quinta-feira, 24 de junho de 2021

Uma fase chamada Danielle Steel


Era um início de tarde cinzento de 2002. Chuviscava, é verdade, mas aquele sábado estava cinzento mesmo porque, só pra variar um pouquinho, eu estava apaixonado pelo professor de História do pré-vestibular (aliás, quem não estava?). Assim, saindo da cursinho por volta do meio-dia, fui à banca de livros usados que havia lá na Rua dos Tamoios, em frente à antiga Telemar. Naquele tempo, a prefeitura não havia ainda proibido os camelôs.

Nessa banca, sempre havia livros da Danielle Steel, escritora do gênero Chick-Lit que me havia sido apresentada pela Irani, querida amiga da época. E foi nesse dia que eu comprei o meu primeiro livro, “Momentos de paixão”, por exatos R$5.

Irani e eu costumávamos cabular aula no pré-vestibular só pra ir até a biblioteca pública lá na Praça da Liberdade, onde ela, cega, pegava de empréstimo aqueles enormes volumes em braile. Antes de “Momentos de paixão”, aliás, eu já havia lido outras obras da Danielle Steel disponíveis no acervo da biblioteca. “Vale a pena viver” foi a primeira. Depois vieram outras tantas: “Uma só vez na vida”, “Um amor conquistado” (belíssimo...), “Acidente” etc.

Mas o que eu queria ler mesmo era um sobre o qual a Irani sempre mencionava como sendo maravilhoso – “Segredo de uma promessa” – mas que não existia no acervo da biblioteca. E eis que o mesmo me veio pelas mãos da minha irmã Patrícia, que, de tanto eu falar do livro, fez peregrinação pelas livrarias-sebo de Belo Horizonte e o encontrou, me dando de presente de Natal junto a outros dois: “Casa forte” e “Meio amargo”. O curioso é que “Segredo de uma promessa” foi o pior livro da Danielle Steel que eu já li. Ironias da vida... (risos)

Eu gostava de ler as estórias daquelas norte-americanas de classe média alta. Não sei por quê. Acho que o feminino em mim se identificava. Gostava de vê-las lutando pela família, se dando uma nova chance no amor, indo contra as convenções sociais e, claro, entregando-se ao amor de suas vidas...

Todavia, à medida que a vida real foi se impondo, o gosto pelas obras da Danielle Steel foi se esvaindo também. Mas sou sempre tomado de ternura quando os avisto aqui na estante, vez que tanto contam da minha história...

Contam da trajetória do leitor que eu sou; contam do amor fraterno que levou Patrícia a sair em busca do livro que eu tanto desejava; contam das paixões de um cara que, nas décadas seguintes, ainda quebraria muito a cara por isso; contam de uma amizade que se perdeu no tempo; e contam, sobretudo, dos primeiros raios de liberdade.

E veja só: se um dia eu encontrasse a Danielle Steel, eu pediria um autógrafo e também diria a ela que, finalmente, o dia não está mais cinzento...

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo...

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo...

Talvez eu sinta raiva por haver me desculpado quando eu não tinha culpa, por haver tentado me explicar quando o outro simplesmente não se importava ou por haver me humilhado, dando, assim, razão ao agressor.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver passado o maior pano para quem não se fez digno de tanto; por haver tratado como livro de cabeceira gente que, quando muito, me tinha como folheto descartável; por haver expressado profunda gratidão a quem, com ar de generosidade, fez o mínimo quando podia fazer tanto.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por me haver regozijado com migalhas; por havê-las tomado como banquete quando não estava em condições de discernir altruísmo de esmola ou falsa empatia.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver sido diplomático e não-violento quando devia ter tocado o foda-se; por haver ofertado a outra face quando o outro acreditava que “o mundo é dos espertos”; por haver me preocupado em ser bom quando o outro, ao desferir contra mim golpes em forma de palavras, se mostrava indigno de meu respeito e cordialidade.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver insistido na escuta negada; por haver me preocupado em acertar as coisas com quem há muito se afastara emocionalmente; por haver pagado pelo que eu tanto almejava que me fosse humanamente concedido.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por não haver sabido ou tido a coragem para dizer o que eu de fato desejava; por haver permitido ou mesmo colaborado para que regateassem o meu valor como ser humano; por haver aceitado uma entrega parcimoniosa e condicionada quando sabia que só uma entrega total, espontânea e desinteressada me traria verdadeiro alento.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver mendigado atenção quando sabia que o preço era alto; por haver me contentado com a humanidade distorcida como quem aceita a bebida que, em lugar de matar a sede, desidrata.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por também ter culpa; por haver me metido em determinadas situações ou, pior, por não haver saído delas quando era tempo, quando tudo apontava para um fim trágico.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver buscado respostas onde só encontrei mais perguntas; por haver me afastado de mim para buscar no outro a cura para os meus males.

