem alguma em ser heterossexual. A condição humana – e não a orientação sexual, identidade de gênero e afins – é o que nos coloca em vantagem em relação aos outros animais, vez que, caracterizada pelo uso da razão, nos dá a possibilidade (comumente pouco aproveitada) de empreendermos alguma ação em prol da humanidade.

A expressão me parece válida, porém, como forma de se expressar o amor-próprio que deve reger a existência do sujeito LGBT+ “apesar de”, como diria Clarice Lispector. Nesse sentido, cabe ao indivíduo LGBT+ reconhecer o seu valor como ser humano e lutar pela sua dignidade e exercício da liberdade “apesar de”: apesar da homofobia, apesar dos insultos, apesar das agressões físicas, apesar da resistência da família, apesar da condenação da igreja, apesar da depressão. Sempre “apesar de”.

No meu entendimento, porém, é preciso que, enquanto LGBT+, reconheçamos uma responsabilidade tanto ou mais relevante que a luta por direitos, que é o cuidado para que – ao enveredarmos pelo caminho da militância e da excessiva identificação com uma condição/orientação no contexto da sexualidade e/ou do gênero – não acabemos por oferecer combustível ao preconceito personalístico, que é a raiz de todos os preconceitos.

O preconceito personalístico, caracterizado pela supervalorização do “eu” em detrimento de tudo que dele difere e, por conseguinte, da humanidade, tem por base o egoísmo, que, se você parar para pensar, é o que jaz por trás de todo e qualquer problema pessoal e social.

O Orgulho LGBT+, portanto, deve nos conduzir ao degrau seguinte, levando-nos não a estacionarmos nesse rótulo – que é um dentre os tantos que nos são colocados quando chegamos a este mundo –, mas a nos colocarmos acima dele, reconhecendo-nos, primeiro, como integrantes da vida e da humanidade, tornando-nos, assim, eficientes em cumprir com o objetivo de buscar a Unidade, como defendia Platão.

Pedagógica como a vida é, parece-me válido tomarmos o isolamento social, que ora impede as Paradas do Orgulho LGBT+ mundo afora – evento esse que, ao meu ver, não raro contribui negativamente para a luta da referida comunidade –, como uma oportunidade para refletirmos a respeito; para nos perguntarmos se a excessiva militância não seria um subterfúgio a nos isentar do contato com a nossa sombra; para refletirmos no quanto a nossa luta contra o preconceito está embasada em preconceitos da mesma espécie; para pensarmos a massificação, comumente travestida por um ideal de liberdade, como um plano perverso contra o reconhecimento de nossa verdadeira natureza.

O exercício do autoamor, expresso na expressão Orgulho LGBT+, é útil à elevação a um outro nível, no qual, ao nos identificarmos tão somente com a condição humana, percebemo-nos prontos para amarmos a toda a humanidade, livres dos rótulos e bandeiras que tomamos como armaduras quando, na verdade, não passam de grilhões; livres das amarras e, finalmente, munidos da fraternidade, metaforizada na espada do grande guerreiro Jorge da Capadócia.

E isso, eu bem sei, exige muita coragem, ação guiada pelo coração (do latim coraticum = cor + agis). Coragem para encararmos a nossa sombra, coragem para abrirmos mão dos nossos preconceitos, coragem para sermos livres e felizes, coragem para nos reconhecermos como Um.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

O que arrasta é o exemplo



“Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. São dizeres que, se por um lado denotam hipocrisia, por outro podem revelar certo altruísmo, ainda que distorcido, quando vindos de alguém que pretenda poupar o outro dos caminhos por ele percorridos.

De qualquer forma, porém, não me parece uma pedagogia lá muito eficaz, sendo ela severamente criticada, inclusive, no texto bíblico, seja quando Jesus desaprova o comportamento dos “mestres da lei e os fariseus” em razão da incoerência entre suas ordens e ações (Mateus 23:2-3), seja quando Pedro, em sua epístola, orienta os pastores a atuarem não como dominadores dos que lhes são confiados, mas como exemplos para o rebanho. (I Pedro 5:3).

