segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sobre livros e tevê

Embora bem-intencionada, esta ilustração sempre me deixa pensativo.

Vamos por partes, começando pelo fato de ela estar desatualizada, vez que hoje melhor seria substituir a imagem da tevê pela de um smartphone devidamente conectado a todas as redes sociais possíveis. Não obstante, ignoremos esse pormenor, até por ser a tevê algo ainda muito presente em nossa rotina.

Outro ponto que me parece problemático é a vilanização da tevê e a exaltação do livro, como se este fosse por si só a solução para tudo e aquela fosse uma maldição, um veículo do qual não se possa fazer bom uso.

Nesse ponto, eu fico pensando nas novelas mexicanas que eu tanto adoro (risos) e nas boas opções que há na programação televisiva, mas que precisam ser garimpadas, vez que, por não atraírem as massas, estão sempre fora do horário nobre. Fico pensando também em homens de incontestável inteligência, como Adolf Hitler, e sua nefasta atuação sobre o mundo.

E é daí que me vem a reflexão de que o bem ou o mal nem sempre estão nas coisas em si, mas no uso que dela fazemos, por mais clichê que isso soe. Ademais – por mais bem-vinda, necessária, útil, importante e indispensável que seja a leitura – há que se desconstruir a romântica e pouco pragmática ideia de que os problemas do mundo cessariam a partir do momento em que todos aderissem ao hábito de ler.

Isso não é verdade, pois mesmo o hábito de leitura precisa ser precedido por políticas que a tornem acessível. E, aqui, nós estamos falando de educação, de inclusão social e de uma série de coisas que devem se dar não a partir da leitura, mas antes dela; para conduzir a ela, e não o contrário.

Ademais, havemos que pensar também na qualidade da leitura. De que leitura estamos falando, afinal? Seja lá o que for, é ótimo que as pessoas estejam lendo, mas seria desonesto ignorar o abismo existente entre “Dom Casmurro” e “Os segredos da mente milionária”, certo?

Enfim, em suma, a mensagem aqui é: incentivemos a leitura, sim, mas sem romantiza-la, pois opiniões estanques são, não raro, problemáticas, e o mundo, por mais cruel que isto pareça, está longe de ser assim tão quadradinho.


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Não existe relacionamento fracassado!

“Não deu certo”. Eis uma afirmação comumente utilizada como referência a um relacionamento encerrado. Afirmações desse tipo partem da equivocada ideia de que as coisas precisam ser eternas. Caso contrário, é porque “não deu certo”. Ora!, não existe relacionamento fracassado. Existe é relacionamento terminado. Relacionamento que, quando se tornou disfuncional, foi prudentemente interrompido.

Neste ponto, você pode estar questionando: “Mas isso não faz sentido! Por uma lógica antonímica, se uma coisa parou de dar certo, é incontestavelmente óbvio que ela passou a dar errado!” Calma... e atente-se para o fato de que a abordagem aqui não se dá no campo semântico, mas, sim, na perspectiva que temos de relacionamentos e términos, comumente oriunda do mito do amor romântico.

O tão famigerado “final feliz” ainda é para nós sinônimo do “e viveram felizes para sempre”. Se nos fosse revelado que, alguns meses após o conhecido final, Cinderela se cansou daquela monotonia, pegou a sua parte da grana e resolveu dividir apartamento com as meias-irmãs, todo aquele amor vivido entre ela e o Príncipe perderia o valor para nós, pois só vale se for “para sempre”, embora nem a própria vida o seja. Não raro, um namoro terminado é lembrado (e avaliado) pelo desfecho trágico e não pelos anos bem vividos. E, nesse sentido, o fato de a história haver tido um fim nos leva a considerar todo o resto como tempo perdido, como se, para valer a pena, as coisas precisassem ser eternas.

É óbvio que ninguém embarca num relacionamento pensando no dia em que ele vai terminar. Da mesma forma, ninguém começa em um novo emprego pensando algo do tipo “quero dar o fora daqui em seis meses” ou se muda para uma casa nova afirmando “vou permanecer nesse imóvel só até ano que vem”. A princípio, a gente investe nas coisas objetivando que elas durem, e isso é natural e até saudável em certa medida. Mas fato é que um dia somos demitidos ou recebemos uma proposta de emprego melhor; um dia o aluguel fica muito salgado e a gente precisa procurar por outro imóvel; um dia os estilos de vida, os sonhos, os comportamentos, as visões de mundo não mais se alinham... e a gente precisa pôr fim a certos relacionamentos.

É claro que há aqueles relacionamentos que já começam “errados”, por assim dizer, mas esses são casos à parte, e mesmo eles, de alguma forma, também cumprem com o seu papel em nossa jornada. De um modo geral, porém, relacionamentos não dão errado. Eles apenas param de dar certo ou nos proporcionam algo distinto do que deles esperávamos.

Errada é a falsa ideia de eternidade que, comumente, nos leva a jogar na lata de lixo tudo aquilo que, embora haja chegado ao fim, foi maravilhoso enquanto durou (ou que, mesmo nunca havendo sido maravilhoso, ao menos nos ensinou a nunca mais nos colocarmos em uma situação afim). É triste ver pessoas definirem como “fracassado” um relacionamento que gerou até filhos! Meu Deus! Se há filhos, então deu certo. Se houve amor ou mesmo tesão, deu certo, sim. Se foi legal durante dois ou três dias, já deu super certo! Se nos ensinou a fazermos melhores escolhas, deu certo. Se proporcionou aprendizado, amadurecimento e autoconhecimento, então valeu, cumpriu com o seu propósito, deu certo...

Essa falsa ideia de eternidade é muito comum nos relacionamentos, fazendo-se presente desde a tatuagem com o nome do companheiro até a vida completamente alicerçada naquela parceria. Mas não é só nos relacionamentos que essa ideia se faz presente. Veja você que o nosso modo de viver pressupõe uma ilusão de que a própria vida neste plano é eterna. Nós, simplesmente, não somos suficientemente treinados ou maduros para lidar com a finitude das coisas. Mas fato é que as coisas são transitórias, sendo esta uma verdade incontestável. E penso eu que, quanto mais conscientes formos da inconstância das coisas, mais propensos estaremos a estabelecermos bases firmes em nós mesmos, sem construirmos castelos sobre alicerces de areia.

Sabe aquela frase que diz “foi bom enquanto durou”? Pois é... Ela é clichê, mas expressa uma verdade equivocadamente contrariada por afirmações do tipo “o relacionamento não deu certo”, “o romance fracassou” e afins. As pessoas estão em constante mutação, e é inteligente e até mesmo saudável reconhecer quando as discrepâncias, comuns em todo e qualquer encontro, estão fazendo a relação ruir; quando os interesses já não são os mesmos, inviabilizando, assim, a manutenção de algo que já não faz sentido.

Ou seja: até mesmo a concordância entre ambas as partes quanto a haver chegado a hora de cada um seguir o próprio rumo é sinal de um relacionamento saudável e bem-sucedido. Pôr fim a uma relação por vezes se revela como um verdadeiro ato de amor, pois não raro acontece de haver amor, mas não haver possibilidade de alinhar os objetivos, valores, expectativas e afins. É quando chega o momento de, por amor – amor pelo parceiro e amor-próprio – libertar o outro e libertar a si mesmo.

A intenção aqui, no entanto, não é induzi-lo a adotar a efemeridade como modo de vida a partir de então. Pelo contrário, o que pretendo é convidá-lo a seguir embarcando nas experiências com a intensidade que elas comumente exigem e merecem. Mas, se porventura tais experiências chegarem ao fim, não as rotule como fracassadas, pois isso seria enveredar por uma inverdade que só traz tristeza e sensação de perda de tempo. Pelo contrário, comprometa-se, a partir de então, a modalizar a sua fala sempre que se referir ao relacionamento passado, substituindo “não deu certo” por “foi super legal e produtivo, mas tivemos que descontinuar” ou “deu certo, mas, quando começou a não funcionar, a gente achou por bem terminar”.