Talvez eu tenha raiva por haver me colocado em contextos aos quais eu não pertencia, por haver erguido castelos sobre alicerces de areia, por haver me colocado nas mãos de gente que tão pouco pode fazer por si mesma.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por me haver guiado por expectativas alheias, por não haver corrido o risco de quebrar a cara em busca da concretização dos meus sonhos, por haver dito sim ou dito não quando queria dizer o contrário.

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por não haver chegado “lá” aos 30; por não haver atendido, aos 33, aos quesitos necessários para ser digno do amor deste ou daquele; por não haver conquistado, aos 37, aquelas coisas que não me interessam, mas que caracterizam o estereótipo do vencedor; por ser medíocre ou, pior, por julgar medíocre aquilo que eu genuinamente sou...

Talvez eu tenha raiva de mim mesmo por haver perdido tempo em demasiado, por haver perdido vida...

É verdade... Talvez eu tenha raiva de mim mesmo, e, se assim é, essa raiva evidencia a necessidade de perdoar aos demais, mas aponta, antes de mais nada, para a urgência de perdoar a mim mesmo, de fazer as pazes com esse outro que me habita e me faz companhia...

Que você possa se curar de si; saber-se vítima, mas saber-se algoz; perdoar-se e perdoar a todos; olvidar o passado e seguir em frente.

sábado, 5 de junho de 2021

Cuidado com discursos intimidatórios...

Cuidado com os discursos intimidatórios!

Cuidado com os posicionamentos que, com vista a inviabilizar o diálogo, direcionam o foco para as divergências em lugar das convergências. Cuidado com os argumentos pautados na dualidade típica de novela das nove que ignoram os diversos matizes presentes em todos os seres humanos, filosofias e esferas do espectro político.

Cuidado com os discursos que, objetivando força-lo a uma escolha neste pretensa disputa entre o bem e o mal, buscam desestabilizá-lo emocionalmente. “Se você não escolhe, então já escolheu o Toddy, o Nescau, a Pepsi, a Coca-Cola, o biscoito ou a bolacha”. Ou, mais cruel do que isso, buscam taxa-lo como ignorante, alienado, estúpido ou coisa que o valha.

E não se engane quanto ao fato de ser esta uma estratégia bem calculada, pois, seres relacionais que somos, é natural que a pressão e o cancelamento nos leve a agir contra os nossos princípios, não raro fazendo uma escolha que nos liberte do ostracismo, mesmo que essa não expresse a nossa verdade.

Cuidado com o discurso que adere a causas nobres e obrigatórias a todo e qualquer ser humano – o combate à fome, à miséria, ao racismo e afins – sem que tais causas sejam de fato a finalidade última.

Cuidado com o fanatismo que nos cega para as nossas próprias incoerências, hipocrisia e intolerância. Cuidado com as ideologias que lutam valendo-se das armas que dizem combater. Cuidado com tudo o que fomenta a separatividade, o ódio e a barbárie.

Mas, afinal de contas, de que lugar falo eu? Eu falo da periferia; falo do lugar do gay com deficiência que, depois de toda uma vida escolar na escola pública, teve o privilégio de cursar uma faculdade numa instituição de renome graças a um governo que me deu oportunidade.

Mas eu falo também do lugar do cara que anulou o voto nas últimas eleições presidenciais, do lugar do cara que não se manifesta simplesmente porque não sabe o que outrora julgava saber. Eu falo do lugar do cara que, de modo geral, também não se sente representado, e, quando se sente, teme aderir ao pacote com tudo o que vem dentro.

Eu falo do lugar do sujeito que se viu mergulhado numa depressão que teve significativa contribuição de gente cujo discurso era puro “amor”, “tolerância” e “empatia”...

Portanto, por favor, cuidado com o que fazemos aos outros, com o que deixamos de fazer e, principalmente, com a beleza do discurso que se sobrepõe às efetivas ações em prol do nosso próximo, aquele com o qual estamos comprometidos, até o pescoço, a despeito de nossas bandeiras, queiramos ou não.