Uma frase de autoria desconhecida, mas comumente atribuída a este ou àquele personagem histórico diz que “a palavra convence, mas o exemplo é o que arrasta”.

Etimologicamente, exemplo tem origem do latim exemplum, que, literalmente, significa “uma amostra”, “o que é retirado”, e, por sua vez, deriva do verbo eximere – ex- (fora) + -emere (tirar) –, que equivale a “tirar”, “remover de”. Veja que coisa bonita: em seu sentido original, a palavra expressava a ideia de que, ao ser exemplo de alguma virtude – como a bondade, a honestidade, a resiliência e afins –, a pessoa era tida como uma pequena amostra de algo maior. Talvez de Deus, expressão máxima das virtudes. A primeira definição que o Dicionário Houaiss apresenta para o termo é “tudo que pode ou deve ser imitado; modelo”.

Você já deve ter visto aquela charge em que duas mães, junto de seus respectivos filhos, estão sentadas em um banco de praça, ao que uma, vendo o filho da outra com um livro em mãos enquanto o seu permanece vidrado no celular, pergunta-lhe: “O que você faz para o que o seu filho leia?” Detalhe: a mãe inquiridora tem um celular em mãos, enquanto a outra tem nelas um livro aberto.

Diz-se que certa vez uma mãe levou o seu filho a Mahatma Gandhi e implorou que ele orientasse o garoto a parar de consumir açúcar, ao que Gandhi, após uma pausa, disse: “Traga o seu filho novamente em duas semanas.” Embora intrigada, a mãe agradeceu, prometendo fazer o que lhe fora orientado. Assim, passadas duas semanas, eis que a mulher leva o seu filho novamente à presença de Gandhi, ao que o mestre encara o garoto nos olhos e diz: “Pare de comer açúcar.” Agradecida, mas ainda mais perplexa, a mãe pergunta a Gandhi por que razão ele lhe havia mandado retornar em lugar de haver simplesmente orientado o garoto há duas semanas, quando de sua primeira visita, ao que Gandhi respondeu: “Há duas semanas eu estava comendo açúcar.”

Pensar o caráter educador do exemplo me parece urgente em tempos em que virtudes como empatia e retidão se mostram tão presentes no discurso político enquanto, na prática, o egoísmo continua a ser a base do nosso comportamento e seguimos apegados à corrupção nossa de cada dia. O exemplo é o que arrasta, minha gente, e não a nossa demagogia.

É natural que, ao falarmos de exemplo, pensemos em nossa postura diante de nossos filhos, alunos, subordinados e afins. Vale, porém, ampliarmos um pouco mais esta discussão de modo a contemplar também os governantes que tanto criticamos.

Ora!, seria mesmo possível que ditadores, elitistas e corruptos nasçam no seio de uma sociedade virtuosa? Depositar em impeachments e em eleições toda a nossa expectativa por renovação não seria como trocar de espelho em razão da espinha que vimos no rosto ontem?

Epicteto (55 d. C. – 135 d. C.) chamava de escravo aquele que insiste em lutar contra coisas que não dependem dele sem nada fazer quanto àquilo que de fato lhe compete. É um pouco o que fazemos quando, passionais ou mesmo dominados por uma tola ilusão, esperamos mudar os outros pela palavra pouco ou nada nos empenhando em sermos exemplo.

É que ser exemplo dá trabalho! Mudar a nós mesmos dá trabalho. A única alternativa a esta mudança, porém, é seguirmos dedicados aos nossos inflamados, mas vazios discursos, colhendo, assim, os miseráveis resultados de sempre.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal - Andrei Moreira



Foi por acaso que ele se revelou para mim. Eu estava na Livraria Leitura do Boulevard Shopping quando o vi e, surpreendido pela temática e pela belíssima capa, na qual dois cravos ilustram poeticamente a homoafetividade, levei-o para casa.

Como de hábito, não o li de imediato, deixando para fazê-lo no momento certo, que, certamente, me seria comunicado. E quando o li em 2018, nova surpresa eu tive ao perceber o quanto ele dialogava com questões minhas.

“Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal”, de Andrei Moreira – médico homeopata, constelador familiar, expositor e figura proeminente no meio espírita – é um dos livros que me veio como resposta de Deus aos conflitos que, em algum momento, enfrentei em relação a minha sexualidade.

