domingo, 31 de maio de 2020

Ensaio sobre a boceta

Ilustração da @vulvandala

As cortinas de maio, mês das mães, acabaram de se fechar, encerrando, assim, um espetáculo repleto de coragem, benevolência e delicadeza. A despeito disso, porém, este texto se dedica a tratar de algo que vez e outra está na boca da gente, mas que raramente é discutido com seriedade. Eu estou me referindo à boceta. Mas calma, pois, ao menos a princípio, não me refiro à boceta como sendo aquele lugar de onde todos nós viemos, mas à palavra em si.

Sim, eu sei que a palavra lhe soa ofensiva, e possivelmente mais do que outras – como pepeka, xoxota, xana etc. – comumente utilizadas para designar a vulva. Eu não sei o porquê dessa resistência ao termo, mas acredito que uma investigação das origens de “boceta” como referência à genitália feminina – e, por conseguinte, como tabuísmo – possa desconstruir um pouco esse caráter negativo do termo.

Uma provável explicação está na mitologia grega. E, sim, estamos falando dela, a “caixinha de Pandora”, que, em verdade, nunca foi caixinha, mas, originalmente, boceta. A boceta de Pandora.

Derivada da antiga expressão francesa boucette – com registro lá no séc. XIV e sendo diminutivo de boce/bosse (vasilha) – faz parte do léxico português, designando uma pequena caixa redonda ou oval destinada a objetos pessoais, como joias. Voltando ainda mais no tempo, vemos que “boceta” tem origem do latim e do grego, sendo equivalente à “caixa”, mas, conforme já dito, com as características que a diferem de uma caixa comum. Ademais, a expressão “boceta-de-pandora” é comumente utilizada como referência a algo que gera curiosidade, mas que não deve ser revelado.

Existem muitas versões da estória, de modo que, por essa razão – bem como para não nos desviarmos da boceta, que é o nosso foco aqui – não vamos entrar em detalhes, ficando, aqui, sugerida a pesquisa, que vale super a pena.

Fato é que tudo começou com uma treta entre Zeus, rei do universo, e os irmãos Epimeteu e Prometeu, incumbidos da criação dos animais para povoamento da Terra. Enquanto Epimeteu criava os moldes dos animais e lhes atribuía qualidades, Prometeu supervisionava o trabalho do irmão.

O foda foi que Prometeu acabou por se afeiçoar ao homem, último animal criado pelo irmão, e, objetivando coloca-lo em posição de vantagem sobre os demais, roubou para ele o fogo dos deuses, contrariando o deus do Olimpo, que o havia proibido terminantemente de concedê-lo à criatura humana recém-criada do barro.

Não deu outra: Zeus condenou Prometeu a um castigo horrível, do qual só foi liberto anos mais tarde, graças ao Hércules. Mas o fato de a desobediência haver sido de Prometeu não isentava o seu irmão da culpa. Afinal, era ele o artista por trás da criatura humana. E foi a partir desse raciocínio que Zeus teve a ideia de dar a Epimeteu um “presente de grego” (mas essa expressão tem origem em uma outra estória, ok?), encomendando aos deuses Hefesto e Atena uma companhia para o homem. E eis que vem à luz uma obra-prima de nome Pandora – do grego pan (todos) e doron (presente), significando algo como “todos os presentes”.

Criada Pandora, os dois recorreram a outros deuses do Olimpo a fim de dar qualidades à bela criatura. Assim, Pandora recebeu a beleza, a graça, a sabedoria, a destreza manual, a persuasão, a delicadeza, a arte da dança etc. Zeus, porém, objetivando ensinar a humanidade a nunca desacatá-lo, como o fizera Prometeu, concedeu à Pandora um defeito – a curiosidade –, e, paralelamente à criação da jovem, criou uma boceta (caixa ou até jarro em outras versões) de beleza imensurável, aprisionando em seu interior todos os males do mundo: a raiva, a inveja, a tristeza, o ciúme, a preguiça e um outro mal um tanto controverso, sobre o qual falaremos em seguida.

Assim, portando a suntuosa boceta, Pandora foi enviada a Epimeteu como recompensa pelo sua contribuição no povoamento da Terra. Todavia, cabreiro pelos alertas dados pelo irmão Prometeu, Epimeteu se decidiu por não sondar a boceta trazida pela sua adorada companheira, pois um presente vindo do outrora irado Zeus não haveria de ser coisa boa. E assim eles tiveram uma vida muito feliz sem tocar na boceta... mas não por muito tempo.

