sexta-feira, 2 de julho de 2021

Os iluminados da Zona Sul

Como vivem? De que se alimentam? Como se reproduzem?

Bom, as variações são muitas, na verdade, mas, em sua expressão mais estereotipada, eles são tipos curiosos com uma serenidade falsamente afetada, similar à Monja Coen no início da fama (eu gosto muito da Monja Coen, ok?). A voz de veludo é, aliás, um recurso necessário ao convencimento (dos outros e deles próprios) de que transcenderam todas as vicissitudes humanas.

Mas cuidado! Quando confrontados com questões da vida real, é comum que eles sejam dominados pelo instinto animal que habita todos nós, extravasando toda a sua ira por meio da crueldade, dos insultos e de toda a sorte de agressões.

Em razão de uma dieta extremamente restritiva, dado o seu rígido estilo de vida vegano, alguns deles têm uma aparência subnutrida, o que costuma fazer parte do pacote que lhes permite jogar na cara da sociedade o elevado patamar no qual se encontram na escala evolutiva.

Outros, porém, preferem sobrecarregar as suas redes sociais com fotografias ostentando asanas (posturas de yoga) com uma perícia impecável, ou cliques nos quais eles se exibem em posição de lótus (a despeito da baita incoerência que há no fato de querer se exibir em um momento teoricamente voltado à introspecção e à desconexão com o mundo externo).

São brancos em sua maioria, e os “núcleos ascensionais” que costumam frequentar se localizam na zona sul em sua quase totalidade. Até porque não é qualquer um que dispõe de 300 ou 400 reais para investir nas suas dispendiosas terapias. Portanto, lamento informar, mas se você vive na periferia e “vende o almoço para comprar a janta”, não há muita chance pra você, pois a evolução espiritual está incontestavelmente condicionada ao seu poder aquisitivo (sim, contém ironia...).

Existe, aliás, uma incoerência neles (a incoerência é, por sinal, a sua marca registrada). É quase consensual a sua admiração por pessoas como Buda, Jesus e afins. Os Iluminados da Zona Sul, porém, não parecem nada propensos a adotar o estilo de vida abnegado e miserável escolhido por esses mestres que eles tanto dizem admirar.

Alguns deles, ditos “terapeutas”, obtêm um rendimento superior a renda média da população, e surfam no vazio existencial de uma classe média perdida, imediatista e por vezes desacreditada nos métodos cartesianos.

É comum não gostarem de pobre, o que está sutilmente implícito em um discurso aparentemente inofensivo. Falam de autorresponsabilidade (conceito muito válido e bem-vindo, aliás) como apologia à meritocracia e negação às estruturas sociais segregacionistas dentro das quais eles são privilegiados; dizem que “a energia não mente” como forma de justificar, de uma maneira mui espiritualizada, os próprios preconceitos; defendem que “somos todos um”, mas “confundem” amor-próprio com egoísmo e individualismo quando isso lhes convém.

A sua filosofia (de fachada) é embasada em frases soltas de Chico Xavier, Sidarta Gautama, Gibran e afins, sempre defendendo o amor como a solução para o mundo (como de fato é). Acontece, porém, de você não ser acolhido com toda essa amorosidade ao recorrer a eles fora do contexto “terapêutico”. O que se justifica pelo fato de que a sua dignidade só lhes é notada enquanto você lhes estiver oferecendo algum lucro.

Eles alegam que o Reiki pode ser eficaz na diminuição do estresse e da ansiedade; defendem que a terapia tântrica, o ThetaHealing e o diabo a quatro podem amenizar quadros de depressão e oferecem, por meio das Constelações Familiares, respostas para todos os problemas existentes em sua vida! Curiosamente, porém, ignoram condenação por fraude ou mesmo discursos homofóbicos e machistas que envolvem essas práticas.

Nada é mais surpreendente e complexo que os Iluminados da Zona Sul, os quais, creio, só perdem para os militantes que clamam por liberdade e empatia, mas se convertem no demônio quando confrontados com opiniões divergentes das deles.

Eu fico me perguntando qual será o destino desses nobres conquistadores do nirvana. E se de repente a humanidade fosse visitada pelo bom senso, esvaziando os seus sofisticados espaços terapêuticos? Por quanto tempo duraria o seu “estado alterado de consciência”?

Bom, eu não sei. Tudo o que sei é que entre esses tantos ególatras travestidos de espiritualistas, há pessoas de fato comprometidas com o próprio aprimoramento, conscientes do próximo e empenhadas na elevação da humanidade a um novo patamar de consciência. Sim, tais pessoas existem, mas é premente ressaltar que, infelizmente, elas não são uma maioria, mas, sim, uma exceção. Em vez de procura-las, porém, eu sugiro algo melhor: que você procure se tornar uma delas.

P.S.: enquanto eu preparava este artigo para postagem, vi-me dominado pelo intenso receio de que o mesmo causasse incômodo ou mesmo ofendesse a quem, definitivamente, não pertence ao grupo que eu pretendia apontar aqui. Por “apontar”, aliás, entende-se não um ataque desmotivado e meramente recreativo, mas, sim, por chamar a atenção para um problema real que tem causado danos à vida de pessoas.

Nesse sentido, ao reproduzir no texto um estereótipo extremado, o meu objetivo não passa por atacar pessoas, mas, sim, por trazer à tona uma questão social, a saber, a reprodução de preconceitos e práticas excludentes no contexto espiritualista.

Como esclarecido no parágrafo final, não há generalizações aqui, havendo, sim, a consciência de que, mesmo dentre aqueles que se enveredam pelos comportamentos aqui descritos, há os que o fazem sem intenção vilanesca, mas, sim, por falta de consciência social.

Este artigo, portanto, se configura como um convite à tal consciência, da qual nenhum espiritualista é privado. Muito pelo contrário, inclusive. Configura-se, também, como uma crítica à hipocrisia nossa de cada dia.

Enfim, dada a fragilidade que se faz presente em todos no momento atual, bem como o meu receio em soar ofensivo (ou ao menos gratuitamente ofensivo), se fez necessário este post scriptum, que, espero, se faça suficiente para a compreensão do que se pretendeu aqui.

Texto originalmente publicado em minha coluna no Eu Sem Fronteiras.