Mas é para dizer isso a você mesmo, e não para os outros, que não têm absolutamente nada com a sua vida. Não se trata de provar nada a ninguém, mas de saber isso internamente, sempre ciente de que, humanos que somos, por vezes a gente vai sofrer, por vezes a gente vai chorar, sentir raiva, mágoa... E está tudo bem, pois eu sei que é difícil... É difícil encarar de maneira tão inspirada um relacionamento pelo qual estamos ainda enlutados. É difícil conceber dessa maneira um relacionamento abusivo (pelo qual ninguém deveria passar e que de maneira alguma pretendo romantizar aqui). Atribuir sentido, porém, pode ressignificar e amenizar a dor de uma experiência dolorosa. Trata-se de uma mudança de paradigma que denota gratidão à vida pela experiência vivida e, sobretudo, ao outro, que atravessou conosco uma fase que, por alguma razão desconhecida, se fez tão necessária ao nosso processo de aprendizagem. Esse, sim, interminável.

Nesse sentido, não entremos em um relacionamento tendo a eternidade como meta, mas, sim, para fazer dar certo, para evoluir, para ser feliz e fazer feliz enquanto possível for, sem nunca esquecer as palavras do poeta: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

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Este artigo foi originalmente publicado em minha coluna nos portais O Segredo e Eu Sem Fronteiras.


sexta-feira, 2 de julho de 2021

Os iluminados da Zona Sul

Como vivem? De que se alimentam? Como se reproduzem?

Bom, as variações são muitas, na verdade, mas, em sua expressão mais estereotipada, eles são tipos curiosos com uma serenidade falsamente afetada, similar à Monja Coen no início da fama (eu gosto muito da Monja Coen, ok?). A voz de veludo é, aliás, um recurso necessário ao convencimento (dos outros e deles próprios) de que transcenderam todas as vicissitudes humanas.

Mas cuidado! Quando confrontados com questões da vida real, é comum que eles sejam dominados pelo instinto animal que habita todos nós, extravasando toda a sua ira por meio da crueldade, dos insultos e de toda a sorte de agressões.

Em razão de uma dieta extremamente restritiva, dado o seu rígido estilo de vida vegano, alguns deles têm uma aparência subnutrida, o que costuma fazer parte do pacote que lhes permite jogar na cara da sociedade o elevado patamar no qual se encontram na escala evolutiva.

Outros, porém, preferem sobrecarregar as suas redes sociais com fotografias ostentando asanas (posturas de yoga) com uma perícia impecável, ou cliques nos quais eles se exibem em posição de lótus (a despeito da baita incoerência que há no fato de querer se exibir em um momento teoricamente voltado à introspecção e à desconexão com o mundo externo).

São brancos em sua maioria, e os “núcleos ascensionais” que costumam frequentar se localizam na zona sul em sua quase totalidade. Até porque não é qualquer um que dispõe de 300 ou 400 reais para investir nas suas dispendiosas terapias. Portanto, lamento informar, mas se você vive na periferia e “vende o almoço para comprar a janta”, não há muita chance pra você, pois a evolução espiritual está incontestavelmente condicionada ao seu poder aquisitivo (sim, contém ironia...).

Existe, aliás, uma incoerência neles (a incoerência é, por sinal, a sua marca registrada). É quase consensual a sua admiração por pessoas como Buda, Jesus e afins. Os Iluminados da Zona Sul, porém, não parecem nada propensos a adotar o estilo de vida abnegado e miserável escolhido por esses mestres que eles tanto dizem admirar.

Alguns deles, ditos “terapeutas”, obtêm um rendimento superior a renda média da população, e surfam no vazio existencial de uma classe média perdida, imediatista e por vezes desacreditada nos métodos cartesianos.

É comum não gostarem de pobre, o que está sutilmente implícito em um discurso aparentemente inofensivo. Falam de autorresponsabilidade (conceito muito válido e bem-vindo, aliás) como apologia à meritocracia e negação às estruturas sociais segregacionistas dentro das quais eles são privilegiados; dizem que “a energia não mente” como forma de justificar, de uma maneira mui espiritualizada, os próprios preconceitos; defendem que “somos todos um”, mas “confundem” amor-próprio com egoísmo e individualismo quando isso lhes convém.

A sua filosofia (de fachada) é embasada em frases soltas de Chico Xavier, Sidarta Gautama, Gibran e afins, sempre defendendo o amor como a solução para o mundo (como de fato é). Acontece, porém, de você não ser acolhido com toda essa amorosidade ao recorrer a eles fora do contexto “terapêutico”. O que se justifica pelo fato de que a sua dignidade só lhes é notada enquanto você lhes estiver oferecendo algum lucro.

Eles alegam que o Reiki pode ser eficaz na diminuição do estresse e da ansiedade; defendem que a terapia tântrica, o ThetaHealing e o diabo a quatro podem amenizar quadros de depressão e oferecem, por meio das Constelações Familiares, respostas para todos os problemas existentes em sua vida! Curiosamente, porém, ignoram condenação por fraude ou mesmo discursos homofóbicos e machistas que envolvem essas práticas.

Nada é mais surpreendente e complexo que os Iluminados da Zona Sul, os quais, creio, só perdem para os militantes que clamam por liberdade e empatia, mas se convertem no demônio quando confrontados com opiniões divergentes das deles.

Eu fico me perguntando qual será o destino desses nobres conquistadores do nirvana. E se de repente a humanidade fosse visitada pelo bom senso, esvaziando os seus sofisticados espaços terapêuticos? Por quanto tempo duraria o seu “estado alterado de consciência”?

Bom, eu não sei. Tudo o que sei é que entre esses tantos ególatras travestidos de espiritualistas, há pessoas de fato comprometidas com o próprio aprimoramento, conscientes do próximo e empenhadas na elevação da humanidade a um novo patamar de consciência. Sim, tais pessoas existem, mas é premente ressaltar que, infelizmente, elas não são uma maioria, mas, sim, uma exceção. Em vez de procura-las, porém, eu sugiro algo melhor: que você procure se tornar uma delas.

P.S.: enquanto eu preparava este artigo para postagem, vi-me dominado pelo intenso receio de que o mesmo causasse incômodo ou mesmo ofendesse a quem, definitivamente, não pertence ao grupo que eu pretendia apontar aqui. Por “apontar”, aliás, entende-se não um ataque desmotivado e meramente recreativo, mas, sim, por chamar a atenção para um problema real que tem causado danos à vida de pessoas.

Nesse sentido, ao reproduzir no texto um estereótipo extremado, o meu objetivo não passa por atacar pessoas, mas, sim, por trazer à tona uma questão social, a saber, a reprodução de preconceitos e práticas excludentes no contexto espiritualista.

Como esclarecido no parágrafo final, não há generalizações aqui, havendo, sim, a consciência de que, mesmo dentre aqueles que se enveredam pelos comportamentos aqui descritos, há os que o fazem sem intenção vilanesca, mas, sim, por falta de consciência social.

Este artigo, portanto, se configura como um convite à tal consciência, da qual nenhum espiritualista é privado. Muito pelo contrário, inclusive. Configura-se, também, como uma crítica à hipocrisia nossa de cada dia.

Enfim, dada a fragilidade que se faz presente em todos no momento atual, bem como o meu receio em soar ofensivo (ou ao menos gratuitamente ofensivo), se fez necessário este post scriptum, que, espero, se faça suficiente para a compreensão do que se pretendeu aqui.

Texto originalmente publicado em minha coluna no Eu Sem Fronteiras.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Uma fase chamada Danielle Steel


Era um início de tarde cinzento de 2002. Chuviscava, é verdade, mas aquele sábado estava cinzento mesmo porque, só pra variar um pouquinho, eu estava apaixonado pelo professor de História do pré-vestibular (aliás, quem não estava?). Assim, saindo da cursinho por volta do meio-dia, fui à banca de livros usados que havia lá na Rua dos Tamoios, em frente à antiga Telemar. Naquele tempo, a prefeitura não havia ainda proibido os camelôs.

Nessa banca, sempre havia livros da Danielle Steel, escritora do gênero Chick-Lit que me havia sido apresentada pela Irani, querida amiga da época. E foi nesse dia que eu comprei o meu primeiro livro, “Momentos de paixão”, por exatos R$5.