Em um contexto em que mesmo os movimentos ditos defensores da liberdade se mostram intolerantes quando você não lhes segue a cartilha, a obra de Andrei Moreira me veio como um convite a encontrar o meu jeito de me colocar como homossexual no mundo. Ou, para mais além disso, um convite a me elevar acima dos rótulos, identificando-me sobretudo como ser humano e contribuindo, assim, para a harmonia tão prejudicada pelo excessivo foco nas naturais diferenças da nossa personalidade, que só faz criar conflitos e atritos de toda ordem.

Aí você me dirá algo como: “Ah!, mas se trata de um livro espírita etc. e tal”. Olha, o maior erro que pode cometer alguém que segue em busca da sabedoria é descartar por inteiro esta ou aquela filosofia por não lhe ser adepto. Embora simpatizante da doutrina, eu tampouco sou espírita, mas seria sinal de tremenda mediocridade desprezar, por isso, todo o valioso ensinamento contido nas obras de Kardec, Chico Xavier e afins. O verdadeiro buscador não permite que preconceitos de qualquer ordem obstruam o seu caminho.

É certo que existe muita coisa ruim produzida por aí, mas mesmo tal conclusão deve ser ulterior à sua disposição para conhecer...

Em um momento em que o isolamento social inviabiliza a Parada do Orgulho LGBT pelo mundo afora, parece-me válido tomar a pandemia como um convite a repensarmos a condição com a qual a vida nos presenteou para a execução de alguma tarefa neste mundo, sem, no entanto, fazer dela uma bandeira que não raro desvirtua as verdadeiras causas.

Nesse sentido, ““Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal” foi, para mim, um resgate; um sol iluminando os meus cômodos obscurecidos como forma de me dizer que, a despeito do preconceito com o qual sou, sutil ou expressamente, metralhado todos os dias, ainda sou aceito e digno da felicidade.

Uma leitura que me veio comunicar, sobretudo, que o pior dos preconceitos é, sobretudo, aquele que temos contra nós mesmos, não raro nos levando a uma excessiva militância que nos distraia da difícil tarefa de enxergar os nossos conteúdos sombrios.

Como eu tive a oportunidade de dizer ao autor durante um evento em julho do ano passado, é fato que nenhuma leitura transforma uma vida por si só. Ela tem em si, no entanto, o potencial de gerar uma ação ao iluminar possibilidades, oferecendo-nos as bases para a transformação pela a qual o nosso coração anseia e que é toda a nossa razão de ser neste mundo.

***

MOREIRA, Andrei. Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME Editora, 2016.

domingo, 14 de junho de 2020

A metáfora solar

Dia desses ouvi algo que achei tão bonito... Imagine uma pessoa que brigou com o sol, por razões diversas: o envelhecimento da pele, queimaduras, acne etc. Num belo dia, porém, essa pessoa decide fazer as pazes com o sol e, nisso, abre todas as portas e janelas de sua casa como forma de dar acesso aos raios do astro-rei.

Perceba que a distância que essa pessoa tinha do sol é a mesma antes e depois de abertas as portas e janelas. Não obstante, o simples fato de essa pessoa haver se disposto a se colocar em contato com o sol, já faz com que ele a alcance.

Ao ouvir isso, de imediato me lembrei daquela conhecida frase segundo a qual "quando o homem dá um passo em direção a Deus, Deus dá mil passos em direção ao homem". Não há a menor dúvida de que, quanto mais próximos estivermos do Sol, mas Ele nos aquecerá; quanto mais próximos da Luz, mais Ela nos iluminará. Não obstante, sendo eu ainda limitado, sendo eu ainda preguiçoso demais para sair diariamente para uma caminhada e receber na pele o sol da manhã, abro diariamente a minha casinha como forma de dar acesso a esses raios, que, aos poucos, invadem os meus cômodos e até mesmo os meus porões há muito carentes de luz.