A despeito dos protestos de Epimeteu, Pandora acabou por ceder à sua curiosidade, e, abrindo o recipiente, libertou todos os males, que se espalharam mundo afora e envolveram a humanidade em guerras, doenças e afins.

Assustada, a bela Pandora fechou o recipiente antes que dele escapasse o último mal. Aquele controverso sobre o qual falamos lá atrás: a esperança. Deve ser por isso que dizem que “a esperança é a última que morre”...

A boceta é, portanto, a maior dádiva e a maior desgraça do homem. A sua glória e sua perdição. Não é de se estranhar, por exemplo, que o grande Machado de Assis haja mencionado a expressão “boceta de Pandora” em sua obra máxima “Dom Casmurro”, que nos apresenta a enigmática Capitu.

A boceta que outrora aprisionava os males do mundo tem uma relação análoga com a boceta que ora aprisiona os corações. E não pense você que qualquer semelhança com a alegoria bíblica seja mera coincidência. Uma companheira para Adão, o fruto proibido, a desobediência de Eva, o conhecimento do bem e do mal etc.

A propósito, confrontar as mitologias grega e judaico-cristã nos auxilia, inclusive, na compreensão do papel da esperança nessa história toda. Ora!, o mesmo cristianismo que considera que Eva tenha dado à luz o pecado – tal como Pandora – exalta, sobretudo em sua expressão católica, aquela que teria dado à luz o Salvador.

Então, se tanto a desgraça (pecado) quanto a salvação (o Cristo) vieram de uma boceta, parece incontestável a conclusão de que o uso de tal termo para designar a vulva se dê pelo seu potencial de gerar o bem e o mal. E aqui podemos até estabelecer uma relação com aquela famigerada (e não raro irresponsável) ideia do senso comum de que as crianças são o futuro da nação, da humanidade etc., sendo a mulher o único ser capaz de gestar esse futuro (uma imagem muito poética, aliás).

Vale dizer que, se tentamos aqui, por meio de abordagem etimológica e mitológica, desconstruir a conotação negativa de ‘boceta’, as feministas já o vêm fazendo com uma abordagem mais política como forma de honrar a sua genitália. Tal como as espiritualistas, que lhe conferem – ou reconhecem – a sacralidade. E isso tudo, salvo os exageros, me parece muito válido, sobretudo como forma de fazer face a uma sociedade patriarcal que, tal como nas alegorias aqui abordadas, culpabiliza a mulher, à qual cabe resguardar-se. Uma sociedade na qual a mulher tem culpa de ser estuprada. Uma sociedade que faz de “galinha” elogio para o homem e insulto para a mulher.

Mas se por um lado o mito pode ser tomado como reflexo de uma sociedade machista, por outro podemos fazer dele uma nova leitura, concebendo-o como um elogio ao poder e autonomia da mulher. Veja bem: foi de Pandora a decisão de abrir o recipiente, assim como foi de Eva a iniciativa de provar do fruto da Árvore do Conhecimento. E mesmo a concepção do Salvador demandou o “sim” de Maria. Nós estamos falando sobre consentimento.

Eis aí o poder do mito, do quanto podemos compreender de nossa sociedade por meio dele e, quem sabe, transformá-la. Eis aí o papel libertador da arte, inclusive no que tange à emancipação feminina, desde A origem do mundo, de Gustave Coubert, até My pussy é o poder, de Valesca Popozuda (e não vamos discutir qualidade aqui...).

Faço deste texto uma homenagem à mulher, exaltando a sua presença decisiva no mito e na história, bem como as virtudes por ela ensinadas por meio da sabedoria de Gaia, da poesia de Brighid, da subversão de Lilith, do silêncio de Maria, da soberania de Kuan Yin e da imponência de Iansã. A elas, personagens reais e fictícias, indispensáveis à compreensão do mais remoto passado dos homens. E, claro, à boceta, que nos deu passagem para esse mundo e, por conseguinte, a possibilidade de fazermos por aqui algo que valha realmente a pena.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Eu, travesti - Luísa Marilac e Nana Queiroz



Eu bem que tentei pegar no sono depois de fechar o livro, que, à esta altura, pouco ou nada guardava do cheiro de novo que tanto me apraz nas obras impressas, dado o muito que fora manuseado nos últimos três dias. A tarefa, no entanto, me parecia impossível, como sendo essa a linguagem utilizada pela vida para me comunicar da impossibilidade de sair ileso daquela leitura.