Irani e eu costumávamos cabular aula no pré-vestibular só pra ir até a biblioteca pública lá na Praça da Liberdade, onde ela, cega, pegava de empréstimo aqueles enormes volumes em braile. Antes de “Momentos de paixão”, aliás, eu já havia lido outras obras da Danielle Steel disponíveis no acervo da biblioteca. “Vale a pena viver” foi a primeira. Depois vieram outras tantas: “Uma só vez na vida”, “Um amor conquistado” (belíssimo...), “Acidente” etc.

Mas o que eu queria ler mesmo era um sobre o qual a Irani sempre mencionava como sendo maravilhoso – “Segredo de uma promessa” – mas que não existia no acervo da biblioteca. E eis que o mesmo me veio pelas mãos da minha irmã Patrícia, que, de tanto eu falar do livro, fez peregrinação pelas livrarias-sebo de Belo Horizonte e o encontrou, me dando de presente de Natal junto a outros dois: “Casa forte” e “Meio amargo”. O curioso é que “Segredo de uma promessa” foi o pior livro da Danielle Steel que eu já li. Ironias da vida... (risos)

Eu gostava de ler as estórias daquelas norte-americanas de classe média alta. Não sei por quê. Acho que o feminino em mim se identificava. Gostava de vê-las lutando pela família, se dando uma nova chance no amor, indo contra as convenções sociais e, claro, entregando-se ao amor de suas vidas...

Todavia, à medida que a vida real foi se impondo, o gosto pelas obras da Danielle Steel foi se esvaindo também. Mas sou sempre tomado de ternura quando os avisto aqui na estante, vez que tanto contam da minha história...

Contam da trajetória do leitor que eu sou; contam do amor fraterno que levou Patrícia a sair em busca do livro que eu tanto desejava; contam das paixões de um cara que, nas décadas seguintes, ainda quebraria muito a cara por isso; contam de uma amizade que se perdeu no tempo; e contam, sobretudo, dos primeiros raios de liberdade.

E veja só: se um dia eu encontrasse a Danielle Steel, eu pediria um autógrafo e também diria a ela que, finalmente, o dia não está mais cinzento...

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo...

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo...

Talvez eu sinta raiva por haver me desculpado quando eu não tinha culpa, por haver tentado me explicar quando o outro simplesmente não se importava ou por haver me humilhado, dando, assim, razão ao agressor.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver passado o maior pano para quem não se fez digno de tanto; por haver tratado como livro de cabeceira gente que, quando muito, me tinha como folheto descartável; por haver expressado profunda gratidão a quem, com ar de generosidade, fez o mínimo quando podia fazer tanto.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por me haver regozijado com migalhas; por havê-las tomado como banquete quando não estava em condições de discernir altruísmo de esmola ou falsa empatia.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver sido diplomático e não-violento quando devia ter tocado o foda-se; por haver ofertado a outra face quando o outro acreditava que “o mundo é dos espertos”; por haver me preocupado em ser bom quando o outro, ao desferir contra mim golpes em forma de palavras, se mostrava indigno de meu respeito e cordialidade.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver insistido na escuta negada; por haver me preocupado em acertar as coisas com quem há muito se afastara emocionalmente; por haver pagado pelo que eu tanto almejava que me fosse humanamente concedido.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por não haver sabido ou tido a coragem para dizer o que eu de fato desejava; por haver permitido ou mesmo colaborado para que regateassem o meu valor como ser humano; por haver aceitado uma entrega parcimoniosa e condicionada quando sabia que só uma entrega total, espontânea e desinteressada me traria verdadeiro alento.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver mendigado atenção quando sabia que o preço era alto; por haver me contentado com a humanidade distorcida como quem aceita a bebida que, em lugar de matar a sede, desidrata.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por também ter culpa; por haver me metido em determinadas situações ou, pior, por não haver saído delas quando era tempo, quando tudo apontava para um fim trágico.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver buscado respostas onde só encontrei mais perguntas; por haver me afastado de mim para buscar no outro a cura para os meus males.

Talvez eu tenha raiva por haver me colocado em contextos aos quais eu não pertencia, por haver erguido castelos sobre alicerces de areia, por haver me colocado nas mãos de gente que tão pouco pode fazer por si mesma.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por me haver guiado por expectativas alheias, por não haver corrido o risco de quebrar a cara em busca da concretização dos meus sonhos, por haver dito sim ou dito não quando queria dizer o contrário.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por não haver chegado “lá” aos 30; por não haver atendido, aos 33, aos quesitos necessários para ser digno do amor deste ou daquele; por não haver conquistado, aos 37, aquelas coisas que não me interessam, mas que caracterizam o estereótipo do vencedor; por ser medíocre ou, pior, por julgar medíocre aquilo que eu genuinamente sou...

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver perdido tempo em demasiado, por haver perdido vida...

É verdade... Talvez eu tenha raiva de mim mesmo, e, se assim é, essa raiva evidencia a necessidade de perdoar aos demais, mas aponta, antes de mais nada, para a urgência de perdoar a mim mesmo, de fazer as pazes com esse outro que me habita e me faz companhia...

Que você possa se curar de si; saber-se vítima, mas saber-se algoz; perdoar-se e perdoar a todos; olvidar o passado e seguir em frente.

sábado, 5 de junho de 2021

Cuidado com discursos intimidatórios...

Cuidado com os discursos intimidatórios!

Cuidado com os posicionamentos que, com vista a inviabilizar o diálogo, direcionam o foco para as divergências em lugar das convergências. Cuidado com os argumentos pautados na dualidade típica de novela das nove que ignoram os diversos matizes presentes em todos os seres humanos, filosofias e esferas do espectro político.

Cuidado com os discursos que, objetivando força-lo a uma escolha neste pretensa disputa entre o bem e o mal, buscam desestabilizá-lo emocionalmente. “Se você não escolhe, então já escolheu o Toddy, o Nescau, a Pepsi, a Coca-Cola, o biscoito ou a bolacha”. Ou, mais cruel do que isso, buscam taxa-lo como ignorante, alienado, estúpido ou coisa que o valha.

E não se engane quanto ao fato de ser esta uma estratégia bem calculada, pois, seres relacionais que somos, é natural que a pressão e o cancelamento nos leve a agir contra os nossos princípios, não raro fazendo uma escolha que nos liberte do ostracismo, mesmo que essa não expresse a nossa verdade.

Cuidado com o discurso que adere a causas nobres e obrigatórias a todo e qualquer ser humano – o combate à fome, à miséria, ao racismo e afins – sem que tais causas sejam de fato a finalidade última.

Cuidado com o fanatismo que nos cega para as nossas próprias incoerências, hipocrisia e intolerância. Cuidado com as ideologias que lutam valendo-se das armas que dizem combater. Cuidado com tudo o que fomenta a separatividade, o ódio e a barbárie.

Mas, afinal de contas, de que lugar falo eu? Eu falo da periferia; falo do lugar do gay com deficiência que, depois de toda uma vida escolar na escola pública, teve o privilégio de cursar uma faculdade numa instituição de renome graças a um governo que me deu oportunidade.

Mas eu falo também do lugar do cara que anulou o voto nas últimas eleições presidenciais, do lugar do cara que não se manifesta simplesmente porque não sabe o que outrora julgava saber. Eu falo do lugar do cara que, de modo geral, também não se sente representado, e, quando se sente, teme aderir ao pacote com tudo o que vem dentro.

Eu falo do lugar do sujeito que se viu mergulhado numa depressão que teve significativa contribuição de gente cujo discurso era puro “amor”, “tolerância” e “empatia”...

Portanto, por favor, cuidado com o que fazemos aos outros, com o que deixamos de fazer e, principalmente, com a beleza do discurso que se sobrepõe às efetivas ações em prol do nosso próximo, aquele com o qual estamos comprometidos, até o pescoço, a despeito de nossas bandeiras, queiramos ou não.

