domingo, 28 de junho de 2020

Do Orgulho à Liberdade



Há exatos 51 anos, um atrito entre a polícia de Nova Iorque e frequentadores de bares locais – sobretudo no contexto do Stonewall Inn, localizado no bairro de Greenwich Village, em Manhattan – marcou o dia 28 de junho como o Dia do Orgulho LGBT+.

A expressão Orgulho LGBT+, ainda pouco compreendida por muitos que lhe criticam o uso por não considerar digna de orgulho a condição homossexual e afins, surge como o oposto à “vergonha” e à “culpa” que a sociedade insistia (e ainda insiste) em tentar incutir no sujeito que escapa aos padrões da heterormatividade.

No meu entendimento, o substantivo “orgulho” não pressupõe que haja alguma vantagem em ser LGBT+. Até porque, convenhamos, não há vantagem alguma nisso, assim como não há vantagem alguma em ser heterossexual. A condição humana – e não a orientação sexual, identidade de gênero e afins – é o que nos coloca em vantagem em relação aos outros animais, vez que, caracterizada pelo uso da razão, nos dá a possibilidade (comumente pouco aproveitada) de empreendermos alguma ação em prol da humanidade.

A expressão me parece válida, porém, como forma de se expressar o amor-próprio que deve reger a existência do sujeito LGBT+ “apesar de”, como diria Clarice Lispector. Nesse sentido, cabe ao indivíduo LGBT+ reconhecer o seu valor como ser humano e lutar pela sua dignidade e exercício da liberdade “apesar de”: apesar da homofobia, apesar dos insultos, apesar das agressões físicas, apesar da resistência da família, apesar da condenação da igreja, apesar da depressão. Sempre “apesar de”.

No meu entendimento, porém, é preciso que, enquanto LGBT+, reconheçamos uma responsabilidade tanto ou mais relevante que a luta por direitos, que é o cuidado para que – ao enveredarmos pelo caminho da militância e da excessiva identificação com uma condição/orientação no contexto da sexualidade e/ou do gênero – não acabemos por oferecer combustível ao preconceito personalístico, que é a raiz de todos os preconceitos.

O preconceito personalístico, caracterizado pela supervalorização do “eu” em detrimento de tudo que dele difere e, por conseguinte, da humanidade, tem por base o egoísmo, que, se você parar para pensar, é o que jaz por trás de todo e qualquer problema pessoal e social.

O Orgulho LGBT+, portanto, deve nos conduzir ao degrau seguinte, levando-nos não a estacionarmos nesse rótulo – que é um dentre os tantos que nos são colocados quando chegamos a este mundo –, mas a nos colocarmos acima dele, reconhecendo-nos, primeiro, como integrantes da vida e da humanidade, tornando-nos, assim, eficientes em cumprir com o objetivo de buscar a Unidade, como defendia Platão.

Pedagógica como a vida é, parece-me válido tomarmos o isolamento social, que ora impede as Paradas do Orgulho LGBT+ mundo afora – evento esse que, ao meu ver, não raro contribui negativamente para a luta da referida comunidade –, como uma oportunidade para refletirmos a respeito; para nos perguntarmos se a excessiva militância não seria um subterfúgio a nos isentar do contato com a nossa sombra; para refletirmos no quanto a nossa luta contra o preconceito está embasada em preconceitos da mesma espécie; para pensarmos a massificação, comumente travestida por um ideal de liberdade, como um plano perverso contra o reconhecimento de nossa verdadeira natureza.

O exercício do autoamor, expresso na expressão Orgulho LGBT+, é útil à elevação a um outro nível, no qual, ao nos identificarmos tão somente com a condição humana, percebemo-nos prontos para amarmos a toda a humanidade, livres dos rótulos e bandeiras que tomamos como armaduras quando, na verdade, não passam de grilhões; livres das amarras e, finalmente, munidos da fraternidade, metaforizada na espada do grande guerreiro Jorge da Capadócia.

E isso, eu bem sei, exige muita coragem, ação guiada pelo coração (do latim coraticum = cor + agis). Coragem para encararmos a nossa sombra, coragem para abrirmos mão dos nossos preconceitos, coragem para sermos livres e felizes, coragem para nos reconhecermos como Um.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

O que arrasta é o exemplo



“Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. São dizeres que, se por um lado denotam hipocrisia, por outro podem revelar certo altruísmo, ainda que distorcido, quando vindos de alguém que pretenda poupar o outro dos caminhos por ele percorridos.

