sábado, 31 de maio de 2014

Carrie - A Estranha


Título original: Carrie
Ano: 2013
Direção: Kimberly Peirce
Roteiro: Stephen King (romance), Roberto Aguirre-Sacasa (roteiro)
Gênero: Drama/Terror
Origem: Estados Unidos
Duração: 100 minutos


Numa definição bastante simplória, podemos dizer que uma das características que define um clássico é a sua atemporalidade. Ou seja: um clássico se mostra atual a despeito do tempo em que se tenha acesso a ele. Tal conceito é constantemente abordado no âmbito das artes, em especial em se tratando da literatura e, naturalmente, da Sétima Arte. É claro que estou aqui reduzindo consideravelmente o vasto conceito de clássico. Não obstante, me parece o bastante para a explanação do tema que me traz aqui.

Pode-se dizer que Carrie (1974), primeiro romance do escritor Stephen King, dispõe do elemento atemporalidade que o aproxima de um clássico, não chegando a ser um porque, naturalmente, não se trata de nenhuma obra-prima da literatura norte-americana. Trata-se de uma boa obra, convincente, bem escrita e sempre trazida à tona pela indústria cinematográfica justamente pela força que exerce nas gerações de jovens. A história da adolescente vítima de bullying por ser diferente dos demais e que, chegando ao limite da humilhação em seu baile de formatura, se vinga de todos os seus algozes (inclusive da sua severa e fanática mãe) é sempre atual, visto ser o bullying e a repressão sofrida por alguns filhos algo presente em todos os tempos. A cena da humilhação durante o baile de formatura tanto mexe com as emoções do telespectador que já foi aproveitada até mesmo em telenovelas globais (Rainha da Sucata, 1990; Chocolate com Pimenta, 2003).

Foi Sissy Spacek, nas mãos do diretor Brian De Palma, a primeira atriz a dar vida à personagem de king em 1976 no filme homônimo (Carrie, a estranha no Brasil), ao qual se sucedeu o absurdo The Rage: Carrie 2, uma sequência de qualidade duvidosa dirigida por Katt Shea em 1999 (A maldição de Carrie no Brasil); e as regravações de 2002 e 2013, dirigidas, respectivamente, por David Carson e Kimberly Peirce. Opto por trazer aqui alguns breves comentários sobre cada uma dessas produções a fim de fundamentar a minha opinião sobre essa última, de 2013, estrelada por Chloë Grace Moretz, que já adianto, me parece pretensiosa e desnecessária, apesar de seus méritos.

A decisão por regravar um clássico só pode ser motivada por uma das seguintes razões: i) fazer uma releitura do material original, proporcionando ao telespectador um novo olhar sobre determinado conteúdo, ou ii) lucrar encima de algo construído a partir de um material outrora bem-sucedido. Neste último caso, oferecer um produto de qualidade está longe de ser prioridade. O importante é atrair a atenção de multidões, não importando se essas sairão do cinema praguejando. O lucro, afinal, já estará ganho. Acredito, com pesar, que Peirce haja se guiado por essas duas razões.

Vejamos: uma das principais críticas a esta última regravação de Carrie (2013) foi quanto à escolha de Chloë Grace Moretz como protagonista. Consideraram-na bonita demais e estranha de menos para o papel. Também pudera: a Carrie de 1976, como já dito, foi vivida por Sissy Spacek, uma atriz comum com aparência comum, mas com um porém: ela tinha 25 anos na época, sendo, portanto, uma mulher na pele de uma adolescente hostilizada no colégio. Isso, naturalmente, foi proposital. Desde o início, Brian De Palma decidira entregar a personagem à uma jovem adulta com o objetivo de tornar notória a estranheza da personagem. O mesmo recurso foi utilizado para a versão de 2002, sendo escolhida para o papel a Angela Bettis, conhecida do público por haver interpretado no cinema outras personagens tanto ou mais estranhas quanto a Carrie e que já se aproximava dos 30 anos durante a produção. Ao meu ver, acertou-se em cheio na escolha das atrizes, unindo-se talento, idade superior à da personagem e, por que não dizer?, aparência fora dos padrões.