Os meus dedos, exibindo unhas comumente roídas pela minha natural ansiedade, ansiavam pelo teclado, por mais que a minha mente insistisse na pergunta: o que eu poderia dizer? O que posso eu, do conforto dos meus privilégios, acrescentar acerca de uma vida marcada por privações e terríveis sobressaltos? Até porque Nana Queiroz já havia, com louvor, esgotado todas as possibilidades nesse sentido.

E foi então que decidi me levantar e me deixar guiar pelas entidades que, de alguma forma, me orientavam a não fazer daquela obra apenas mais uma na minha estante.

Quando Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac me apareceu como sugestão no site da Amazon, a minha reação imediata foi me perguntar, com resistência já estabelecida, o que poderia haver digno de nota na história de uma pessoa que só saíra do anonimato em razão de um vídeo que – ao lado de memes como “para a nossa alegria”, “Luiza do Canadá”, “que deselegante” e afins – não passara de mais uma breve diversão na terra de ninguém que é a internet.

Curioso, recorri à seção de comentários do site, dentre os quais encontrei algumas pistas, sendo que a resposta propriamente dita só me veio nas lágrimas que, teimosas, me escorreram pelas faces a cada capítulo no qual Luísa, encarnada no poético texto de Nana Queiroz, narrava as idas e vindas de uma existência que já se mostrara desafiadora desde a mais tenra idade.

Eu, recém-ingresso no mundo das biografias, autobiografias e afins, havia lido há aproximadamente dois anos o igualmente revelador Rogéria: uma mulher e mais um pouco, de Marcio Paschoal, o que me permite concluir que por mais que as vidas de pessoas trans estejam lamentavelmente ligadas por alguns fatores em comum – o preconceito, a prostituição, a coragem de existir etc. –, cada existência segue sendo única e individual, cada qual temperada com os sonhos, traumas, experiências, alegrias e dissabores que a tornam digna de nota em meio à multidão que habita os rótulos, grupos e quaisquer categorias de ser.

Assim – se é que uma comparação seja possível ou mesmo pertinente – o que sobra de glamour naquela falta nessa; o que sobra de poesia nessa falta naquela; enquanto aquela se autointitulava “o travesti da família brasileira”, essa ainda trava uma luta interior e política pela própria alteridade. E, assim, nós temos pessoas que – cada qual em sua época, com seus dramas, privilégios, frustrações e desafios – lutam pelo direito de estar em um mundo cujas fronteiras e desigualdades não foram, decerto, delineadas pelo Criador.

Chamou-me a atenção o fato de que as páginas de Eu, travesti mais me comoviam do que me machucavam, embora compostas de todos os ingredientes para resultar exatamente no contrário. E este talvez seja um dos pontos em que emerge a autoria compartilhada da obra, onde uma, fazendo-se de porta-voz, empresta a sua narrativa poética e sensível, fundindo a sua voz na da outra, que, protagonista daquelas memórias, enxerga a vida com a leveza de quem aprendeu, com a dor, que ela é feita de um eterno cair e levantar-se, tornando dispensável a amargura, como dito pela própria em entrevista ao saudoso Abujamra.

As muitas entrevistas por mim assistidas, aliás, ganharam novas cores após a leitura do livro, que contempla (ou tenta contemplar) a grandiosidade de uma existência que jamais caberia no curto espaço de um talk show.

Vale, porém, um alerta: Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac não é um livro para os pudicos e tampouco para os excessivamente sensíveis (na acepção pejorativa do termo), dado que se tem uma coisa na qual Luísa não se detém é na criação de um personagem; no uso de uma máscara, maquiagem, luz ou ângulo que a torne mais digerível aos intolerantes de plantão.

Pelo contrário – tanto no livro como nos vídeos que faz para o seu canal no YouTube, nos quais denota uma louvável espontaneidade – ela se coloca toda, com o seu passado pelo mercado do sexo, com o seu gosto pelo mesmo (pelo sexo, não pelo seu comércio), com o seu flerte com as drogas, com o seu linguajar repleto de putaria, com a sua absurda capacidade de se reinventar, com o seu carinho pelos animais e com seus romances complicados, típicos de quem cresceu em um contexto no qual os abusos não deixaram lugar para a experiência do amor.