Vacina, saúde, paz, liberdade de expressão, Educação pública e de qualidade e amor... muito amor para você, meu irmão.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

O gozo do envelhecer


Sobressaltado, praticamente saltei do sofá ao toque do interfone. 10h30. Os malditos cinco minutos! O plano era simples, mas infalível: havendo ido para a cama quase às três da manhã e cheio de compromissos para este dia, programei o despertador para as sete e deitei-me no sofá, certo de que a ausência de conforto me impulsionaria a não permanecer em repouso quando raiasse o dia. Ledo engano... Despertado pelo alarme do smartphone cuidadosamente colocado a uma distância que me obrigaria a me levantar, o que fiz foi confiar nos famigerados “cinco minutos” a mais que, depois de certa idade, se tornam a nossa perdição. “Só mais cinco minutos”. E esses viraram horas, que, por sua vez, alteraram todo o curso do dia.

É curioso como eu ainda idealizo em mim aquele Alex dos tempos de faculdade, que, diante da necessidade de conciliar trabalho e estudo, virava a noite diante do computador, saía às seis para uma jornada de oito horas para, em seguida, ir direto para a universidade por tanto tempo sonhada. Aquele Alex dava conta disso. Ficava sonolento, é verdade, mas dava conta do recado.

O Alex de agora, porém, a três primaveras dos quarenta anos, pode até varar madrugadas, mas a conta, fatalmente, vem durante o dia. O Alex de então, ainda não desapegado do jovem de outrora, ainda faz planos mirabolantes, matriculando-se em cursos e sobrecarregando a agenda de tarefas, ignorando, porém, que sua energia não mais suporta a sobrecarga de outros tempos. O Alex de então carece de pausa, de fins de semana com descanso e oito horas de sono diárias. O Alex de agora já começa a preferir a escada rolante aos degraus comuns; o Uber ao ônibus que não vai deixa-lo na porta; o prazer solitário ao sexo casual que, possivelmente, vai causar desgaste emocional.

Sinto que – apesar das linhas de expressão, dos cabelos rareados e dos pelos brancos na barba – ele ainda se cobra o desempenho dos vinte e poucos anos. Não tanto por resistência ao envelhecimento em si, mas por exigir de si a compensação dos anos perdidos para a depressão e escolhas equivocadas.

O Alex de então se cobra, aos 37 anos, uma realização que justifique todo o investimento feito pelos pais ao longo de anos. O Alex quase quarentão se cobra aquelas conquistas que a grande maioria dos amigos fez aos vinte. O Alex de então quer correr atrás do prejuízo.

O corpo, porém, é implacável em pedir pausa e readaptação. Não me refiro a abrir mão de sonhos e ambições, elementos tão necessários à manutenção da vida. Refiro-me a uma nova dinâmica, adequada às possibilidades de então. Quem sabe uma alimentação mais consciente? Atividades físicas regulares, talvez (com certeza)? Terapia? Cursos EAD em lugar dos presenciais? Uma nova organização em termos de horários e afins? Enfim, uma dinâmica que acompanhe o não raro intransitivo verbo envelhecer.

Isso me faz lembrar daquelas atrizes belíssimas que, outrora interpretando mocinhas nas telenovelas, com presença frequente nas tramas do horário nobre, ora são convidadas aos papeis de mães das mocinhas do momento. Vale o mesmo para os galãs de outrora, que agora são o pai, o médico da família, o padre etc. E, a despeito dos procedimentos estéticos possibilitados pelo trabalho, o próprio trabalho é infalível em fazê-los lembrar da inexorável passagem do tempo.

A vida faz assim com os artistas globais, mas o faz também com os anônimos, com os Alex do mundo afora, que não estão sob os holofotes, mas também experimentam o democrático processo de envelhecimento.

Mas se as tramas televisivas relegam a maturidade a um papel de coadjuvante, restringido a beleza da existência humana a uma única fase, não precisamos e nem devemos reproduzi-lo em nossa vida real.

E é nesse sentido que, no final das contas, esse Alex dos quase quarenta, em perfeita comunhão com o jovem idealista dos vinte, aprende a entender esse processo que é viver não como a corrida do ouro, mas como um constante convite a cuidar de si para, então, estar apto a cuidar dos demais.

Aos poucos, ele entende que desapegar-se da vitalidade e das possibilidades dos vinte tem a ver, sobretudo, com saber viver, que, por sua vez, equivale a saber morrer.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

O porteiro do dia


Saber que as pessoas sempre vão embora pode tornar um pouco desanimadora a tarefa de estreitar os laços. Ao menos é o que eu pensava quando da substituição de todos os porteiros do meu condomínio, ocorrida sem prévio aviso ou justificativa. Aqui, porém, cabe uma ressalva: sem justificativa ao menos para mim, o típico condômino que não participa das assembleias e pouco ou nada se envolve com as questões aqui ocorridas, as quais também me dizem respeito.

Assim, surpreendi-me com as caras novas repentinamente surgidas na portaria, e o que parecia ser férias coletivas era, na verdade, conforme me foi explicado por um dos novos trabalhadores, um remanejamento, prática talvez comum no contexto da empresa que nos terceiriza os serviços de portaria e correlatos.

E, assim, ia-se um dos porteiros do dia, com o qual eu trocava dicas de leitura e, infringindo uma regra estabelecida pelo síndico, ficava a papear nas horas de pouco movimento. Aquele por quem eu era chamado de amigo quando interfonado e a quem eu já havia convidado para um happy hour.

Assim, segui não trocando mais que um cumprimento cordial com os novos responsáveis pela portaria, sem, no entanto, me interessar por lhes saber os nomes. Ressalto não haver neste caso nada daquilo de “ter faculdade e não cumprimentar o porteiro”, prática que soaria ainda mais ridícula num complexo de condomínio periférico e cercado por aglomerados. Eu apenas não queria me interessar por nomes por saber que, num piscar de olhos, esses poderiam dar lugar a outros e assim sucessivamente.

Hoje, porém, depois de novamente acordar tarde em consequência dos péssimos hábitos que me têm conduzido, desci até a portaria para apanhar uma encomenda: mais um livro para a minha coleção de leituras pretendidas, mas nunca concretizadas. O porteiro da ocasião, cujo nome eu ainda desconheço, era justamente o que eu, nas minhas breves passagens pela portaria, já havia identificado como o mais simpático. Ao menos é assim que eu adjetivo quem me cumprimenta com um bom-dia entusiasmado, afirma estar bem “graças a Deus” e me chama de ‘meu querido”.

E, feitos os procedimentos de praxe – entrega da encomenda, assinatura do caderno de controle etc. –, veio a inesperada pergunta do homem: “E qual livro é esse?”. Pego de surpresa – tanto pela pergunta como pelo fato de alguém querer puxar conversa comigo –, detive-me a responder que era um livro de filosofia que eu havia pedido na Estante Virtual, julgando que o meu interlocutor não se interessaria em saber que se tratava de uma obra do Huberto Rohden, pensador que, não recordo como, eu havia descoberto há pouco menos que um ano e por cuja obra eu estou aficionado.

Foi então que o meu interlocutor, aparentemente desejoso de compartilhar um pouco de si, me contou haver trabalhado por anos na Editora Vozes, quando ganhou diversos livros, tendo a oportunidade de conhecer, em especial, a obra Felicidade, que, segundo ele, narra a jornada de um monge e de um homem urbano comum em busca da paz interior. Notoriamente saudoso dos seus tempos de editora, o porteiro relembrou o seu ex-chefe, filósofo com o qual tanto apreciava conversar.

Questionei-o quanto aos seus atuais hábitos de leitura, ao que ele me respondeu que, no atual momento, lê assiduamente sobre os temas pertinentes ao concurso que pretende fazer, esforço que se faz necessário, vez que quer “passar na polícia”.

Subi os oito pequenos lances de escada de volta ao meu apartamento, pensativo. De alguma maneira, a breve conversa com o simpático porteiro me inspirou, trazendo claridade sobre as questões com as quais tenho estado às voltas: a falta de perspectiva; os hábitos que me têm prejudicado tão significativamente; o sentimento de solidão; o emprego que me garante o sustento e pelo qual sou grato, mas que não me faz feliz; o sentimento de menos valia...

É curiosa a ideia que criamos do outro. Ao puxar conversa com o condômino careca e de óculos que está sempre recebendo livros, é possível que o porteiro imaginasse estar em contato com um tipo intelectual, e não com um sujeito que ainda emerge de uma profunda depressão e que ora se vê engolido por um sentimento de mediocridade. De igual modo, eu não via naquele cara alguém que já tivesse tido contato tão íntimo com os livros, que fizesse reflexões profundas e que ora se dedica a realização de um sonho.