Confesso me haver parecido imatura a crítica à escolha da atriz para esta versão de 2013, pois, ao contrário o que disse a maioria, tal escolha me pareceu desafiadora, havendo aumentado as minhas expectativas quanto ao filme. Afinal, sendo Moretz bonitinha, novinha e normalzinha demais para o papel, pressupunha-se que o sucesso da personagem estava na exclusiva dependência do talento da atriz e de uma boa direção. Resultado: Moretz tem se mostrado uma boa atriz em seus últimos papéis, mas, infelizmente, a sua Carrie não convenceu inteiramente. Penso, porém, que tal insucesso não se deu devido à boa aparência da atriz e tampouco por falta de talento, de modo que, neste ponto, devo culpar a direção, o roteiro e tudo mais. A grande verdade é que o filme ficou carente de recursos que levassem o telespectador a de fato ver estranheza em Carrie. A personagem, que nas mãos de Peirce pareceu apenas uma menina meio tímida e pouco atualizada no quesito moda, tem poucas falas e é forçada demais, sobretudo no tocante aos seus poderes telecinéticos, exagerados e difíceis de serem digeridos por qualquer telespectador.

Outra frustração se dá pela presença de Julianne Moore no longa como a fanática e louca Margaret White, que, se a princípio contribuiu para as expectativas em relação ao filme – afinal, Moore é, incontestavelmente, uma atriz e tanto! –, acabou por frustrar o telespectador, tão sem graça e apagada está. Enquanto a Margaret White de 1976, vivida por Piper Laurie, assustava, metia medo e despertava o ódio do telespectador, a de agora não desperta emoção alguma. E também pudera: em todos os embates entre mãe e filha, Carrie acaba por render a mãe com um movimento de mãos (o que, aliás, ficou bastante forçado, afinal, trata-se de uma garota com poderes telecinéticos, e não de uma espécie de uma personagem com superpoderes saída de uma atração adolescente). Moore foi bastante desperdiçada neste filme, chegando a sua personagem a ser quase tão apagada quanto a Margaret Wtihe vivida por Patricia Clarkson na regravação de 2002.

Outro ponto negativo do filme, talvez o principal responsável pelo seu fracasso, é o fato de que ele não se decide se quer ser uma adaptação do livro ou uma cópia mal feita do longa de Brian de Palma. Se não fosse por alguns pequenos elementos, aliás, seria possível desconfiar de que nem diretora nem roteirista chegaram a ler a obra de Stephen King. O longa de Peirce é, em grande parte, uma cópia do filme original, desde as vestimentas e cabelos de Margaret White ao desabamento da casa da protagonista ao final do filme. Pareço injusto? Vejamos: a morte da mãe de Carrie nesta nova regravação é praticamente uma reprodução da cena da morte da mesma personagem no filme de 1976. Quem leu a obra sabe que Margaret Whithe não morre daquela forma, embora, claro, devamos considerar que a ideia ficou mais adequada para a telinha do que ficaria a cena original do livro, onde Carrie “comprime” o coração da mãe com o poder da mente (a versão de 2002 está aí para provar a inadequação de tal cena para o vídeo). Lembremos, porém, que a ideia de matar Margaret White com os utensílios de cozinha é de Brian De Palma e não de Peirce, que só demonstrou uma total falta de criatividade ao reproduzir tal cena. O mesmo se dá quanto à cena em que Sue (Amy Irving e Gabriella Wilde, respectivamente) vai dar uma espiadinha no baile, e talvez haja outras que me tenham passado despercebidas.