Ironicamente, o personagem só existe no famigerado vídeo que a mostrou ao mundo, quando ela afirmava não estar na pior embora na verdade estivesse, em um episódio que marca o seu “terceiro nascimento” e que é minuciosamente narrado no livro.

Livro esse que – didático ao nos ensinar o Pajubá, doloroso ao nos confrontar com a realidade de uma desafiadora existência e belíssimo ao nos brindar com a esperança a partir de uma história de sobrevivência – ganha importância literária e política. Literária em razão da qualidade e lirismo do texto de Nana Queiroz que eu já me cansei de elogiar aqui, e política por se configurar como a melhor resposta àqueles que silenciam, que ignoram ou que, do alto de sua cisgeneridade, negam a importância de políticas que ofereçam a pessoas como Luísa a “fortuna” de permanecerem vivas e com alguma dignidade.

É com esse tom político que Luísa nos aponta um dedo acusador ao fim de suas memórias, o que talvez se configure como uma das razões – se não a única – para que, encerrada a leitura, me haja faltado a coragem para apenas guardar o livro como quem encerra mais um trivial entretenimento.

E disseram que ela estava na pior... e era verdade. E eis que agora ela vem contar na esperança de que as demais possam um dia gozar do direito e da grata oportunidade de estarem bem.

***

MARILAC, Luísa; QUEIROZ, Nana. Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O divino que nos habita



Em um remoto 1994, quando eu tinha dez anos de idade, uma professora muito querida, protestante convicta, comentou certa vez que “o nosso corpo é templo do Espírito Santo”. Recordo-me de haver achado bonita aquela metáfora, embora ignorando o seu real significado e, sobretudo, a finalidade com a qual era comumente aplicada em um contexto opressor como o de algumas religiões (e longe de mim querer fazer uma crítica a qualquer uma delas).

Anos mais tarde, atuando como catequista junto de uma senhora que, naturalmente, compartilhava dos valores do seu tempo, ouvi-a dizer – especificamente às catequizandas – da necessidade de se valorizar o próprio corpo. Comentário esse que, possivelmente, não foi compreendido pelas pequenas e que, obviamente, não teve aprofundamento em razão da tenra idade das interlocutoras.

De mera testemunha desses comentários, eu mesmo, poucos anos depois, reproduzi-os em uma sessão de terapia, quando – tendo em mim mesmo impregnados os preconceitos que estabeleciam uma relação sinonímica entre homossexualidade e promiscuidade – afirmei à minha jovem terapeuta que o fato de eu não haver iniciado a minha vida sexual se justificava por eu “valorizar muito o meu corpo”.

E eis que a resposta da terapeuta não podia ser mais certeira: “E fazer sexo também não seria uma forma de se valorizar o próprio corpo?”

E foi somente ali que eu me dei conta de como eu apreendera os preconceitos com os quais eu vinha sendo metralhado desde a infância. Preconceitos esses oriundos de uma sociedade na qual valorizar o próprio corpo equivalia e não se permitir os prazeres do mesmo. Regra essa que, provavelmente, não se aplicava a homens heterossexuais.

Sim... ninguém havia dito que o sexo responsável e com consentimento também era uma forma de se valorizar o corpo. E, mais para além disso, ninguém havia dito que tal valorização passava também e sobretudo por amá-lo e reconhecer-lhe a beleza a despeito dos padrões. Muito pelo contrário, a mesma sociedade opressora seguia nos empurrando garganta adentro imagens de homens e mulheres de corpos perfeitos e brancos em sua maioria.

Ninguém disse que valorizar o próprio corpo passa por, antes de mais nada, cuidá-lo e amá-lo tal como ele é.

Esclarecimentos se fazem necessários, é claro. Em momento algum faço apologia do sexo livre e desenfreado, dada a certeza de que partir para o extremo oposto à repressão só nos leva a desvalorização de nós mesmos e do outro, que é bem mais que mero objeto do nosso prazer. Ademais, coisas como castidade e movimentos como Eu Escolhi Esperar fazem sentido para muitas pessoas, o que já os torna dignos do devido respeito. Liberdades individuais, certo?

Ademais, por mais que um corpo delgado ou gordinho seja tão belo quanto qualquer outro, eu precisarei me cuidar se os quilinhos a menos ou a mais me prejudicam a saúde, o que também é uma forma de autocuidado.