De qualquer forma, porém, não me parece uma pedagogia lá muito eficaz, sendo ela severamente criticada, inclusive, no texto bíblico, seja quando Jesus desaprova o comportamento dos “mestres da lei e os fariseus” em razão da incoerência entre suas ordens e ações (Mateus 23:2-3), seja quando Pedro, em sua epístola, orienta os pastores a atuarem não como dominadores dos que lhes são confiados, mas como exemplos para o rebanho. (I Pedro 5:3).

Uma frase de autoria desconhecida, mas comumente atribuída a este ou àquele personagem histórico diz que “a palavra convence, mas o exemplo é o que arrasta”.

Etimologicamente, exemplo tem origem do latim exemplum, que, literalmente, significa “uma amostra”, “o que é retirado”, e, por sua vez, deriva do verbo eximere – ex- (fora) + -emere (tirar) –, que equivale a “tirar”, “remover de”. Veja que coisa bonita: em seu sentido original, a palavra expressava a ideia de que, ao ser exemplo de alguma virtude – como a bondade, a honestidade, a resiliência e afins –, a pessoa era tida como uma pequena amostra de algo maior. Talvez de Deus, expressão máxima das virtudes. A primeira definição que o Dicionário Houaiss apresenta para o termo é “tudo que pode ou deve ser imitado; modelo”.

Você já deve ter visto aquela charge em que duas mães, junto de seus respectivos filhos, estão sentadas em um banco de praça, ao que uma, vendo o filho da outra com um livro em mãos enquanto o seu permanece vidrado no celular, pergunta-lhe: “O que você faz para o que o seu filho leia?” Detalhe: a mãe inquiridora tem um celular em mãos, enquanto a outra tem nelas um livro aberto.

Diz-se que certa vez uma mãe levou o seu filho a Mahatma Gandhi e implorou que ele orientasse o garoto a parar de consumir açúcar, ao que Gandhi, após uma pausa, disse: “Traga o seu filho novamente em duas semanas.” Embora intrigada, a mãe agradeceu, prometendo fazer o que lhe fora orientado. Assim, passadas duas semanas, eis que a mulher leva o seu filho novamente à presença de Gandhi, ao que o mestre encara o garoto nos olhos e diz: “Pare de comer açúcar.” Agradecida, mas ainda mais perplexa, a mãe pergunta a Gandhi por que razão ele lhe havia mandado retornar em lugar de haver simplesmente orientado o garoto há duas semanas, quando de sua primeira visita, ao que Gandhi respondeu: “Há duas semanas eu estava comendo açúcar.”

Pensar o caráter educador do exemplo me parece urgente em tempos em que virtudes como empatia e retidão se mostram tão presentes no discurso político enquanto, na prática, o egoísmo continua a ser a base do nosso comportamento e seguimos apegados à corrupção nossa de cada dia. O exemplo é o que arrasta, minha gente, e não a nossa demagogia.

É natural que, ao falarmos de exemplo, pensemos em nossa postura diante de nossos filhos, alunos, subordinados e afins. Vale, porém, ampliarmos um pouco mais esta discussão de modo a contemplar também os governantes que tanto criticamos.

Ora!, seria mesmo possível que ditadores, elitistas e corruptos nasçam no seio de uma sociedade virtuosa? Depositar em impeachments e em eleições toda a nossa expectativa por renovação não seria como trocar de espelho em razão da espinha que vimos no rosto ontem?

Epicteto (55 d. C. – 135 d. C.) chamava de escravo aquele que insiste em lutar contra coisas que não dependem dele sem nada fazer quanto àquilo que de fato lhe compete. É um pouco o que fazemos quando, passionais ou mesmo dominados por uma tola ilusão, esperamos mudar os outros pela palavra pouco ou nada nos empenhando em sermos exemplo.

