sexta-feira, 10 de abril de 2020

Special



Nos meus tempos de faculdade, eu me interessei (o que, no meu caso, é sinônimo de “me apaixonei”, “escrevi poesias”, “enviei extensos e-mails e cartas” e “bati uma infinidade de punhetas”) por um cara que, em linhas gerais, alegou não me corresponder porque teria vergonha de ser visto comigo, o que se justificava pela minha condição socioeconômica de então, da minha aparência, da minha deficiência visual e do fato de eu ser estudante de Letras – faculdade que, diga-se de passagem, ele também cursava... E isso tudo com direito à imitação do meu nistagmo e tudo mais.

Decorridos mais de dez anos, é claro que eu superei, o que nada tem a ver com esquecer e tampouco perdoar. Afinal, se você está pleiteando o Nobel da Paz, eu lamento muito, mas eu não estou...

Naquela época, embora a luta pela diferença fosse já algo estabelecido na política, no meio acadêmico e na mídia, era ainda maciço o preconceito contra os diferentes no meio gay, tema esse raramente discutido, vez que é bem mais cômodo se dizer vítima de um preconceito do que agente do mesmo. Embora isso ainda se faça presente nesse meio, era mais, digamos, gritante nele o culto a um padrão, o que comumente envolvia um corpo forjado na academia, roupas de marca, frequência – e, se possível, moradia – na Zona Sul etc.

Era, portanto, o tempo em que a própria mídia – e, aqui, leia-se “telenovelas” -, ao procurar promover esse grupo minoritário, optava por exaltá-lo, o que significava retratar sempre o estereótipo do homossexual bonito, bonzinho e bem comportado. Portanto, não se engane, pois houve muito caminho andado até que chegássemos às produções que ora apresentam o gay que, como qualquer ser humano comum, trai, sacaneia os outros, gosta de sexo e tem outras questões para lidar além da própria sexualidade.

É óbvio, porém, que não chegamos ainda a um nível ideal de representatividade, vez que a mídia, compreensivelmente resistente a escancarar a realidade tal como ela é (pois tem como função entreter, e não deprimir o telespectador), ainda não tem culhões – só pra utilizar uma expressão machista – para apresentar o gay da periferia, o gay com transtornos emocionais, o gay com deficiência e afins. Infelizmente, ainda é “necessário” dar a esse sujeito tons que o tornem mais digestível, por assim dizer (e sem maldade).

Talvez por isso eu tenha me impressionado tanto com a série Special, disponível na Netflix há um ano. Escrita e protagonizada por Ryan O'Connell, a série é baseada na autobiografia desse, intitulada I'm Special: And Other Lies We Tell Ourselves, nos apresentando um jovem Ryan que encara os conflitos de ser gay e ter paralisia cerebral (PC). E isso a série coloca livre de uma dramatização exacerbada e sem significativa preocupação em tornar tudo isso mais agradável aos olhos.

Assim, temos o protagonista com seus preconceitos; a melhor amiga bem resolvida quanto ao seu peso, mas mal resolvida com outras questões; a mãe super protetora que vê na liberdade do filho uma ameaça ao próprio modo de vida; a chefe politicamente incorreta (e adorável) que diz todo tipo de absurdo impunemente; os amigos, gays ou não, que não veem na deficiência de Ryan um problema e os tantos outros personagens que vão ditando a forma de o protagonista se colocar no mundo.

Não foi, porém, apenas a positiva e realista retratação do sujeito gay e com deficiência que me cativaram, mas também a imensa identificação que eu – que tenho uma deficiência visual talvez até mais leve que a leve PC do ator e personagem – tive com a história.

As questões de autoestima, o fascínio pelos corpos perfeitos para os quais eu me percebia invisível, o desafio de lidar com o fato de ser duplamente “diferente”, o início da vida sexual com um profissional, as meias não retiradas em meio à empolgação da primeira vez (mas os óculos eu tirei!), o envolvimento com um cara surdo, a busca por uma r... ops!... por um amor no Grindr, a conquista da independência e de tudo que dela advêm (de bom e de mau). Tudo estava ali, não como forma de confirmar que eu sou de fato esquisito, mas como forma de me dizer que eu não estou sozinho no meu modo de ser e de viver e que está tudo que as coisas sejam assim.

“Ele não é um babaca se não quiser namorar comigo. Ele só sabe como o mundo funciona”. São as palavras do protagonista em um certo momento da trama. Curioso é que a própria série por vezes joga na nossa cara que, tendo a visão obnubilada pelos preconceitos que não raro temos contra nós mesmos, costumamos nos enganar ou talvez generalizar demais a nossa ideia acerca de “como o mundo funciona”.

Como bem disse o próprio O'Connell em entrevista a um site, “a série não vai falar para todas as pessoas com deficiência”, pois “não dá para falar com todo mundo”. É fato, porém, que “Special” se mostra uma produção bem intencionada e corajosa ao apresentar a pessoa com deficiência com a sua vida real, com suas falhas humanas e com as dificuldades impostas por um mundo pensado para um padrão de pessoas.

E vale reverenciá-la ainda pelo fato de ir na contramão de uma mídia na qual virou moda retratar sujeitos homossexuais, mas que ainda ignora a existência de pessoas com deficiência.

Mais do que isso, a série está sempre a mostrar que todo mundo – e ninguém – é de fato “especial”. E isso... pode ser libertador!