A grande urgência, portanto, é que a autovalorização aqui defendida não esteja condicionada à adequação a padrões excludentes. Estamos todos inseridos nesta sociedade, de modo que é natural que tenhamos ideais de beleza. O problema é quando esses ideais nos adoecem, nos subestimam, nos levam a nos reconhecer em uma condição de menos valia. O problema é quando uma equivocada identificação com o corpo nos leva a crer que, se o mesmo é tido como inadequado, então nós somos também inadequados.

Valorizar o próprio corpo, porém, não deve ter relação com fiscalização da sexualidade alheia, mas sim com o devido reconhecimento da beleza desse invólucro que nos foi emprestado para trilharmos a nossa jornada pela vida. Reconhecê-lo como tal pode propulsar o autoamor, e é com base nesse autoamor – e não na opinião alheia – que se deve escolher por transar ou não transar, por ser gordo ou ser magro, por ter pelos ou se depilar etc.

Eu acredito que a minha professora estava certa. O nosso corpo é mesmo templo do Espírito Santo, e eu tenho certeza de que o maior desejo do divino que nos habita é que, antes de qualquer coisa, nos amemos tal como somos.

Se cuida.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

O livro da minha conversão



Este é o livro da minha conversão.

Oi? Que história é essa? Desde quando você é religioso? E o que tem de especial nesse livro?

São possíveis perguntas de quem me conhece pouco ou mesmo de quem é próximo a mim. Então, respondendo, não, de fato não sou religioso e tampouco o livro em si tem algo de especial, mas o é para mim em razão do que me proporcionou.

Este exemplar surrado, rasurado e amarelecido como aquelas velhas fotografias que a gente guarda em baús empoeirados é uma edição de 1983 (ano anterior ao meu nascimento). A 125ª edição, para ser exato, dessa obra que é impressa pela Editora Vozes até os dias de hoje.

Não me lembro como, mas encontrei este livro em 1998, aos quatorze anos de idade, e ele – com as suas perguntas e respostas organizadas em 22 lições/capítulos – me tocou profundamente, me despertando para algo que eu desconhecia... um sentimento de paz e de profundo amor por uma força maior.

E assim as breves e objetivas explicações acerca desse “espírito puro, eterno, criador do céu e da terra”, incriado, porque “sempre existiu, não teve princípio e não terá fim” (p. 14) me fez enveredar por um caminho sem volta, por mais que naquela época eu nem sequer imaginasse.

Daí – do católico de fachada que fez a Primeira Eucaristia a contragosto e esporadicamente ia à missa obrigado pelos pais – eu me converti no jovem que ia à igreja por vontade própria, dando início à incursão pelas atividades da paróquia Nossa Senhora Aparecida. E lá fomos o meu amigo Ricardo e eu para o Movimento dos jovens Unidos a Cristo (MOJUAC), para a Renovação Carismática Católica (RCC), para o crisma etc. E mais tarde, morando em outro bairro, fui eu para a catequese, quando, em conjunto com a minha irmã Patrícia, desenvolvi um significativo trabalho.

Até hoje me lembro de uma afirmação feita pelo saudoso Pe. Álvaro na primeira missa a qual assisti após esse chamado – “(...) esse Deus que nos manda perdoar até mesmo o assassino do nosso irmão” – e sempre me lembro dela quando hoje vejo pessoas autointituladas cristãs fazendo defesa da pena de morte e afins...

A vida adulta, porém, me trouxe os questionamentos diversos, bem como a dificuldade de conciliar a atividade religiosa com o meu desejo de aceitar-me homossexual, não mais reprimindo os instintos dos quais, quando adolescente, eu acreditava poder ser “curado”.

Naquele tempo a Igreja Católica era, digamos, diferente, e eu não tinha maturidade e nem inteligência emocional para entender que, caso eu quisesse, eu podia permanecer onde quer que fosse, descartando o que contrariava a minha verdade e sendo quem eu era.

E assim, o jovem que outrora almejara se tornar irmão missionário e até padre abandonou o catolicismo e, anos mais tarde, se viu num tímido envolvimento com o budismo, com a umbanda, o racionalismo cristão, um envolvimento maior com o espiritismo, até, finalmente, reconhecer a validade e incontestável contribuição de todas essas experiências para a sua formação como ser humano.