É bem verdade o que ouvi recentemente de uma professora a quem muito admiro: cada ser humano que deixamos de conhecer é um mundo novo com o qual deixamos de travar contato.

Aconcheguei-me no meu pequeno escritório e olhei em volta, desanimado ante à carência de limpeza. Abri o embrulho e me dediquei à leitura da contracapa e das orelhas do livro, cujas páginas amarelecidas tanta história guardam. “Deus” – estava estampado na parte superior da modesta capa, que, logo abaixo, apresentava um fragmento d’A criação de Adão, de Michelangelo.

Deus... E, de repente, eu soube que seria este mesmo Deus que me capacitaria aos esforços equivalentes aos quais ora se dedica o meu já tão caro porteiro no alcance de suas metas. O mesmo Deus que me tiraria do marasmo e me salvaria de mim mesmo. O mesmo Deus para o qual eu quero e preciso urgentemente voltar, sendo essa a única meta realmente válida, legítima e necessária. Deus...

Ainda hei de vencer a timidez e perguntar o nome do porteiro.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Amor & Solidão - Carolina Cunha

Amor & Solidão, segundo livro de Carolina cunha, revela o amadurecimento de uma mulher, e, por conseguinte, de uma escrita que ora se apresenta, a um só tempo, singela e vigorosa.

Sublimação é o termo que se utiliza, no contexto da psicanálise, para designar a reorientação de um impulso ou energia para um ato mais aceito ou elevado. É algo como a ressignificação de um sentimento ou emoção negativa que, devastadora em sua origem, se converte em um fator propulsor. Como eu não pretendo – e nem poderia, se quisesse – fazer aqui um tratado de psicanálise, arrisco definir o termo como um ato consciente ou inconsciente de sobrevivência.

A arte e a literatura são os contextos nos quais melhor se verifica esse comportamento humano, como em Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), cujos Sofrimentos do Jovem Werther (1774) nasceram da urgência do autor em sobreviver à sua paixão pela aristocrata Charlotte Buff (1753 – 1828). Por mais que Goethe esteja entre os poucos que assumem o caráter autobiográfico de sua obra, a verdade é que toda obra é autobiográfica, sendo ilógico ou mesmo impossível o contrário.

Carolina Cunha faz parte desse peculiar grupo de pessoas que busca na arte a expressão do seu mundo interior e – por que não dizer? – a própria sobrevivência. Tal substantivo é, a propósito, um tanto pertinente aqui, vez que a temática da morte (ou da vida) é o que perpassa as 61 páginas do pequeno grande livro intitulado Amor e Solidão (2021).

Neste seu segundo mergulho literário, precedido por Amor de Vidro (2020), a mineira se debruça novamente sobre a estreita relação entre amor e perda. Desta vez, porém, não espere encontrar o desalento típico das paixões juvenis presente no primeiro livro. Aqui, Carolina expressa, de maneira visceral, os questionamentos e conflitos típicos de quem fica: a saudade (p. 20), a negação (p. 50), o medo (p. 45), a culpa (p. 35) ou mesmo a impotência, como se verifica em “O gato alado” (p. 21), um dos textos mais irretocáveis da obra.

Não só de dor, porém, se faz Amor & Solidão, mas também de força, esperança e fé na continuidade da vida (p. 28 et al.), destruindo, assim, a impressão inicial de que se trata de uma obra melancólica. Na contramão do simples e irrefletido lamento, Carolina mescla a pura expressão de quem sofre a ausência com a coragem de quem sabe que precisa se reerguer (p. 54 et al.).

Com destaque para a definição do enterro como uma “carta de despedida a um leitor ausente” (p. 24), a autora se utiliza magistralmente das metáforas para falar da perda. E é disso que Amor & Solidão trata: da perda focada no luto e de tudo que ele envolve.

A própria disposição da obra, aliás, expressa o processo de luto, no que vale ressaltar a infeliz coincidência entre o luto pessoal, vivido por Carolina, e o luto que atravessam milhões de indivíduos em razão da pandemia de coronavírus. Convertendo-se este, aliás, em matéria-prima para a autora (p. 29).

O curioso é que o luto, aqui, é a um só tempo dolorido e pedagógico. E digo-o porque, se a dor do luto evidencia o amor que se tem, ela também ensina a difícil arte de amar em lugar de reter e a despeito da presença, aprendizado necessário ante as tantas ocasiões em que perdemos não para a morte, mas para as situações comuns à experiência humana, como a separação, a indiferença, o afastamento etc.

Nesse sentido, a perda é, sim, o que perpassa Amor & Solidão, mas esse também é um livro sobre o amor. E digo-o não só porque, via de regra, a dor da perda se reserva somente àqueles que amam, mas também porque Carolina o expressa como uma força superior à morte, que sobrevive a esta e pela qual vale a pena continuar vivendo.

É o amor que presentifica o ausente, que traz conforto e que, mesmo que levando algum tempo, se converte em combustível para uma vida que precisa seguir em frente.

Cunha, Carolina. Amor & Solidão. Belo Horizonte: publicação independente, 2021, 61p.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Imitação de Cristo - Tomás de Kempis

“Mais vitorioso do que aquele que conquistou mil exércitos é o homem que venceu a si mesmo.”

Esse trecho, naturalmente, não é da obra de Tomás de kempis (1380 – 1471), mas da tradição hindu, que, com essa máxima, expressa a prevalência das batalhas internas sobre as lutas externas.

A menção à filosofia oriental, aqui, se dá pelo que me salta aos olhos a cada capítulo de “Imitação de Cristo”: a estreita relação com os princípios exaltados em outras tantas doutrinas filosóficas.

O meu primeiro contato com a obra se deu há muitos anos por meio de uma oração, aleatoriamente presente em um pequeno livro de orações, sem menção alguma ao autor. Nessa belíssima oração (p. 113), o autor pede que se lhe desperte o desejo de “ser desprezado e esquecido neste século” pelo amor de Jesus. Está aí expresso o nobre desejo de abrir mão de si e dos interesses pessoais para servir a algo maior.

Ao postular como virtude o esquecimento de si, Kempis relaciona tal comportamento com o autoconhecimento, afirmando que “quem se conhece bem despreza-se a si mesmo”. Ou seja: quem se conhece de fato, reconhece a própria pequenez perante a imensidão do Universo. É por isso que Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.), no ápice de sua sabedoria, afirmou: “Só sei que nada sei”. Trata-se da consciência do quão pequenos somos diante de tudo que nos rodeia.

E isso nada tem a ver com autodepreciação, mas, pelo contrário, com lucidez e moderação na apreciação de si mesmo, sem excessos; sem tender nem para a autocomiseração e nem para a soberba, pois é nesse equilíbrio que se dá o verdadeiro e genuíno amor-próprio.

O gritante apelo ao “esquecimento de si mesmo” como único caminho para Deus, portanto, é, na verdade, um convite a não entregarmos ao prazer dos sentidos e às inflações do ego o governo de nossas vidas.

Trata-se – como bem disse C.S. Lewis (1898 – 1963), a mente por trás d’As Crônicas de Nárnia – não de pensar menos de si mesmo, mas de pensar menos em si mesmo. Trata-se de se amar de verdade, tornando-se, assim, inatingível. Não porque “o que vem de baixo não lhe atinge”, mas porque não lhe podem doer os golpes desferidos contra um mero personagem que você – você de verdade – interpreta neste mundo a serviço de uma honrosa missão.

Apesar de escrito na era medieval, porém, tem-se aqui não uma abordagem moralista, que condena o “pecador” ao “inferno” (embora esses conceitos estejam, sim, presentes na obra). O que perpassa a obra é, na verdade, o apelo de alguém que, por amor, deseja que transfiramos o foco das coisas perecíveis para aquilo que é eterno.

Assim, o “esquecimento de si” nada tem de falta de amor-próprio, mas, pelo contrário, envolve o desapego de nossa personalidade (aquilo que pensamos ser) para que se promova o encontro com o nosso verdadeiro Eu e, por conseguinte, o nosso encontro com Deus.