É isso. Essa disposição, essa coragem para o primeiro passo o fundamental para toda e qualquer jornada. A despeito das nuvens negras que podem surgir ao longo do dia (e elas surgem), mais vale o primeiro passo, caminho sem volta, e a certeza de que, ainda que o dia nos pareça nublado, o Sol permanece lá, implacável, desejoso de que interrompamos a nossa rotação e nos tornemos Um com Ele, como um rio a se perder no mar... realizado... feliz por haver morrido para finalmente viver...

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A sua Resistência não joga pra perder. E você?


 

Se você já participou de alguma vivência de coaching, você deve conhecer ou até mesmo haver participado da dinâmica da madeira.

Ela funciona assim: depois de haver manipulado as emoções dos participantes com a sua exposição, o palestrante convida um voluntário ao palco solicitando-lhe que escreva em um pedaço de madeira aquilo que considera como sendo seus defeitos, obstáculos ou qualquer coisa que deseje vencer em sua vida. Feito isso, o palestrante posiciona a madeira diante do voluntário para que este – depois de muito suspense e ao som de Eye of the Tiger e dos gritos de incentivo da plateia – quebre o objeto.

É uma dinâmica de empoderamento (enfoderamento, eu diria) que, naturalmente, simboliza a vitória sobre tudo aquilo que nos impede de atingirmos as nossas metas.

Há algum tempo, tomado por uma paixão que, junto de várias outras coisas, compunha um pacote cujo peso me rendera um efeito colateral chamado depressão, ouvi de meu terapeuta o seguinte: “O João é algo no qual você deposita a sua energia como forma de fugir àquilo em que ela realmente deve ser investida. O João é o demônio que o impede de enxergar aquilo que você realmente é”.

Na ocasião, eu compreendi, naturalmente, a metáfora utilizada pelo meu terapeuta para algo que eu fazia inconscientemente (e às vezes nem tão inconscientemente assim...). Só recentemente, no entanto, ao ser abençoado com a leitura de um maravilhoso e outrora subestimado livro de Steven Pressfield – A Guerra da Arte – pude ter uma compreensão completa dos dizeres do meu nobre terapeuta.

O referido autor chama de Resistência toda e qualquer força que, sutilmente, procure nos dissuadir de realizar aquilo que vai nos elevar – e, por conseguinte, elevar o mundo à nossa volta – a um novo patamar de consciência. Uma força que não age contra nós em especial, mas contra qualquer movimento para o alto, vez que quer manter as coisas como estão ou, se possível, piores. Você já deve ter ouvido dizer que “para descer, todo santo ajuda”, certo?

Lembrei-me de quando a minha sempre tão sábia irmã me chamou a atenção para a atuação dessa força quando eu considerei mudar de emprego justamente quando vislumbrei a possibilidade de uma promoção... que realmente aconteceu.

Sim, o meu terapeuta, como de hábito, tinha razão: trata-se do demônio, equivocadamente representado como um cara vermelhinho, com chifres e rabo pontiagudo. A Resistência é um demônio que age com muito mais sutileza. Um demônio cuja arma não é um tridente, mas outra muito mais afiada, como uma depressão, uma distração, um efêmero prazer ou mesmo como aquela desculpa muito bem fundamentada para que deixemos para amanhã a tarefa que, por ser a missão de nossa alma, tem urgência de ser realizada.

A Resistência é Mara empenhado em impedir a iluminação de Buda sob uma árvore de rudraksha. A Resistência é o diabo a tentar Jesus em meio ao deserto a fim de dissuadi-lo  de ser Deus para ser homem. A Resistência é obstinada, e se esses grandes mestres a venceram, não foi para que nos lembrássemos deles como fodões. Eles superaram há muito esse tipo de vaidade. Eles a derrotaram como forma de nos deixar um legado, lembrando-nos sempre do nosso potencial para também vencermos a força que, dia após dia, nos impele para trás enquanto nadamos contra a corrente.

“Não deis lugar ao diabo” (Efésios 4.27), já nos diz o texto bíblico, pois é preciso que sejamos bons nadadores. Não para lograrmos medalhas, mas porque, ao alcançarmos a margem, a humanidade inteira ganhará novo fôlego junto de nós. Manter o foco naquilo que há de nos realizar como seres humanos é, portanto, quase um ato político, que torna plausível a utilização daquela famigerada frase em um contexto muito mais nobre.