É que ser exemplo dá trabalho! Mudar a nós mesmos dá trabalho. A única alternativa a esta mudança, porém, é seguirmos dedicados aos nossos inflamados, mas vazios discursos, colhendo, assim, os miseráveis resultados de sempre.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal - Andrei Moreira



Foi por acaso que ele se revelou para mim. Eu estava na Livraria Leitura do Boulevard Shopping quando o vi e, surpreendido pela temática e pela belíssima capa, na qual dois cravos ilustram poeticamente a homoafetividade, levei-o para casa.

Como de hábito, não o li de imediato, deixando para fazê-lo no momento certo, que, certamente, me seria comunicado. E quando o li em 2018, nova surpresa eu tive ao perceber o quanto ele dialogava com questões minhas.

“Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal”, de Andrei Moreira – médico homeopata, constelador familiar, expositor e figura proeminente no meio espírita – é um dos livros que me veio como resposta de Deus aos conflitos que, em algum momento, enfrentei em relação a minha sexualidade.

Em um contexto em que mesmo os movimentos ditos defensores da liberdade se mostram intolerantes quando você não lhes segue a cartilha, a obra de Andrei Moreira me veio como um convite a encontrar o meu jeito de me colocar como homossexual no mundo. Ou, para mais além disso, um convite a me elevar acima dos rótulos, identificando-me sobretudo como ser humano e contribuindo, assim, para a harmonia tão prejudicada pelo excessivo foco nas naturais diferenças da nossa personalidade, que só faz criar conflitos e atritos de toda ordem.

Aí você me dirá algo como: “Ah!, mas se trata de um livro espírita etc. e tal”. Olha, o maior erro que pode cometer alguém que segue em busca da sabedoria é descartar por inteiro esta ou aquela filosofia por não lhe ser adepto. Embora simpatizante da doutrina, eu tampouco sou espírita, mas seria sinal de tremenda mediocridade desprezar, por isso, todo o valioso ensinamento contido nas obras de Kardec, Chico Xavier e afins. O verdadeiro buscador não permite que preconceitos de qualquer ordem obstruam o seu caminho.

É certo que existe muita coisa ruim produzida por aí, mas mesmo tal conclusão deve ser ulterior à sua disposição para conhecer...

Em um momento em que o isolamento social inviabiliza a Parada do Orgulho LGBT pelo mundo afora, parece-me válido tomar a pandemia como um convite a repensarmos a condição com a qual a vida nos presenteou para a execução de alguma tarefa neste mundo, sem, no entanto, fazer dela uma bandeira que não raro desvirtua as verdadeiras causas.

Nesse sentido, ““Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal” foi, para mim, um resgate; um sol iluminando os meus cômodos obscurecidos como forma de me dizer que, a despeito do preconceito com o qual sou, sutil ou expressamente, metralhado todos os dias, ainda sou aceito e digno da felicidade.

Uma leitura que me veio comunicar, sobretudo, que o pior dos preconceitos é, sobretudo, aquele que temos contra nós mesmos, não raro nos levando a uma excessiva militância que nos distraia da difícil tarefa de enxergar os nossos conteúdos sombrios.

Como eu tive a oportunidade de dizer ao autor durante um evento em julho do ano passado, é fato que nenhuma leitura transforma uma vida por si só. Ela tem em si, no entanto, o potencial de gerar uma ação ao iluminar possibilidades, oferecendo-nos as bases para a transformação pela a qual o nosso coração anseia e que é toda a nossa razão de ser neste mundo.

***

MOREIRA, Andrei. Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME Editora, 2016.

domingo, 14 de junho de 2020

A metáfora solar

Dia desses ouvi algo que achei tão bonito... Imagine uma pessoa que brigou com o sol, por razões diversas: o envelhecimento da pele, queimaduras, acne etc. Num belo dia, porém, essa pessoa decide fazer as pazes com o sol e, nisso, abre todas as portas e janelas de sua casa como forma de dar acesso aos raios do astro-rei.

Perceba que a distância que essa pessoa tinha do sol é a mesma antes e depois de abertas as portas e janelas. Não obstante, o simples fato de essa pessoa haver se disposto a se colocar em contato com o sol, já faz com que ele a alcance.

