segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Motorista apaixonado

Ainda sofrendo as dores de uma história mal resolvida com o homem de meu mesmo nome, sentia os meus olhos marejarem ante as breguices de Gian e Giovani que se sucediam no rádio. E foi procurando conter as lágrimas que eu disse ao motorista – o meu quase xará –, em tom de pilhéria.

– Alexandre, eu estou achando que você está apaixonado, hein?

Estranhamente, recebi do cara que há pouco interagia tão descontraidamente comigo uma resposta séria, típica de quem tem a mente a quilômetros do momento presente.

– É... pior que eu estou mesmo. – Ele disse, reflexivo.

Versado na estúpida arte de me apaixonar, empolguei-me, pronto para bombardeá-lo com os conselhos que eu nunca segui. E eis que Alexandre me interrompeu antes que eu desatasse a fazê-lo.

– Mas não é o tipo de paixão que você está pensando, não.

– Não? – Perguntei, buscando na memória algum outro tipo de paixão que levasse as pessoas a escutarem músicas melodramáticas.

– Não. – Alexandre prosseguiu. – É que eu perdi o meu pai há quarenta dias e estou tentando me habituar a escutar as músicas que ele gostava.

Engoli em seco, receoso de falar alguma bobagem e novamente às voltas com a minha dificuldade em encontrar o que dizer diante de uma situação tão dolorida como a morte. Alexandre continuou, visivelmente emocionado.

– É que eu sempre choro ao escutar as músicas preferidas dele, e por isso estou tentando me acostumar com elas para parar de chorar na frente dos outros.

Estas últimas palavras foram ditas quando o carro já estacionava em frente ao meu condomínio. Pensei no meu pai, que neste mesmo dia, pela manhã, estivera em minha casa, resolvendo com o zelador questões não resolvidas por mim no espaço de um ano de moradia. Pensei em todas as razões – das utilitárias às não utilitárias – que tornam tão difícil a perda de um pai ou de uma mãe.

Não sei o que levou a óbito o pai de Alexandre. Talvez ele haja sido vítima do maldito vírus que se alastrou por toda a humanidade. Talvez haja sido a idade ou as doenças comuns ao seu avanço.

Enfim... Não sei e nem vou saber.

Lamentei, porém, não haver encontrado algo de significativo para dizer ao Alexandre, bem como o fato de haver passado a maior parte da viagem contendo as lágrimas por um outro Alex tão indigno de ser lembrado, enquanto o motorista continha as suas pela triste ausência do pai; um Alex que, além de ignorar a minha existência, provavelmente nem curte Gian e Giovani.

Não há muito o que fazer – nem por mim e nem pelo motorista –, a não ser fazer desta tentativa de prosa poética o meu minuto de silêncio pelo pai do Alexandre.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O dinossauro na autoestrada

Se você tem mais de duzentos e vinte e sete anos, certamente conhece este quadro (risos). Tal como os misteriosos “quadros das crianças chorando”, ele era comumente encontrado em casas mais humildes.

Recordo de, em criança, ficar observando-o em nossa casa lá no bairro Itaipu, onde morei até os meus dez anos de idade. A sensação que ele me causava, porém, não era boa, visto que – inocente que eu era –, concebia-o como uma fotografia, e não como a pintura que de fato é. Lembro de perguntar aos meus pais se aquilo havia acontecido por perto ou em outro país, sendo essa última possibilidade tranquilizadora para mim.

A vulnerabilidade dos motoristas – confirmada pelo veículo capotado – diante da criatura gigantesca me assustava, provocando um misto de pavor e piedade.

Não sei que fim teve aquele quadro. Apenas sei que o mesmo não nos acompanhou quando nos mudamos no final de 1994.

E hoje sei também que se trata de um quadro de 1980, intitulado “Dinosaurier auf der Autobahn" (O dinossauro na autoestrada) e de autoria do suíço Giuseppe Reichmuth. Parece-me que o pintor nasceu em 1944, mas não sei o que anda fazendo ou se ainda vive. É possível que haja sido engolido por um dinossauro...