“Se fere a minha existência, serei resistência.”

É bem isso. Em lugar de cedermos à Resistência, resistirmos a ela diligentemente, visando trazer à baila aquilo que somos em essência. Isso sim é lutar pela própria existência.

E lembre-se: quanto maior for a Resistência, maior é a urgência de superá-la. Quanto mais rígido for o pedaço de madeira, maior há de ser a felicidade da qual toda a humanidade gozará quando, finalmente, o fizermos em pedaços.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

O Bruxo do Cosme Velho

O Bruxo do Cosme Velho... Filho de negros forros e criado por uma lavadeira que lhe faz as vezes de madrasta. Um autodidata. Um mulato casado com uma portuguesa branca em pleno século XIX. Uma homem cuja obra, reveladora de um peculiar conhecimento da alma humana, segue atual, vez que o homem – feliz ou infelizmente – não costuma sofrer significativas mudanças. O maior nome da literatura brasileira e um dos maiores nomes da literatura mundial, chegando a ser comparado a Shakespeare, Camões e afins.

Ler Machado de Assis sempre me pareceu árduo, eu confesso, tanto pela pureza da linguagem que caracteriza a sua obra como – hoje eu entendo – por se tratar de uma leitura que, mais do que domínio da língua, exige maturidade e disposição para se aventurar pelas mazelas humanas.

O poeta Henry Wadsworth Longfellow uma vez disse: “As vidas dos grandes homens nos lembram que podemos tornar a nossa vida sublime, deixando para trás pegadas nas areias do tempo.” Aí você contempla a genialidade de um Machado de Assis, o que esse homem foi capaz de fazer, de viver e de criar e vê o seu próprio crescimento enquanto ser humano como algo factível; vislumbra a possibilidade de também se tornar sublime. Veja o quão grandes podemos nos tornar.

Sobre esse profundo conhecedor do drama humano, Carlos Drummond de Andrade escreveu em um poema a ele dedicado: “Outros, da vida, leram apenas um capítulo. Tu leste o livro inteiro”. Em tempos de tamanhas incertezas e referências duvidosas, a notícia do esgotamento dessa nova edição nos EUA nos traz uma esperança renovada, bem como nos convida a revermos as bandeiras que, tão ingênuos e orgulhosos, trazemos no peito. E, como bem disse hoje o Chico Alves, convém que não esqueçamos que uma terra que pariu Machado de Assis não há de ser um caso perdido.

A história do mimimi



Dia desses, peregrinando pelas redes sociais, vi um post bem singelo que trazia um pequeno diálogo entre mãe e filho. “Mãe, o que é mimimi?”, ao que a mãe, sábia e objetivamente, responde “Mimimi é a dor que não dói na gente”. Vi-me pensativo diante desse post, ficando a indagação da criança a reverberar na minha mente. “Afinal, o que é mimimi?”, eu me perguntava, e tal foi a minha surpresa quando me veio que o tal “mimimi” – não a palavra em si, mas o conceito – está há muito presente em nossa história. E eu gostaria de lhe pedir licença para contar um pouco dessa história...

Bom, quando os navegadores portugueses chegaram a Pindorama, falava-se por aqui uma média de 1.300 línguas indígenas distintas.

Aqui eu preciso fazer um parêntese só para te contar que Pindorama – termo que pode ser traduzido como terra das palmeiras – era o nome pelo qual os habitantes da região “descoberta” por Cabral (1467-1520) e sua frota a designavam. No imaginário dos povos tupis-guaranis, Pindorama era uma terra livre de todo mal, mito esse supostamente criado quando da migração desses povos indígenas para o litoral brasileiro.

Então, a gente pode dizer que Pindorama foi o nome pelo qual os nativos batizaram a região que hoje conhecemos como Brasil. A propósito, objetivando exaltar a cultura indígena como parte de nossa identidade, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) aludiu à denominação tupi em seu Manifesto Antropófago (1928), que defendia uma arte tipicamente brasileira, livre das influências europeias.