Ao ouvir isso, de imediato me lembrei daquela conhecida frase segundo a qual "quando o homem dá um passo em direção a Deus, Deus dá mil passos em direção ao homem". Não há a menor dúvida de que, quanto mais próximos estivermos do Sol, mas Ele nos aquecerá; quanto mais próximos da Luz, mais Ela nos iluminará. Não obstante, sendo eu ainda limitado, sendo eu ainda preguiçoso demais para sair diariamente para uma caminhada e receber na pele o sol da manhã, abro diariamente a minha casinha como forma de dar acesso a esses raios, que, aos poucos, invadem os meus cômodos e até mesmo os meus porões há muito carentes de luz.

É isso. Essa disposição, essa coragem para o primeiro passo o fundamental para toda e qualquer jornada. A despeito das nuvens negras que podem surgir ao longo do dia (e elas surgem), mais vale o primeiro passo, caminho sem volta, e a certeza de que, ainda que o dia nos pareça nublado, o Sol permanece lá, implacável, desejoso de que interrompamos a nossa rotação e nos tornemos Um com Ele, como um rio a se perder no mar... realizado... feliz por haver morrido para finalmente viver...

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A sua Resistência não joga pra perder. E você?


 

Se você já participou de alguma vivência de coaching, você deve conhecer ou até mesmo haver participado da dinâmica da madeira.

Ela funciona assim: depois de haver manipulado as emoções dos participantes com a sua exposição, o palestrante convida um voluntário ao palco solicitando-lhe que escreva em um pedaço de madeira aquilo que considera como sendo seus defeitos, obstáculos ou qualquer coisa que deseje vencer em sua vida. Feito isso, o palestrante posiciona a madeira diante do voluntário para que este – depois de muito suspense e ao som de Eye of the Tiger e dos gritos de incentivo da plateia – quebre o objeto.

É uma dinâmica de empoderamento (enfoderamento, eu diria) que, naturalmente, simboliza a vitória sobre tudo aquilo que nos impede de atingirmos as nossas metas.

Há algum tempo, tomado por uma paixão que, junto de várias outras coisas, compunha um pacote cujo peso me rendera um efeito colateral chamado depressão, ouvi de meu terapeuta o seguinte: “O João é algo no qual você deposita a sua energia como forma de fugir àquilo em que ela realmente deve ser investida. O João é o demônio que o impede de enxergar aquilo que você realmente é”.

Na ocasião, eu compreendi, naturalmente, a metáfora utilizada pelo meu terapeuta para algo que eu fazia inconscientemente (e às vezes nem tão inconscientemente assim...). Só recentemente, no entanto, ao ser abençoado com a leitura de um maravilhoso e outrora subestimado livro de Steven Pressfield – A Guerra da Arte – pude ter uma compreensão completa dos dizeres do meu nobre terapeuta.

O referido autor chama de Resistência toda e qualquer força que, sutilmente, procure nos dissuadir de realizar aquilo que vai nos elevar – e, por conseguinte, elevar o mundo à nossa volta – a um novo patamar de consciência. Uma força que não age contra nós em especial, mas contra qualquer movimento para o alto, vez que quer manter as coisas como estão ou, se possível, piores. Você já deve ter ouvido dizer que “para descer, todo santo ajuda”, certo?

Lembrei-me de quando a minha sempre tão sábia irmã me chamou a atenção para a atuação dessa força quando eu considerei mudar de emprego justamente quando vislumbrei a possibilidade de uma promoção... que realmente aconteceu.

Sim, o meu terapeuta, como de hábito, tinha razão: trata-se do demônio, equivocadamente representado como um cara vermelhinho, com chifres e rabo pontiagudo. A Resistência é um demônio que age com muito mais sutileza. Um demônio cuja arma não é um tridente, mas outra muito mais afiada, como uma depressão, uma distração, um efêmero prazer ou mesmo como aquela desculpa muito bem fundamentada para que deixemos para amanhã a tarefa que, por ser a missão de nossa alma, tem urgência de ser realizada.

A Resistência é Mara empenhado em impedir a iluminação de Buda sob uma árvore de rudraksha. A Resistência é o diabo a tentar Jesus em meio ao deserto a fim de dissuadi-lo  de ser Deus para ser homem. A Resistência é obstinada, e se esses grandes mestres a venceram, não foi para que nos lembrássemos deles como fodões. Eles superaram há muito esse tipo de vaidade. Eles a derrotaram como forma de nos deixar um legado, lembrando-nos sempre do nosso potencial para também vencermos a força que, dia após dia, nos impele para trás enquanto nadamos contra a corrente.

