sexta-feira, 14 de junho de 2013

Valente


Título original: The Brave One
Ano: 2007
Direção: Neil Jordan
Roteiro: Roderick Taylor (argumento e roteiro), Bruce A. Taylor (argumento e roteiro), Cynthia Mort (roteiro)
Gênero: Ação/Drama/Policial/Suspense
Origem: Austrália/Estados Unidos
Duração: 119 minutos
 

“Sou Erica Bain e, como vocês sabem, eu ando pela cidade. Eu me queixo, reclamo, mas eu ando, observo e escuto. Sou testemunha de toda beleza e feiura que está desaparecendo da nossa adorada cidade.” Erica Bain, personagem de Jodie Foster em The Brave One (2007).

Não se trata de uma leitura que eu tenha feito recentemente, mas bem me lembro que, no imortal romance de Jostein Gaarder – cujas vendas somam mais de 30 milhões de exemplares pelo mundo –, a jovem personagem Sofia Amundsen se exalta quando o seu misterioso tutor lhe questiona sobre a possibilidade de tirarmos do nosso caminho aqueles que, por ventura, nos façam mal (com perdão por eu apresentar a minha memória como única referência). Não é pra menos. Vivemos em uma sociedade na qual o famigerado “olho por olho, dente por dente” foge aos seus princípios éticos. Não obstante, a “vida real” consta de uma miríade de casos em que esse princípio ético é posto de lado, ocorrendo, dessarte, o prejuízo ou mesmo a morte àqueles que outrora hajam ou não atuado como algozes do seu então “vingador”. Valente – sofrível tradução de The Brave One (2007), de Neil Jordan – nos proporciona uma boa trama para a discussão deste tema.

Erica Bain (Jodie Foster) é locutora do programa “Street Walk”, na fictícia rádio WNKW. Ela leva uma vida comum, gostando do que faz e amando o enfermeiro David Kirmani (Naveen Andrews), com quem está prestes a se casar. Os planos e a vida comum de Erica, no entanto, sofrem um baque quando ela e o noivo são gratuita e brutalmente agredidos por três marginais, ocorrência que põe fim à vida de David e marca decisivamente a de Erica, que, o telespectador bem sabe, jamais será a mesma. O telespectador de Valente, aliás, sabe de muita coisa. Lendo a sinopse do filme antes de assisti-lo, ele já sabe, por exemplo, que ali não há nada realmente novo: uma mulher, tendo abaladas as suas estruturas, alimenta uma sede de vingança que, ao longo do filme, levará às últimas consequências.

Valente, no entanto, pode e deve ser qualificado como um bom filme, a despeito dos clichês e por inúmeras razões, sendo a principal delas o fato de Neil Jordan haver sido um mestre em contar uma velha estória dando-lhe ares de inédita, utilizando-se de elementos simples, porém significativos, como, por exemplo, a excelente trilha sonora da qual Dario Marianelli ficou incumbido. As cenas de suspense, de violência e de profundas reflexões de Erica acerca do ocorrido e daquilo em que está se tornando são embaladas por instrumentais que levam o telespectador às sensações provavelmente pretendidas por Jordan. As mencionadas reflexões de Erica, aliás, são um importante elemento: não temos aqui apenas um filme de violência – embora seja ela, naturalmente, o seu ponto forte –, mas, também, um filme sobre a profunda transformação de uma mulher, que, após um ataque brutal, não mais consegue adaptar-se à trivialidade; tampouco, e com razão, consegue ver o mundo – e, em especial, Nova Iorque – como um lugar seguro. Nesse âmbito, vale ressaltar que a mudança pela qual Erica passa não é assim tão brusca – o que, caso contrário, o seria em detrimento do senso de realidade da obra –, visto que, já no início do filme, nos é apresentada uma personagem de natureza reflexiva, introspectiva e censora; uma personagem inconformada com as estimáveis características que estão desaparecendo de sua “adorada cidade”. O que temos, portanto, é uma Erica acostumada a reagir à própria insatisfação – a princípio, com sua expressiva escrita; mais a diante, com a violência.