Bom, então voltando: quando – acidentalmente, como defendido por alguns – o Brasil foi “descoberto”, falava-se por aqui cerca de 1.300 línguas. E não é por menos, já que algo como 8 milhões de nativos habitavam essas terras.

Os portugueses, então, fizeram algo muito importante, que foi o agrupamento dos povos indígenas com base nas similaridades entre suas línguas, destacando-se o tupi como um dos principais troncos na classificação linguística. Portanto, tupi, no sentido genérico do termo, se refere aos nativos que habitavam a costa brasileira naquele tempo e que falavam a língua tupi antiga.

Fique você sabendo que o verbo “falar” equivale a “nheem” (ñe'eng) na língua tupi. Parece que os portugueses não tinham lá muita paciência com o falatório dos índios tupis, de modo que eles fizeram da tripla repetição do verbo “nheem” – ou seja, “nhenhenhém” – uma referência depreciativa ao falar daquele povo.

Assim, “nhenhenhém” se tornou uma onomatopeia utilizada como referência a um falatório incessante, ou mesmo ao ato de resmungar, reclamar etc. Lá pelos anos 40, porém, a gente importou o “blablabla” do francês, derivado do verbo “blaguer”, que em português é gracejar, zoar, fazer piada etc.

O curioso é que existe um poema da Cecília Meireles (1901-1964) intitulado “A língua do nhem” (Ou isto ou aquilo, Rio de Janeiro, 6. Ed., Nova Fronteira, 2002, p 63-64), que nos apresenta uma doce velhinha que, triste por não ter com quem conversar, vivia resmungando sozinha pela casa: nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa da velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Beleza, mas e o “mimimi” nessa história toda? Bom, essa gíria, que parece um choro, surgiu em "Fudêncio e Seus Amigos", série de animação politicamente incorreta exibida pela MTV entre 2005 e 2011. Na série, o protagonista – semelhante à velhinha do poema da Cecília Meireles – falava apenas a língua do "mimimi", irritando um outro personagem.

Utilizada desde o início como forma de diminuir ou mesmo escarnecer da reclamação de outrem, a expressão “mimimi” era muito comum entre os torcedores no contexto do futebol. Quando o time da pessoa fracassava, ela ficava de “mimimi”. Depois, no entanto, essa onomatopeia se tornou quase que um jargão político, utilizada, sobretudo, como forma de menosprezar manifestações em prol das minorias.

É fato que o “nhenhenhém”, o “blá-blá-blá” e o “mimimi” diferem entre si no sentido de que uma zomba do falar de um povo, outra se relaciona ao ato de “falar abobrinha” (a origem desta eu te conto noutra hora) e outra reduz ao vitimismo a reivindicação de determinados grupos sociais. As três palavras, no entanto, têm em comum o fato de expressarem, pejorativamente, um posicionamento contrário a algo ou a alguém. Sendo a nossa linguagem um incontestável reflexo social, é natural (mas não louvável) que em todas as épocas não nos haja faltado nem mesmo onomatopeias a marcarem o lugar do opressor e do oprimido, ou, para mais além disso, a evidenciarem a ausência de empatia, qualidade essa indispensável a qualquer sociedade que se pretenda realmente civilizada.

E o que é empatia? Definições é o que não faltam, mas eu vou te dar uma por via da poesia: empatia é a virtude que levou o gato, o cachorro e vários outros animais a aderirem à “língua do nhem” no poema da Cecília, curando na boa velhinha o sentimento de solidão em lugar de repreendê-la por uma solidão que não era deles.

O nome disso é fraternidade, que é o alicerce de uma sociedade “livre de todo o mal”, como aquela terra mítica idealizada pelos nossos ancestrais indígenas, talvez já prevendo o que séculos mais tarde viria a ser defendido por algumas vertentes, segundo as quais é o Brasil o ponto de partida para a regeneração da humanidade.