“Não deis lugar ao diabo” (Efésios 4.27), já nos diz o texto bíblico, pois é preciso que sejamos bons nadadores. Não para lograrmos medalhas, mas porque, ao alcançarmos a margem, a humanidade inteira ganhará novo fôlego junto de nós. Manter o foco naquilo que há de nos realizar como seres humanos é, portanto, quase um ato político, que torna plausível a utilização daquela famigerada frase em um contexto muito mais nobre.

“Se fere a minha existência, serei resistência.”

É bem isso. Em lugar de cedermos à Resistência, resistirmos a ela diligentemente, visando trazer à baila aquilo que somos em essência. Isso sim é lutar pela própria existência.

E lembre-se: quanto maior for a Resistência, maior é a urgência de superá-la. Quanto mais rígido for o pedaço de madeira, maior há de ser a felicidade da qual toda a humanidade gozará quando, finalmente, o fizermos em pedaços.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

O Bruxo do Cosme Velho

O Bruxo do Cosme Velho... Filho de negros forros e criado por uma lavadeira que lhe faz as vezes de madrasta. Um autodidata. Um mulato casado com uma portuguesa branca em pleno século XIX. Uma homem cuja obra, reveladora de um peculiar conhecimento da alma humana, segue atual, vez que o homem – feliz ou infelizmente – não costuma sofrer significativas mudanças. O maior nome da literatura brasileira e um dos maiores nomes da literatura mundial, chegando a ser comparado a Shakespeare, Camões e afins.

Ler Machado de Assis sempre me pareceu árduo, eu confesso, tanto pela pureza da linguagem que caracteriza a sua obra como – hoje eu entendo – por se tratar de uma leitura que, mais do que domínio da língua, exige maturidade e disposição para se aventurar pelas mazelas humanas.

O poeta Henry Wadsworth Longfellow uma vez disse: “As vidas dos grandes homens nos lembram que podemos tornar a nossa vida sublime, deixando para trás pegadas nas areias do tempo.” Aí você contempla a genialidade de um Machado de Assis, o que esse homem foi capaz de fazer, de viver e de criar e vê o seu próprio crescimento enquanto ser humano como algo factível; vislumbra a possibilidade de também se tornar sublime. Veja o quão grandes podemos nos tornar.

Sobre esse profundo conhecedor do drama humano, Carlos Drummond de Andrade escreveu em um poema a ele dedicado: “Outros, da vida, leram apenas um capítulo. Tu leste o livro inteiro”. Em tempos de tamanhas incertezas e referências duvidosas, a notícia do esgotamento dessa nova edição nos EUA nos traz uma esperança renovada, bem como nos convida a revermos as bandeiras que, tão ingênuos e orgulhosos, trazemos no peito. E, como bem disse hoje o Chico Alves, convém que não esqueçamos que uma terra que pariu Machado de Assis não há de ser um caso perdido.

A história do mimimi



Dia desses, peregrinando pelas redes sociais, vi um post bem singelo que trazia um pequeno diálogo entre mãe e filho. “Mãe, o que é mimimi?”, ao que a mãe, sábia e objetivamente, responde “Mimimi é a dor que não dói na gente”. Vi-me pensativo diante desse post, ficando a indagação da criança a reverberar na minha mente. “Afinal, o que é mimimi?”, eu me perguntava, e tal foi a minha surpresa quando me veio que o tal “mimimi” – não a palavra em si, mas o conceito – está há muito presente em nossa história. E eu gostaria de lhe pedir licença para contar um pouco dessa história...

Bom, quando os navegadores portugueses chegaram a Pindorama, falava-se por aqui uma média de 1.300 línguas indígenas distintas.

Aqui eu preciso fazer um parêntese só para te contar que Pindorama – termo que pode ser traduzido como terra das palmeiras – era o nome pelo qual os habitantes da região “descoberta” por Cabral (1467-1520) e sua frota a designavam. No imaginário dos povos tupis-guaranis, Pindorama era uma terra livre de todo mal, mito esse supostamente criado quando da migração desses povos indígenas para o litoral brasileiro.