Destaque para a cena da abordagem dos bandidos, que exigem nervos de aço do telespectador que, até então guiado por uma estória leve, experimenta agora a desumanidade de três desconhecidos que, por diversão, agridem impetuosamente dois jovens de bem, cheios de vida, amor e planos. Naturalmente, levar o espectador ao asco com esse tipo de cena não é mérito de Jordan, visto que qualquer tabloide consegue isso, todos os dias, na vida fora das telas. Tal estratégia é, no entanto, pertinente ao objetivo do diretor, que é, naturalmente, justificar as atitudes posteriores da mocinha, levando o telespectador a manter-se do lado dela. Destaque também para as cenas que vemos na sequência, que são uma alternação entre as imagens dos cuidados ao corpo ferido de Erica no hospital e as cenas de David distribuindo carícias pelo mesmo corpo. Isso poeticamente embalado por “Answer”, de Sarah Mclachlan.

Outro momento que merece destaque é quando a heroína, disposta a tentar continuar a seguir com sua rotineira vida, faz, em seu programa de rádio, uma narração que se faz interessante por refletir, com fidelidade, o sentimento de inúmeras vítimas e familiares de vítimas da violência nas grandes cidades, e isso é mais um ponto que “avisa” ao telespectador que, ao assistir a Valente, ele não está, definitivamente, diante de nada surreal, mas palpável, bem próximo de si.

“Nova York, a cidade grande mais segura do mundo. Mas é horrível... temer o lugar que um dia você amou. E ver uma esquina que você conhecia tão bem e ter medo de sua sombra. Ver degraus familiares e ser incapaz de subir. Nunca entendi como as pessoas podiam viver com medo. Mulheres com medo de ir para casa sozinhas. Pessoas com medo de pó branco em suas caixas de correio, da escuridão e da noite. Pessoas com medo de pessoas. Sempre achei que eram os outros que sentiam medo. Pessoas mais fracas. O medo nunca me atingia. E então, ele atingiu. E quando ele atinge, você descobre que ele estava lá o tempo todo, esperando, sob a superfície de tudo aquilo que você amava. Você sente a pele formigando, seu coração adoece e você olha para a pessoa que um dia você foi, descendo a rua, e você se pergunta se um dia voltará a sê-la.” Erica Bain, personagem de Jodie Foster em The Brave One (2007).

Erica agora dorme ao lado do túmulo de seu amante, implorando-lhe uma palavra, e se envereda por uma rotineira caminhada noturna, na qual visita, armada, os pontos mais recônditos da cidade. À certa altura – anterior, aliás, à aquisição ilegal da arma – Erica chega a procurar a polícia, pensando em deixar nas mãos dela a solução para o seu caso. É quando nos é apresentada mais uma espécie de justificativa para o que ela fará logo em seguida: a ineficiência da polícia, da qual temos como pista a frase que o policial repete, religiosamente, a todos que, desolados, recorrem a ele: “Certo, Sei que é difícil, mas se puder ter um pouco de paciência e sentar ali. Logo mais, um policial virá ajudá-la.” Erica, no entanto, não quer que a justiça seja feita por um processo moroso e que, aliás, não lhe ira saciar a ira. Ela quer “fazer justiça com as próprias mãos”, o que nos é reafirmado por duas cenas que veremos no decorrer do filme: i) quando Erica desiste quando, na delegacia, está prestes a entregar-se à polícia como a autora dos (merecidos?) assassinatos que estão acontecendo na cidade e ii) quando colocada frente a frente com um dos assassinos, mesmo reconhecendo-o, ela prefere não dizer à polícia, para poder realizar ela mesma a sua vingança.

Vale ressaltar que o telespectador-alvo do filme anseia por ver a mocinha – culturalmente concebida como frágil e levada ao extremo do sofrimento após tornar-se vítima da violência e perder o seu amado –, tomar ares de vilã e sair pela cidade a fazer com que os algozes dos cidadãos de bem provem do seu próprio veneno. A plena satisfação, no entanto, fica apenas para o telespectador, uma vez que Erica – embora, provavelmente, experimente também uma espécie de prazer ao cometer os assassinatos – sente-se cada vez mais vazia e culpada pelo “mal” que vem provocando. Esta natureza controversa da obra nada mais é, no entanto, do que uma estratégia – muito boa, por sinal – utilizada por Jordan para que o telespectador chegue a uma reação catártica sem, no entanto, deificar a heroína pelos seus atos, o que seria, penso, como legitimar a própria violência.

Destaque, neste ponto, para um diálogo entre Erica e a aparentemente dura – porém compreensiva e conhecedora da dor e conflito interno vividos pela protagonista – Josai (Ene Oloja), quando essa se depara com Erica assentada nos degraus à frente da sua casa, fumando angustiada e disparadamente.