Fraternidade... E onde existe fraternidade não há que se falar em “mimimi”.


domingo, 31 de maio de 2020

Ensaio sobre a boceta

Ilustração da @vulvandala

As cortinas de maio, mês das mães, acabaram de se fechar, encerrando, assim, um espetáculo repleto de coragem, benevolência e delicadeza. A despeito disso, porém, este texto se dedica a tratar de algo que vez e outra está na boca da gente, mas que raramente é discutido com seriedade. Eu estou me referindo à boceta. Mas calma, pois, ao menos a princípio, não me refiro à boceta como sendo aquele lugar de onde todos nós viemos, mas à palavra em si.

Sim, eu sei que a palavra lhe soa ofensiva, e possivelmente mais do que outras – como pepeka, xoxota, xana etc. – comumente utilizadas para designar a vulva. Eu não sei o porquê dessa resistência ao termo, mas acredito que uma investigação das origens de “boceta” como referência à genitália feminina – e, por conseguinte, como tabuísmo – possa desconstruir um pouco esse caráter negativo do termo.

Uma provável explicação está na mitologia grega. E, sim, estamos falando dela, a “caixinha de Pandora”, que, em verdade, nunca foi caixinha, mas, originalmente, boceta. A boceta de Pandora.

Derivada da antiga expressão francesa boucette – com registro lá no séc. XIV e sendo diminutivo de boce/bosse (vasilha) – faz parte do léxico português, designando uma pequena caixa redonda ou oval destinada a objetos pessoais, como joias. Voltando ainda mais no tempo, vemos que “boceta” tem origem do latim e do grego, sendo equivalente à “caixa”, mas, conforme já dito, com as características que a diferem de uma caixa comum. Ademais, a expressão “boceta-de-pandora” é comumente utilizada como referência a algo que gera curiosidade, mas que não deve ser revelado.

Existem muitas versões da estória, de modo que, por essa razão – bem como para não nos desviarmos da boceta, que é o nosso foco aqui – não vamos entrar em detalhes, ficando, aqui, sugerida a pesquisa, que vale super a pena.

Fato é que tudo começou com uma treta entre Zeus, rei do universo, e os irmãos Epimeteu e Prometeu, incumbidos da criação dos animais para povoamento da Terra. Enquanto Epimeteu criava os moldes dos animais e lhes atribuía qualidades, Prometeu supervisionava o trabalho do irmão.

O foda foi que Prometeu acabou por se afeiçoar ao homem, último animal criado pelo irmão, e, objetivando coloca-lo em posição de vantagem sobre os demais, roubou para ele o fogo dos deuses, contrariando o deus do Olimpo, que o havia proibido terminantemente de concedê-lo à criatura humana recém-criada do barro.

Não deu outra: Zeus condenou Prometeu a um castigo horrível, do qual só foi liberto anos mais tarde, graças ao Hércules. Mas o fato de a desobediência haver sido de Prometeu não isentava o seu irmão da culpa. Afinal, era ele o artista por trás da criatura humana. E foi a partir desse raciocínio que Zeus teve a ideia de dar a Epimeteu um “presente de grego” (mas essa expressão tem origem em uma outra estória, ok?), encomendando aos deuses Hefesto e Atena uma companhia para o homem. E eis que vem à luz uma obra-prima de nome Pandora – do grego pan (todos) e doron (presente), significando algo como “todos os presentes”.

Criada Pandora, os dois recorreram a outros deuses do Olimpo a fim de dar qualidades à bela criatura. Assim, Pandora recebeu a beleza, a graça, a sabedoria, a destreza manual, a persuasão, a delicadeza, a arte da dança etc. Zeus, porém, objetivando ensinar a humanidade a nunca desacatá-lo, como o fizera Prometeu, concedeu à Pandora um defeito – a curiosidade –, e, paralelamente à criação da jovem, criou uma boceta (caixa ou até jarro em outras versões) de beleza imensurável, aprisionando em seu interior todos os males do mundo: a raiva, a inveja, a tristeza, o ciúme, a preguiça e um outro mal um tanto controverso, sobre o qual falaremos em seguida.

Assim, portando a suntuosa boceta, Pandora foi enviada a Epimeteu como recompensa pelo sua contribuição no povoamento da Terra. Todavia, cabreiro pelos alertas dados pelo irmão Prometeu, Epimeteu se decidiu por não sondar a boceta trazida pela sua adorada companheira, pois um presente vindo do outrora irado Zeus não haveria de ser coisa boa. E assim eles tiveram uma vida muito feliz sem tocar na boceta... mas não por muito tempo.