Então, a gente pode dizer que Pindorama foi o nome pelo qual os nativos batizaram a região que hoje conhecemos como Brasil. A propósito, objetivando exaltar a cultura indígena como parte de nossa identidade, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) aludiu à denominação tupi em seu Manifesto Antropófago (1928), que defendia uma arte tipicamente brasileira, livre das influências europeias.

Bom, então voltando: quando – acidentalmente, como defendido por alguns – o Brasil foi “descoberto”, falava-se por aqui cerca de 1.300 línguas. E não é por menos, já que algo como 8 milhões de nativos habitavam essas terras.

Os portugueses, então, fizeram algo muito importante, que foi o agrupamento dos povos indígenas com base nas similaridades entre suas línguas, destacando-se o tupi como um dos principais troncos na classificação linguística. Portanto, tupi, no sentido genérico do termo, se refere aos nativos que habitavam a costa brasileira naquele tempo e que falavam a língua tupi antiga.

Fique você sabendo que o verbo “falar” equivale a “nheem” (ñe'eng) na língua tupi. Parece que os portugueses não tinham lá muita paciência com o falatório dos índios tupis, de modo que eles fizeram da tripla repetição do verbo “nheem” – ou seja, “nhenhenhém” – uma referência depreciativa ao falar daquele povo.

Assim, “nhenhenhém” se tornou uma onomatopeia utilizada como referência a um falatório incessante, ou mesmo ao ato de resmungar, reclamar etc. Lá pelos anos 40, porém, a gente importou o “blablabla” do francês, derivado do verbo “blaguer”, que em português é gracejar, zoar, fazer piada etc.

O curioso é que existe um poema da Cecília Meireles (1901-1964) intitulado “A língua do nhem” (Ou isto ou aquilo, Rio de Janeiro, 6. Ed., Nova Fronteira, 2002, p 63-64), que nos apresenta uma doce velhinha que, triste por não ter com quem conversar, vivia resmungando sozinha pela casa: nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa da velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Beleza, mas e o “mimimi” nessa história toda? Bom, essa gíria, que parece um choro, surgiu em "Fudêncio e Seus Amigos", série de animação politicamente incorreta exibida pela MTV entre 2005 e 2011. Na série, o protagonista – semelhante à velhinha do poema da Cecília Meireles – falava apenas a língua do "mimimi", irritando um outro personagem.

Utilizada desde o início como forma de diminuir ou mesmo escarnecer da reclamação de outrem, a expressão “mimimi” era muito comum entre os torcedores no contexto do futebol. Quando o time da pessoa fracassava, ela ficava de “mimimi”. Depois, no entanto, essa onomatopeia se tornou quase que um jargão político, utilizada, sobretudo, como forma de menosprezar manifestações em prol das minorias.

É fato que o “nhenhenhém”, o “blá-blá-blá” e o “mimimi” diferem entre si no sentido de que uma zomba do falar de um povo, outra se relaciona ao ato de “falar abobrinha” (a origem desta eu te conto noutra hora) e outra reduz ao vitimismo a reivindicação de determinados grupos sociais. As três palavras, no entanto, têm em comum o fato de expressarem, pejorativamente, um posicionamento contrário a algo ou a alguém. Sendo a nossa linguagem um incontestável reflexo social, é natural (mas não louvável) que em todas as épocas não nos haja faltado nem mesmo onomatopeias a marcarem o lugar do opressor e do oprimido, ou, para mais além disso, a evidenciarem a ausência de empatia, qualidade essa indispensável a qualquer sociedade que se pretenda realmente civilizada.

E o que é empatia? Definições é o que não faltam, mas eu vou te dar uma por via da poesia: empatia é a virtude que levou o gato, o cachorro e vários outros animais a aderirem à “língua do nhem” no poema da Cecília, curando na boa velhinha o sentimento de solidão em lugar de repreendê-la por uma solidão que não era deles.

O nome disso é fraternidade, que é o alicerce de uma sociedade “livre de todo o mal”, como aquela terra mítica idealizada pelos nossos ancestrais indígenas, talvez já prevendo o que séculos mais tarde viria a ser defendido por algumas vertentes, segundo as quais é o Brasil o ponto de partida para a regeneração da humanidade.

Fraternidade... E onde existe fraternidade não há que se falar em “mimimi”.