“– Não devia fumar. Isso vai matar você.
– Não me importo.
– Há muitas formas de morrer. Mas é preciso achar uma forma de viver. E... isso é difícil.” The Brave One (2007).

É quando Erica encontra uma forma não de viver, mas, sim, de suportar a vida de agora, carente de Jason e da paz de outrora, “porque, quando você ama algo, toda vez que um pedacinho dele se vai, você perde um pedacinho de si próprio.” Erica, então, havendo-se perdido por inteiro, agora anda pela cidade colocando em sua mira todos aqueles que perturbam a paz alheia, se fazendo algozes de outrem.

Neste ponto da trama, já temos a presença do Detetive Mercer (Terrence Howard), que investiga as misteriosas mortes na cidade, desconhecendo, a principio, que o temido – ou adorado – “justiceiro” está por trás de toda a simpatia daquela mulher. Essa dupla, aliás, é a responsável por grande parte das reflexões sobre justiça, ética e assassinato do filme. Tomemos como exemplo a sena em que, cedendo uma entrevista à Erica, o detetive lhe conta sobre o Sr. Murrow, dono dos estacionamentos da Ilha Roosevelt. Ao ser questionado por ela se nada havia a ser feito quanto a isso, o detetive, arrependendo-se em seguida, responde não haver nenhuma solução que fosse legal. Na sequência, Erica pergunta ao detetive se suas mãos haviam tremido nas ocasiões em que teve que matar alguém e esse responde negativamente, colocando isso como a vantagem de estar do lado certo.

Temos aí a explanação de dois lados com algo importante em comum. Ou seja: o hábito de executar o outro como forma de fazer justiça. Não obstante, defende-se haver um lado certo e um lado errado, embora ambos existam em prejuízo à vida humana. Jordan nos traz tal reflexão de maneira magistral. Havendo levado o telespectador-modelo a torcer pelo sucesso da protagonista em seu plano de vingança, leva-o, em seguida, a questionar a atitude da mesma e adentrar, a partir disso, numa série de questionamentos: se não seria correto torcer pela protagonista, dever-se-ia de fato torcer pelo detetive? Haveria mesmo alguma circunstância em que tentar contra a vida humana fosse uma atitude legítima? Será que a polícia age mesmo eticamente, e, se sim, em que se baseia esta ética?

Entre os ouvintes do programa “Street Walk”, as opiniões a respeito se dividem tal como entre os telespectadores de Valente. Um primeiro defende a ação do “vingador” como um favor à sociedade. Um segundo defende que, ao decretar a morte de outrem sem julgamento, o justiceiro se iguala às pessoas que ele mata. Um terceiro menciona o prazer que nos proporciona ver os algozes da sociedade serem punidos com a morte.

Enfim, esses e outros debates surgem na tela enquanto vemos Valente, o que, nas mãos de Jordan, não anula a possibilidade de um desfecho razoável para a mocinha, possibilitado, naturalmente, por Mercer, que parece haver cultivado um certo fascínio pela moça. Assim, ao final da trama, o afeto, o cuidado e a compreensão da dor alheia se sobrepõem a qualquer ética, tornando-se o último bandido restante objeto de um combinado entre Erica e Mercer. Seria certo? Não sabemos, mas sabemos que estamos tratando de um filme, que encontrou neste final um quase equilíbrio entre a satisfação do expectador e o comprometimento com a ética. Digo isso porque, mesmo havendo um final favorável à protagonista, não se pode falar ainda em “final feliz”, visto sabermos que, a despeito de qualquer coisa, Erica seguirá carregando as marcas da violência sofrida e da perda do noivo, tal como ela própria avisa no encerramento da trama. “Não há como voltar a ser aquela outra pessoa. Voltar àquele outro lugar. Essa coisa, essa pessoa estranha... é só o que você é agora.”

É isso. Apesar de algumas falhas, Valente é um excelente filme, principalmente por não se embasar tão somente no objetivo de levar o telespectador à saciedade, enfatizando, também, questões éticas inquietantes. Bem diferente do violento e raso Doce Vingança (2010) – regravação de A vingança de Jennifer (1978) chegado às telas três anos após Valente –, a trama de Jordan é uma estória que faz pensar.


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Publicado originalmente em CinePlayers.