Finalmente, no que se refere à tão esperada cena do baile, essa sofre as consequências do mal do qual o filme vinha sofrendo ao longo de sua projeção: a falta de tensão. Os momentos mais tensos que antecedem ao da humilhação no baile não dão conta de preparar o telespectador para tanto, de modo que este, ao chegar àquilo que deveria ser o clímax, se depara apenas com uma projeção apressada e uma enxurrada de efeitos isenta de qualquer tensão. Em seguida, a vingança de Carrie contra os seus principais algozes, Chris Hargensen (Ivana Baquero) e Billy Nolan (Alex Russell) novamente frustra a demanda catártica do telespectador, que, diante de uma cena lenta e exagerada, se vê ansioso pelo fim da projeção. Todavia, antes de chegar ao fim, o telespectador precisa, ainda, suportar o já comentado embate final entre mãe e filha e a descoberta de que, além dos poderes telecinéticos, Carrie possui ainda o dom da clarividência (!!!).

Ok, muitos são os que gostaram do filme e argumentam serem inapropriadas as comparações. Elas, no entanto, são inevitáveis, visto se tratar da adaptação de uma obra que já teve a sua versão para o cinema. Adaptação essa que se tornou um clássico, de modo a dispensar uma regravação inferior. Peirce tinha um belo material em mãos: a obra de King, a atual discussão do Bulliyng, a tecnologia do mundo contemporâneo. Ela utiliza tais recursos, mas não de modo a fazer um filmão, se é que era essa a intenção dela... Sejamos justos, claro: a cena da gestação de Carrie, que abre o filme, é fantástica; os efeitos sonoros são bons e não passam despercebidos aos ouvidos do telespectador atento; o uso dos aparelhos celulares para fotografar Carrie em total desespero devido a sua primeira menstruação, bem como a exibição do vídeo no telão no momento da humilhação final (surpresa até mesmo para o telespectador!), foram excelentes ideias. Diferente daquela Carrie de 1976, que apanhava pilhas de livros na biblioteca da escola para se inteirar sobre a telecinesia, a Carrie de agora também pesquisa sobre o tema na internet, tal como a Carrie de 2002. Não posso, porém, deixar de fazer um questionamento: na era da internet e em tempos em que adolescentes discutem (e até vivem) livremente a sexualidade, seria possível que uma jovem se mantivesse alheia às transformações do seu corpo? Seria possível que uma adolescente não soubesse nada sobre a menstruação? Talvez a obra de King não seja assim tão atual, ao menos neste aspecto...

No que toca à fidelidade à obra, não há dúvida de que a versão de 2002 é a que sai na frente nesse sentido, embora os últimos cinco minutos hajam destruído toda a obra, que já não era nenhuma maravilha (um filme bom, e só). Naturalmente, caso fosse perguntado sobre qual a melhor versão, eu responderia de pronto ser a de De Palma. Consideremos, porém, que se tratam de três filmes diferentes, produzidos com objetivos e olhares distintos. Além disso, é preciso que os críticos (mesmo os de beira de estrada, como eu) procurem um equilíbrio entre a precisão e maturidade de sua crítica e a nostalgia. Assistindo a Carrie (2013) pela primeira vez, considerei-o um fiasco, é verdade. Tal opinião, porém, não foi a mesma quando o vi uma semana depois. Agora, para mim, esta obra de Peirce é apenas um filme legal, suportável, desses que a gente assiste para passar o tempo e não o vê nunca mais. Infelizmente, um filme que não atende às expectativas geradas por toda a publicidade que o antecedeu e que chega a decepcionar os adoradores da obra de King e de De Palma. Mas fazer o quê?

Recomendo, sim, que todos vão ao cinema para conferir esta nova Carrie, mas recomendo, também, conhecer aquela que inaugurou esta trágica história no cinema. Nostalgia ou não, continuará a ser inesquecível para mim aquela estranha de 1976, com os seus cabelos de piaçava contrastando com os volumosos cabelos de suas colegas de turma; com a sua assustadora Margaret White e sua crueldade quase palpável; com o seu sensual banho de ducha e seu desfecho assustador; com os seus arregalados olhos azuis e sua merecida revanche; com a sua lição de como o fanatismo e a intolerância podem destruir a vida de um ser humano.

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Publicado originalmente em CinePlayers.

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