E, convenhamos, é uma dádiva não definir o TODO pela parte. É gratificante conhecer os tantos aspectos, nunca contraditórios, dessa força que rege o mundo e tudo é. Aspectos esses a mim apresentados, pedagogicamente, de acordo com as etapas da minha jornada.

Não sejamos hipócritas, contudo... Eu estou longe de ser o cara bem resolvido sexual ou espiritualmente. E, para ser sincero, creio que isso é uma bênção da qual gozam saudáveis exceções. Não obstante, me reconheço hoje como um Alex mais feliz e grato pela sempre presente intuição de haver algo maior que eu, me amparando, me apontando o caminho, me sussurrando aos ouvidos e me tomando pela mão enquanto atravesso o inferno da depressão, da dúvida, do vazio e da falta de perspectiva.

E a esse algo maior eu chamo de Jeová. Eu chamo de Krishna. Eu chamo de Olorum. Eu chamo de Deus. Eu chamo de TODO, e o reverencio a despeito do Seu nome.

Quanto ao livro – que, segundo a minha mãe, pertenceu à minha tia mais jovem em seus tempos de catequizanda – segue comigo. E hoje, aos 36 anos, não mais procedo como o Alex adolescente, que, inebriado pelas emoções advindas dessa singela leitura, sugeria-a aos demais na ânsia de que sentissem o mesmo. Agora, apenas guardo-o como símbolo do início do meu despertar. Um doce lembrete de que aquele foi o meu momento.

***

Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã. 125. Ed. Petrópolis: Vozes, 1983.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

63 dias. É tudo o que teremos! - L.C. Carneiro



“Transcender para além da esfera comum do pensamento pode trazer sérios riscos à sanidade de uma pessoa. Seria essa a conclusão mais prudente. Talvez, por isso, o medo generalizado de conhecer. A ignorância é mesmo a abençoada condição para a felicidade, ainda que provisória. Desconhecer proporciona a ilusão de uma felicidade duradoura.” (p. 280)

Em um remoto 2013, ao mencionar uma pandemia global que mataria mais de três bilhões de terráqueos no ano de 2020, a brasiliense Melissa Tobias sequer imaginava que a sua obra A realidade de Madhu fosse repercutir, sete anos depois, em razão de uma pandemia que, de fato, exterminaria milhares de cidadãos pelo mundo afora.

Aos que não creem em coincidências, resta a conclusão de que o mundo que nos rodeia é regido por forças sobrenaturais – ou pré-naturais, termo que designa os fenômenos naturais ainda fora do alcance da razão humana –, corroborando, assim, os famigerados dizeres shakespeareanos: ““Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”.

Em seu romance 63 dias. É tudo o que teremos!, o cearense Cezar Carneiro (ou L.C. Carneiro) trilha um caminho duplamente semelhante ao de Melissa Tobias. Não em termos textuais, narrativos e afins, mas no sentido de haver produzido uma obra que – ao tratar de um livro que profetiza o fim – parece, ela mesma, antever o caos, levando-nos ao velho questionamento acerca do caráter imitativo na relação entre vida e arte.

Para além da interdisciplinaridade, ao relacionar temas como física quântica, matemática, literatura, ufologia, espiritualidade e afins, a obra de Cezar Carneiro assume uma qualidade transdisciplinar, evidenciando a unidade do conhecimento, ora tão fragmentado no ocidente, sobretudo no que tange à educação formal.

O percurso entre as tantas áreas do conhecimento, porém, não raro se dá em detrimento da estrutura da narrativa, que, sobretudo em sua primeira parte, nos confronta com diversos núcleos abandonando-os logo em seguida, sem que o leitor disponha do “convívio” necessário para criar empatia com cada um dos personagens. Dessa forma, a expedição comandada pela Dra. Mei, por exemplo, composta pelos personagens mais relevantes da primeira parte, vez que se tratam dos “escolhidos”, só nos é apresentada no capítulo 5, sem que o leitor crie com eles um envolvimento que os torne dignos da experiência narrada até o grande desfecho – que, aliás, se dá logo no capítulo seguinte.