Vacina, saúde, paz, liberdade de expressão, Educação pública e de qualidade e amor... muito amor para você, meu irmão.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

O gozo do envelhecer


Sobressaltado, praticamente saltei do sofá ao toque do interfone. 10h30. Os malditos cinco minutos! O plano era simples, mas infalível: havendo ido para a cama quase às três da manhã e cheio de compromissos para este dia, programei o despertador para as sete e deitei-me no sofá, certo de que a ausência de conforto me impulsionaria a não permanecer em repouso quando raiasse o dia. Ledo engano... Despertado pelo alarme do smartphone cuidadosamente colocado a uma distância que me obrigaria a me levantar, o que fiz foi confiar nos famigerados “cinco minutos” a mais que, depois de certa idade, se tornam a nossa perdição. “Só mais cinco minutos”. E esses viraram horas, que, por sua vez, alteraram todo o curso do dia.

É curioso como eu ainda idealizo em mim aquele Alex dos tempos de faculdade, que, diante da necessidade de conciliar trabalho e estudo, virava a noite diante do computador, saía às seis para uma jornada de oito horas para, em seguida, ir direto para a universidade por tanto tempo sonhada. Aquele Alex dava conta disso. Ficava sonolento, é verdade, mas dava conta do recado.

O Alex de agora, porém, a três primaveras dos quarenta anos, pode até varar madrugadas, mas a conta, fatalmente, vem durante o dia. O Alex de então, ainda não desapegado do jovem de outrora, ainda faz planos mirabolantes, matriculando-se em cursos e sobrecarregando a agenda de tarefas, ignorando, porém, que sua energia não mais suporta a sobrecarga de outros tempos. O Alex de então carece de pausa, de fins de semana com descanso e oito horas de sono diárias. O Alex de agora já começa a preferir a escada rolante aos degraus comuns; o Uber ao ônibus que não vai deixa-lo na porta; o prazer solitário ao sexo casual que, possivelmente, vai causar desgaste emocional.

Sinto que – apesar das linhas de expressão, dos cabelos rareados e dos pelos brancos na barba – ele ainda se cobra o desempenho dos vinte e poucos anos. Não tanto por resistência ao envelhecimento em si, mas por exigir de si a compensação dos anos perdidos para a depressão e escolhas equivocadas.

O Alex de então se cobra, aos 37 anos, uma realização que justifique todo o investimento feito pelos pais ao longo de anos. O Alex quase quarentão se cobra aquelas conquistas que a grande maioria dos amigos fez aos vinte. O Alex de então quer correr atrás do prejuízo.

O corpo, porém, é implacável em pedir pausa e readaptação. Não me refiro a abrir mão de sonhos e ambições, elementos tão necessários à manutenção da vida. Refiro-me a uma nova dinâmica, adequada às possibilidades de então. Quem sabe uma alimentação mais consciente? Atividades físicas regulares, talvez (com certeza)? Terapia? Cursos EAD em lugar dos presenciais? Uma nova organização em termos de horários e afins? Enfim, uma dinâmica que acompanhe o não raro intransitivo verbo envelhecer.

Isso me faz lembrar daquelas atrizes belíssimas que, outrora interpretando mocinhas nas telenovelas, com presença frequente nas tramas do horário nobre, ora são convidadas aos papeis de mães das mocinhas do momento. Vale o mesmo para os galãs de outrora, que agora são o pai, o médico da família, o padre etc. E, a despeito dos procedimentos estéticos possibilitados pelo trabalho, o próprio trabalho é infalível em fazê-los lembrar da inexorável passagem do tempo.

A vida faz assim com os artistas globais, mas o faz também com os anônimos, com os Alex do mundo afora, que não estão sob os holofotes, mas também experimentam o democrático processo de envelhecimento.

Mas se as tramas televisivas relegam a maturidade a um papel de coadjuvante, restringido a beleza da existência humana a uma única fase, não precisamos e nem devemos reproduzi-lo em nossa vida real.

E é nesse sentido que, no final das contas, esse Alex dos quase quarenta, em perfeita comunhão com o jovem idealista dos vinte, aprende a entender esse processo que é viver não como a corrida do ouro, mas como um constante convite a cuidar de si para, então, estar apto a cuidar dos demais.

Aos poucos, ele entende que desapegar-se da vitalidade e das possibilidades dos vinte tem a ver, sobretudo, com saber viver, que, por sua vez, equivale a saber morrer.