Nesse mesmo sentido, Matthieu Ricard, um monge budista, defende que esquecer de si mesmo é o melhor caminho para amar a si mesmo. Ou seja: esquecer-se de si enquanto ego é, decerto, o maior ato de amor que se pode ter por si mesmo enquanto essência.

Em uma sociedade que celebra as debilidades e os aspectos da personalidade humana como sendo esse um gesto de amor-próprio, “Imitação de Cristo” – bem como diversos escritos que o precederam e o sucederam – nos convida a, na contramão dos modismos, nos desidentificarmos desses aspectos, que nada mais são do que aquilo que pensamos ser.

A bem da verdade, quanto mais acrescentamos à nossa personalidade, mais vulneráveis somos, estando à mercê das frustrações e decepções comuns à experiência do ego. Assim, Tomás de Kempis defende o autoesquecimento como forma de se tornar imune às agressões e até mesmo aos aplausos (p. 20-21).

O curioso é que muitos dos que curtem filosofias orientais, esotéricas e afins, desprezam a filosofia cristã, o que é compreensível até certo ponto, dado o histórico de repressão da Igreja Católica e do Cristianismo como um todo. Há, porém, que se “separar o joio do trigo” (Mateus 13:24-30), discernindo a torpe ação humana do ensinamento cristão puro e simples, que nada tem de moralista, preconceituoso e que, de mãos dadas com as doutrinas irmãs, só quer a elevação do homem.

“Imitação de Cristo” é, a meu ver, uma leitura bem-vinda para aqueles que desejam resgatar a essência cristã e até mesmo para aqueles que, não sendo adeptos do Cristianismo, desejam retornar para si, buscando uma vida com mais significado.

Na contramão do atual fenômeno da autoajuda, que nos estimula à adesão de tantas outras máscaras (“seja rico”, “seja bem-sucedido” e afins); na contramão de filosofias pautadas no poder de cocriação para a aquisição de riquezas materiais, “Imitação de Cristo’ é um convite ao simples, à realização do que é preciso, mas sempre com os olhos voltados para a eternidade.

Portanto, “conhece-te a ti mesmo” e despreza-te a ti mesmo... sem se desviar de quem você realmente é, sem se permitir distrair do que veio fazer aqui.

Texto que publiquei, originalmente, como comentário no site da Amazon.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

A dona da vida real



Se, assim como eu, você adora um dramalhão mexicano, é provável que conheça essa clássica cena de Soy Tu Dueña (2010) – se não me engano, a quinta adaptação do texto venezuelano de 1972. A trama acompanha uma jovem da alta sociedade que, após ser abandonada no altar pelo homem que, como se não bastasse, a traia com a sua prima, decide se mudar para a fazenda que herdara dos pais.

Convertida em uma mulher fria e rancorosa, a jovem – Valentina Vilaça, na versão estrelada por Lucero – não confia mais nos homens, e esta cena antológica marca a sua decisão por assumir as rédeas de seu destino, trazendo à tona uma nova mulher.

Se isso, porém, não foi fácil para a personagem, imagine para nós, pessoas comuns, que não dispomos de uma fazenda para onde fugir e tampouco estamos podendo jogar um carro no abismo com um vestido de noiva dentro (sim, a personagem fez isso, e só para se livrar do vestido...).

Na vida real, a gente precisa lidar com a dor em meio a uma série de outros problemas, não raro compartilhando o mesmo ambiente com aquele que nos magoou. Na vida real, depois de ter o coração partido, não nos deparamos com um Fernando Colunga a nos oferecer todo o seu amor e disposto a curar as nossas feridas. Pelo contrário, é provável que permaneçamos por muito tempo sozinhos, isso quando não nos deparamos com um novo idiota. E, sim, a gente ainda está no lucro caso o nosso algoz haja sido o David Zepeda.

Na vida real, costuma doer por um longo tempo, tanto por ser difícil esquecer como pelo nosso apego ao que nos machuca, o que acaba por render um bocado de autossabotagem. É que na vida real, a gente quer dar a volta por cima, mas às vezes a gente tem recaídas, não raro nos enveredando por pequenas ações que colocam em risco semanas, meses ou até mesmo anos de trabalho de superação.

Esse texto, porém, não pretende lhe desanimar e tampouco criticar a teledramaturgia, da qual sou fervoroso fã. A propósito, que felicidade a nossa termos a ficção como uma possibilidade de catarse.

Este texto é, portanto, um convite a ter paciência consigo mesmo. Que o drama mexicano, o filme, o livro ou seja lá o que for lhe tragam alento enquanto você atravessa a dor, mas que você não se culpe ou se subestime se não tem a força da heroína da trama ou se sua história não transcorre como a dela.

E agradeça por isso, pois, se lhe falta a fazenda, a governanta amorosa e o mocinho bonito que lhe curará as feridas, é sinal de que você já tem em si tudo do que necessita para superar o que se passou. Trata-se daquela velha dor que muito nos honra, pois, se nos foi dada, é porque é do mesmo tamanho que nós.

Você não precisa se arriscar a pegar um resfriado indo para a chuva bradar que é “a dona do seu destino”. Basta que você reconheça que – em lugar de um capataz mau caráter e de uma prima que é melhor ter bem longe – os obstáculos ao final feliz de nossa trama são as nossas próprias debilidades, as nossas fragilidades, a nossa resistência diante do novo, o nosso medo do vazio.

E é aí que você percebe que, somente ao substituir o apego pela aceitação e comprometimento consigo mesma, é que você se torna a dona. A dona de sua vida real.


domingo, 14 de março de 2021

Somos todos tóxicos

A necessidade de expressar de maneira mais exata os nossos sentimentos, emoções, opiniões e afins é o que comumente nos leva ao uso de metáforas, que, em suma, são figuras de linguagem que produzem sentidos figurados por meio de comparações. É daí que surgem expressões como “saúde de ferro”, “fulano é um gato” e outras mais sutis como “fazer amor”, por exemplo.

O adjetivo “tóxico”, quando aplicado a uma pessoa, é também metafórico, vez que, na prática, uma substância venenosa, que produz efeitos nocivos ao organismo, pode ser tóxica, mas não uma pessoa.

Esse uso do termo é mais um modismo – como falar de empatia ou escrever “gratidão” nas redes sociais sem que haja real sentimento por trás disso –, e veio na mesma leva de expressões que, se por um lado revelam uma maior tomada de consciência, por outro evidenciam o quão profundamente fragilizada é a geração atual.

Vez que tudo é dual no mundo da matéria, o uso do adjetivo “tóxico” como qualificação de pessoas tem, naturalmente, o seu lado positivo. Perceba que, se partimos do princípio de que sofisticação de linguagem está diretamente ligada à sofisticação de pensamento, o uso de expressões como “tóxico”, “abusivo” e afins tem um potencial empoderador.

Por outro lado, porém, ao qualificar alguém como “tóxico” não raro estamos a nos colocar no supostamente cômodo e privilegiado lugar da vítima: se o outro é tóxico, logo, eu sou um poço de virtude, encarnação da própria empatia, “alecrim dourado que nasceu no campo...”

Entenda que em momento algum pretendo culpabilizar as reais vítimas de relacionamentos abusivos, manipulação e demais ardis narcisistas. O que faço aqui, e com a devida cautela, é um convite a investigar o uso metafórico do termo “tóxico”, o que é, de certa forma, também um convite ao autoconhecimento.

A quem estamos a chamar de tóxico? O abusador que intimida e nos faz reféns em relacionamentos doentios ou o sujeito que simplesmente não atendeu às nossas expectativas? Quantas vezes qualificamos o outro como tóxico após o fim de um relacionamento no qual nos mantivemos por pura imaturidade e/ou carência? Quantas vezes a vilanização do outro se nos apresenta como recurso para lidarmos com a nossa frustração.

Certa vez o Pe. Fábio de Melo disse: “Às vezes é preciso inventar um ódio, uma mágoa, um menosprezo, para que o amor não correspondido se torne suportável”.

Fato é que muitas vezes tomamos por tóxica a pessoa que não nos dá o que desejávamos ou que traz à tona questões sobre nós mesmos. Não raro a carência nos leva a ignorar, voluntariamente, os sinais que estavam ali desde o início, e, quando a coisa explode e a gente se magoa, o outro é tóxico, o outro é desumano e vil.