A despeito dos protestos de Epimeteu, Pandora acabou por ceder à sua curiosidade, e, abrindo o recipiente, libertou todos os males, que se espalharam mundo afora e envolveram a humanidade em guerras, doenças e afins.

Assustada, a bela Pandora fechou o recipiente antes que dele escapasse o último mal. Aquele controverso sobre o qual falamos lá atrás: a esperança. Deve ser por isso que dizem que “a esperança é a última que morre”...

A boceta é, portanto, a maior dádiva e a maior desgraça do homem. A sua glória e sua perdição. Não é de se estranhar, por exemplo, que o grande Machado de Assis haja mencionado a expressão “boceta de Pandora” em sua obra máxima “Dom Casmurro”, que nos apresenta a enigmática Capitu.

A boceta que outrora aprisionava os males do mundo tem uma relação análoga com a boceta que ora aprisiona os corações. E não pense você que qualquer semelhança com a alegoria bíblica seja mera coincidência. Uma companheira para Adão, o fruto proibido, a desobediência de Eva, o conhecimento do bem e do mal etc.

A propósito, confrontar as mitologias grega e judaico-cristã nos auxilia, inclusive, na compreensão do papel da esperança nessa história toda. Ora!, o mesmo cristianismo que considera que Eva tenha dado à luz o pecado – tal como Pandora – exalta, sobretudo em sua expressão católica, aquela que teria dado à luz o Salvador.

Então, se tanto a desgraça (pecado) quanto a salvação (o Cristo) vieram de uma boceta, parece incontestável a conclusão de que o uso de tal termo para designar a vulva se dê pelo seu potencial de gerar o bem e o mal. E aqui podemos até estabelecer uma relação com aquela famigerada (e não raro irresponsável) ideia do senso comum de que as crianças são o futuro da nação, da humanidade etc., sendo a mulher o único ser capaz de gestar esse futuro (uma imagem muito poética, aliás).

Vale dizer que, se tentamos aqui, por meio de abordagem etimológica e mitológica, desconstruir a conotação negativa de ‘boceta’, as feministas já o vêm fazendo com uma abordagem mais política como forma de honrar a sua genitália. Tal como as espiritualistas, que lhe conferem – ou reconhecem – a sacralidade. E isso tudo, salvo os exageros, me parece muito válido, sobretudo como forma de fazer face a uma sociedade patriarcal que, tal como nas alegorias aqui abordadas, culpabiliza a mulher, à qual cabe resguardar-se. Uma sociedade na qual a mulher tem culpa de ser estuprada. Uma sociedade que faz de “galinha” elogio para o homem e insulto para a mulher.

Mas se por um lado o mito pode ser tomado como reflexo de uma sociedade machista, por outro podemos fazer dele uma nova leitura, concebendo-o como um elogio ao poder e autonomia da mulher. Veja bem: foi de Pandora a decisão de abrir o recipiente, assim como foi de Eva a iniciativa de provar do fruto da Árvore do Conhecimento. E mesmo a concepção do Salvador demandou o “sim” de Maria. Nós estamos falando sobre consentimento.

Eis aí o poder do mito, do quanto podemos compreender de nossa sociedade por meio dele e, quem sabe, transformá-la. Eis aí o papel libertador da arte, inclusive no que tange à emancipação feminina, desde A origem do mundo, de Gustave Coubert, até My pussy é o poder, de Valesca Popozuda (e não vamos discutir qualidade aqui...).

Faço deste texto uma homenagem à mulher, exaltando a sua presença decisiva no mito e na história, bem como as virtudes por ela ensinadas por meio da sabedoria de Gaia, da poesia de Brighid, da subversão de Lilith, do silêncio de Maria, da soberania de Kuan Yin e da imponência de Iansã. A elas, personagens reais e fictícias, indispensáveis à compreensão do mais remoto passado dos homens. E, claro, à boceta, que nos deu passagem para esse mundo e, por conseguinte, a possibilidade de fazermos por aqui algo que valha realmente a pena.