Vale considerar, porém, que a ausência de aprofundamento nos personagens se dá pela possível intenção do autor de fazer do fenômeno em si o aspecto mais relevante da trama, o que coloca em segundo plano os dramas pessoais de cada um. Desse modo, a perda de Raul Neves (p. 73), o “sequestro” de Adam Fisher (p. 80-83), o suicídio de Plácido Miranda (p. 222) perdem lugar para a vulnerabilidade humana em si, fazendo desta a grande protagonista da trama ao lado da engenhosa arquitetura do universo.

Dentre os demais problemas a serem observados, temos a forma como se dão alguns plot twists – com destaque para a maneira um tanto frustrante como nos é revelado o misterioso informante dos Savari (p. 77) –, os improváveis deslizes de alguns personagens em benefício do enredo (p. 194) e a narrativa por vezes confusa em parte devido à aparente ânsia do autor em se valer do seu vasto e notório conhecimento na trama.

Destaque ainda para as notas de rodapé, que, se por um lado são muito bem-vindas, vez e outra contemplando o leitor com curiosidades diversas (p. 21, 28 etc.), por outro parecem subestimar a inteligência do leitor (p. 13, 42). Isso sem falar no caráter dispensável da menção às fontes (p. 163) em uma obra literária, o que seria perfeitamente cabível em um texto acadêmico, mas não aqui.

A criação do link com a primeira parte da trama, publicada isoladamente em 2014, é interessante, mas tardia e pouco explorada em seu potencial. A despeito disso, porém, dá ao leitor a oportunidade de seguir com a leitura da trilogia, mas enveredando por uma narrativa diferente e de final inesperado, o que revela a sagacidade do autor, dado que o desfecho da Parte I, a princípio, inviabilizava uma sequência.

Neste ponto, vale ressaltar que nenhum dos problemas aqui expostos traz prejuízo real à obra como um todo, que, embora ficcional, nos conduz, inevitavelmente, ao questionamento da “realidade” que nos cerca, bem como ao reconhecimento de nossa pequenez “diante da grandeza do Universo”. E isso, além de colocar o leitor na condição de filósofo, o torna contemplado pela dedicatória do autor (p. 3).

Ademais, se questionar o que chamamos de realidade ou mesmo a nossa própria existência parece insanidade, vale lembrar que essa insanidade data de séculos, tendo início nos tempos em que pensadores como Platão, Aristóteles, Descartes e Zhuangzi consideravam a possibilidade de estarmos sonhando quando nos acreditamos despertos; passando pela arte e pela literatura, tal como em A Vida é Sonho (La Vida es Sueño, 1635), de Calderón de la Barca; e chegando a produções de ficção científica da atualidade, tais como o longa Fenda no Tempo (The Langoliers, 1995), filme de minha adolescência, e Black Mirror (2011 – presente), série de televisão britânica.

Ou seja: o questionamento em si nada tem de atual, sendo apenas enriquecido pelas tantas conquistas tecnológicas das quais ora usufruímos, bem como pela existência de mistérios nunca desvendados, tais como o estranho caso das máscaras de chumbo (inevitável esta lembrança diante do “caso das máscaras de cera” apresentado no capítulo IV da Parte II da obra).

Outrossim, se a obra de Cezar Carneiro – que muito dialoga com a série antológica mencionada há dois parágrafos – parece ter um caráter pessimista no que se refere ao vertiginoso avanço tecnológico que vivenciamos nas últimas décadas, vale revisitarmos os argumentos contidos na própria trilogia acerca da maldade, da mesquinharia e do individualismo crasso que caracterizam a criatura humana. Nesse sentido, me vêm à mente a metáfora comumente utilizada pela professora e filósofa Lúcia Helena Galvão para as direções opostas nas quais seguem os avanços tecnológicos e o crescimento humano: “Se se está caminhando rumo ao abismo, é preferível que se vá a pé e não de Porsche”.

Em 63 dias, a mesquinhez humana prevalece – ou ganha mais força – em meio ao caos. E quanto à humanidade, fora da ficção, nas atuais circunstâncias? “O que se poderá esperar? A mudança radical do comportamento humano ingressando toda a Humanidade no reino da paz e da bonança, ou o caos a se instalar por toda parte realizando os piores capítulos do Apocalipse?” (p. 165).

Não há resposta pronta para esta questão. Uma coisa, porém, não deixa dúvidas: 63 dias não é uma leitura para os fracos...

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CARNEIRO, L.C. 63 dias. É tudo o que teremos. 2. Ed. (Versão Estendida). Rio de Janeiro: Travassos Publicações, 2019.