Em tempos em que existe todo um culto à vitimização travestido de empoderamento e todo um projeto segregacionista disfarçado de luta pela igualdade, é necessário que haja da parte de cada um muita sobriedade e disposição para encarar a si próprio.

Nós também somos tóxicos quando insistimos depois de um não. Nós também somos tóxicos quando nos agarramos a uma ilusão diante da evidente incompatibilidade de interesses. Nós também somos tóxicos quando nos impomos na vida de quem nem sequer faz parte da nossa. Nós, por muitas vezes, somos vítimas, mas não raro também somos algozes na vida de alguém.

Ademais, o relacionamento com pessoas tóxicas é, comumente, um convite a encarar as nossas próprias sombras projetadas no outro. E insistir na posição da vítima não raro equivale a negar os nossos defeitos. É doloroso ser a vítima, mas é preferível à dor de enxergarmos a nossa parte feia, é mais cômodo se comparado à necessidade de assumirmos a responsabilidade sobre nossa vida.

Como bem diz um texto atribuído a Shakespeare, “as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos”.

Textos sobre autoconhecimento costumam ser ilustrados com a bela e imponente imagem do Buda, o que não raro nos conduz a uma ideia equivocada de autoconhecimento como perfeição, iluminação ou coisa que o valha, mas é justamente o contrário! Autoconhecimento tem a ver com aceitar-se falível por condição e, a partir daí, se dedicar a cada aspecto que carece de cura.

Eu sei que às vezes as pessoas nos machucam. Sei que há os que praticam o mal e nos vitimam, nos magoam e nos destroem por dentro. Eu sei e lamento por isso. Mas eu sei também que pessoas e situações são por nós atraídas por afinidade, de modo que, quanto mais nos conhecermos, menos tóxicos serão os que estiverem à nossa volta.

E menos tóxicos seremos nós, sobretudo para nós mesmos.

quarta-feira, 10 de março de 2021

As sutilezas do autoamor

O amor-próprio é dado a sutilezas... Mais do que isso: o amor próprio é muito mais um processo do que um fim, algo pronto e acabado.

Naturalmente, “tem gente que se ama e tem gente que não se ama”, como bem disse alguém deveras mais sábio do que eu. Há, porém, aqueles cujo amor-próprio é apenas perpassado por um equívoco conceitual.

Há amor quando há empenho para sobreviver aos movimentos da própria mente; há amor quando há dedicação para acertar depois de um novo erro; há amor quando se procura ajuda e quando se luta para vencer os conflitos internos; há amor quando você não se deixa sucumbir.

Porque autoamor nada tem de perfeição, passando, sim, pelo constante ânimo de aperfeiçoamento. Trata-se de encarar as próprias debilidades, por vezes numerosas, e acolhê-las como um aspecto digno de cura, e não de retaliação.

Equiparar-se aos rostos sorridentes, corpos fitness e espíritos evoluídos do Instagram é a receita certa para o fracasso rumo ao amor-próprio.

É que amor-próprio é processo e não lugar aonde se possa chegar e relaxar. É meta diária ante os diferentes desafios da vida. É munição para agir contra as nossas próprias sombras, aquelas que hão de nos acompanhar ao longo de toda a vida na terra (e talvez depois dela...).

Até recentemente eu pensava que amar a mim mesmo tinha a ver com alcançar um estado no qual eu me perceberia totalmente blindado, imune às ofensas, indiferenças, preconceitos e afins. Até o dia em que compreendi que tal estado me retiraria da condição humana, e não há autoamor quando não há o reconhecimento e aceitação de si como “humano, demasiado humano”.

Pretender-se impassível aos reveses da existência humana é querer elevar-se à condição de anjo ou descer à condição de pedra. Enquanto humanos dotados de amor-próprio, tudo o que havemos de desejar é a sabedoria diante dos sobressaltos, a vontade cada vez mais firme rumo à realização dos sonhos, a autorresponsabilidade e o reconhecimento do próprio poder para tornar sublime a própria vida.

Você se ama quando se dá o direito ao descanso após um dia de trabalho. Você se ama quando faz pipoca e assiste a sua série predileta na Netflix. Você se ama quando sai para malhar porque sabe que precisa de cuidados. Você se ama quando aprende a dizer não, quando aprende a dizer sim e quando aprende a permanecer calado, pois autoamor também tem a ver com se poupar. Você se ama quando se permite ser amado, sem abusos, sem condições que o diminuam, pois o verdadeiro amor nos deve sempre elevar...!

Você se ama quando se sabe falível, quando aceita que é o que é e está tudo bem... E se dedica a trabalhar a partir daí.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Trilhas

“Sempre pode haver alguém que precise”. Foi a desculpa que inventei para mim mesmo quando, havendo arrumado a mochila, me apercebi do meu exagero ao preparar o lanche para a caminhada. Eu e o meu excesso de zelo... Vesti a calça que, ainda naquela manhã, estaria coberta de grama e o novo par de tênis que, em menos de uma hora, seria estreado numa areia branca e fofinha.

E lá estava eu, às oito em ponto, na portaria do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, cujo nome – se não procede a lenda da moça que se acidentou por ali enquanto cavalgava com o noivo – é um bocado machista para os padrões atuais.

Mas não era apenas eu: havia ainda os dois amigos queridos, os estranhos sorridentes – alguns dos quais habituados às caminhadas –, o cara que me chama a atenção, mas que dificilmente se envolveria comigo e, claro, o guia para o qual não há tempo ruim. Dentro em pouco eu me certificaria da veracidade daquela máxima segundo a qual “sozinhos nós vamos mais rápido, mas em grupo nós vamos mais longe”.

A gratidão veio na companhia do medo ao me deparar com as trilhas que eu não teria encarado se estivesse de sobreaviso. Gratidão porque, ao me poupar do desafio, eu não viveria a grata oportunidade de vencê-lo como eu venci.

E foi assim – entre aclives e declives, subidas e descidas íngremes interrompidas por raros momentos em trilha plana, arranhões e picadas de marimbondo – que vi na caminhada a metáfora perfeita para a condição humana, perpassada pelas quedas, subidas, descidas, solidão, ajuda, arranhões e, claro – como bem disse o amigo Anderson Martins – momentos de plenitude (ou “planitude”) que a gente sabe serem breves, mas que são necessários à tomada de fôlego.

O curioso é que, no meio de uma montanha, não importando o quase esgotamento de suas energias, você não tem a opção de voltar, tomar um atalho ou chamar um táxi aéreo que te tire dali e te deixe no seu destino poupando-lhe das dificuldades do caminho.

E a vida, assim como a caminhada ecológica, exige movimento, e a gente não tem outra alternativa senão continuar caminhando...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

"O grande sonho"

Há pouco mais de 25 anos, a EMABH - Escola Municipal Aurélio Buarque de Holanda, onde cursei da 5ª à 8ª série, lançava o jornalzinho anual do colégio. O ano era 1995, quando internet, para aqueles pré-adolescentes periféricos e com uma vida inteira pela frente, não passava de algo do qual se ouvia falar. Logo, não havia a possibilidade da criação de um informativo virtual com publicação mensal, algo tão comum hoje em dia.

O “Geração Estudantil” – nome escolhido dentre as dezenas de sugestões feitas pelos discentes – se pretendia instrumento de integração entre alunos, professores, direção e comunidade escolar, bem como um estímulo à revelação de talentos.

Se por um lado era um instrumento desdenhado por boa parte dos discentes, por outro havia os que reconheciam-lhe a importância, participando ativamente da edição do jornal. Ali havia entrevistas, piadas, charadas, informações sobre datas comemorativas, textos dos alunos, recadinhos e outras coisas que a gente podia deixar como sugestão na caixinha de metal verde que ficava presa à parede ao lado da sala dos professores.

Era o primeiro ano do jornal. Era também o meu primeiro ano naquela escola e naquele bairro. O ano em que fiz os meus primeiros amigos. O ano em que a gente teve o nosso primeiro telefone lá em casa! O ano em que experimentei os meus primeiros conflitos com relação à minha sexualidade ao ver o Arnold Schwarzenegger pelado nas cenas iniciais de “O exterminador do futuro 2”. Foi, portanto, um ano de grandes transformações...

Foi na 2ª edição do informativo, em 1996, que tive publicado o meu primeiro texto, inspirado em uma situação que de fato havia ocorrido à minha família poucos meses antes. E não precisa ser um expert para perceber que criatividade e habilidade textual não eram exatamente o meu forte (risos).

Talvez, porém, não fosse essa a opinião da Cida Fulanete, que foi a minha professora de português na 6ª e 7ª séries, sendo precedida pela Maria Tereza e sucedida pela Marília. Foi por sugestão da Aparecida, se bem me lembro, que, pela primeira vez, li um livro na íntegra. Era “Ana e Pedro – Cartas”, de Vivina de Assis Viana e Ronald Claver.

Minha Nossa... como é louco perceber o quanto ainda trago daquele Alex de 11/12 anos de idade. Não em termos comportamentais, mas de personalidade. E, embora seja inevitável me deparar com uma dorzinha aqui e ali ao rememorar a trajetória dos meus últimos 25 anos, é gratificante perceber que, se o Alex de agora segue sendo um tolo sonhador, ao menos ele cultiva hoje sonhos um pouquinho mais elevados do que uma premiação na loteria... o que também não seria mal...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Uma quase mulher

Ela era uma bicha alta, imponente. As pernas eram bem torneadas, próprias de um bailarino com carreira na Europa e Estados Unidos. A pela era de um negro reluzente, como bem disse, certa vez, a igualmente saudosa (e desbocada) Dercy Gonçalves. Dadas as limitações de uma sociedade que celebra as debilidades e desdenha os êxitos, muito se conheceu de suas polêmicas, mas pouco de sua humanidade e cultura irretocável.

A primeira lembrança que eu tenho do Jorge Lafond (1952 – 2003) é de uma participação sua no programa do Gugu Liberato – mais um que nos deixou recentemente –, onde uma jovem realizava o sonho de desenhar, com batom, um coração em sua cabeça lustrosa.

Foi na Vera Verão, personagem mais famosa desse grande artista, que eu tive, desde a infância, uma referência de homossexual. Eram outros tempos... Tempos em que homossexuais, se apareciam na tevê, era apenas para fazer rir por via do estereótipo do gay espalhafatoso e sexualizado.

Isso, porém, em nada o desabonava. Eu, em algum nível já ciente da minha homossexualidade, gostava daquela liberdade de ser, ainda que não refletisse – como ainda não reflete – a realidade. Gostava de quando a Vera Verão adentrava o cenário da praça, causando alvoroço e chamando a atenção de todos. Gostava das vezes em que, no final do esquete, ela ficava com o bofe da inimiga, só mais tarde vindo a entender que aquilo me proporcionava uma espécie de catarse.

Veja bem: se a Vera Verão – um gay negro e cheio de trejeitos – acabava conquistando um homem comum ou sendo escolhida como a musa do clipe do Paulo Ricardo, decerto que eu, um gay fora do padrão (porque o meio gay também tem os seus preconceitos), teria também a minha chance. Desse modo, a vitória da Vera Verão, mesmo que uma vitória boba (pois, convenhamos, conquistar um boy magia não é lá uma grande realização na vida), também era, de alguma forma, a vitória daquela criança tímida lá da periferia, que, com os seus medos e óculos enormes, já se entendia como homossexual.

Pois é... eu sou do tempo em que havia a Vera Verão, que – muito antes de qualquer Pitty Bicha ou Valéria Vasquez (personagens de Tom Cavalcante e Rodrigo Sant’Anna, respectivamente) – já causava estardalhaço e, mesmo que de maneira estereotipada, já ocupava o seu espaço e exercia o seu direito de ser no mundo e em um país racista e homofóbico.

A Vera Verão – que, junto de tantos outros artistas que já partiram, habita a memória desta bicha quase quadragenária que vos escreve – eu envolveria num abraço e diria, se tivesse uma única oportunidade:

Muito obrigado, Lafond.

Texto que transbordou de mim numa manhã de quarta.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Quando chego aos 37...

Há algum tempo, a polêmica (e adorável) Antonia Fontenelle – naquele velho bate-bola comum ao encerramento das entrevistas – pediu ao igualmente polêmico (e divertidíssimo) Danilo Gentili que lhe contasse um medo.

Depois de refletir um pouco, chegando mesmo à quase conclusão de não ter nenhum medo, o comediante disse algo que muito me impactou.

“Eu tenho medo de uma coisa: tenho medo de ficar muito distante do que Deus quer que eu seja.”

Esta resposta me deixou um bocado pensativo, vez que encerra o que devia ser o único anseio do ser humano: cumprir com o propósito divino de sua alma.

Chegado aos 37 anos, eu olho para trás e vejo que já desejei muitas coisas, seja em termos materiais, afetivos, profissionais e afins. E, havendo tido a graça de conquistar alguns desses objetivos e falhado no alcance de muitos deles (o que, a propósito, também costuma ser uma graça...), desejo no dia de hoje o que gostaria de haver aprendido a desejar lá atrás, mais jovem, quando são gritantes os anseios do ego.

Estar cada vez mais próximo dos planos de Deus para mim.

O curioso é que, se há alguns anos desejar algo assim me parecesse falta de ambição ou até fanatismo religioso ou coisa que o valha, hoje entendo-o como o que de mais nobre e genuíno um homem pode querer para si.

Isso me faz lembrar de uma frase bíblica muito cantada nos meus tempos de católico: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua justiça, e tudo mais vos será acrescentado”.

E eu acredito sinceramente que, a despeito de crença, isso tem a ver com termos como meta, como objetivo primeiro, nos tornarmos mais humanos, o que talvez seja o que de melhor podemos fazer por nós e por aqueles que nos cercam: sermos verdadeiramente humanos.

Resta-me, portanto, agradecer ao Criador pela oportunidade a mim concedida até aqui, pedindo a Ele, aos meus mestres amados e benfeitores espirituais sabedoria e inspiração para fazer o melhor dos anos que vêm pela frente.

Gratidão imensa...

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Clô para os íntimos

Uma vez, concedendo uma entrevista para a maravilhosa Bruna Lombardi, o saudoso Clodovil narrou uma situação em que foi ridicularizado em razão de sua sexualidade. Ele conta que – no calor do momento e como qualquer pessoa mediana – chegou a traçar vários planos de vingança, chegando mesmo a pensar que só se sentiria bem ao ver desempregado o sujeito que o humilhara.

E foi então que Clodovil, ao contar para a Bruna o diálogo que, de repente, se viu fazendo consigo mesmo na ocasião, disse uma das coisas mais bonitas que já escutei:

“Clodovil, isso está acontecendo para que você entenda que a vida não é tão linda quanto você está pensando. Essas coisas são para que você aprenda a se desapegar daqui. Esse moço está apenas cumprindo o papel de te mostrar que você precisa ir embora daqui. Se todo mundo fosse maravilhoso, aqui seria o Céu! Ele não fez nada de mal para você. É você que está preocupado em fazer mal para ele agora.”

Meu Deus... Isso é mais profundo do que aquele velho clichê de “não criar expectativas para não se frustrar” ou mesmo do que aquela sábia filosofia de que a ação do outro nos revela o que devemos curar em nós. Trata-se de algo mais bonito do que tudo isso.

O nosso sofrimento diante das adversidades típicas desta existência revela uma promessa de Deus para nós; revela que não pertencemos a este mundo, e que uma existência mais luminosa nos espera, livre do sofrimento que nos desagrada por mais resilientes que sejamos.

O meu desejo para hoje é que possamos tirar das frustrações a mesma lição que esse artista incomparável tirou de uma situação dolorida: aqueles que nos decepcionam são os nossos “professores do não ser”, e passam por nós como forma de nos oferecer uma escolha: a de darmos vazão aos apelos do nosso ego, cedendo à mágoa e desejo de vingança, ou a de tomarmos a nossa frustração como uma degrau rumo à nossa melhor versão.

Só uma dessas escolhas nos conduz ao mundo que está reservado para nós. Aquele mundo ao qual de fato pertencemos...