“Transcender para além da esfera comum do
pensamento pode trazer sérios riscos à sanidade de uma pessoa. Seria essa a
conclusão mais prudente. Talvez, por isso, o medo generalizado de conhecer. A
ignorância é mesmo a abençoada condição para a felicidade, ainda que
provisória. Desconhecer proporciona a ilusão de uma felicidade duradoura.” (p.
280)
Em um remoto 2013, ao mencionar uma pandemia
global que mataria mais de três bilhões de terráqueos no ano de 2020, a
brasiliense Melissa Tobias sequer imaginava que a sua obra A realidade de Madhu fosse repercutir, sete anos depois, em razão
de uma pandemia que, de fato, exterminaria milhares de cidadãos pelo mundo
afora.
Aos que não creem em coincidências, resta a
conclusão de que o mundo que nos rodeia é regido por forças sobrenaturais – ou
pré-naturais, termo que designa os fenômenos naturais ainda fora do alcance da
razão humana –, corroborando, assim, os famigerados dizeres shakespeareanos: ““Há
mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”.
Em seu romance 63 dias. É tudo o que teremos!, o cearense Cezar Carneiro (ou L.C.
Carneiro) trilha um caminho duplamente semelhante ao de Melissa Tobias. Não em
termos textuais, narrativos e afins, mas no sentido de haver produzido uma obra
que – ao tratar de um livro que profetiza o fim – parece, ela mesma, antever o
caos, levando-nos ao velho questionamento acerca do caráter imitativo na
relação entre vida e arte.
Para além da interdisciplinaridade, ao
relacionar temas como física quântica, matemática, literatura, ufologia,
espiritualidade e afins, a obra de Cezar Carneiro assume uma qualidade
transdisciplinar, evidenciando a unidade do conhecimento, ora tão fragmentado
no ocidente, sobretudo no que tange à educação formal.
O percurso entre as tantas áreas do
conhecimento, porém, não raro se dá em detrimento da estrutura da narrativa,
que, sobretudo em sua primeira parte, nos confronta com diversos núcleos
abandonando-os logo em seguida, sem que o leitor disponha do “convívio” necessário
para criar empatia com cada um dos personagens. Dessa forma, a expedição
comandada pela Dra. Mei, por exemplo, composta pelos personagens mais
relevantes da primeira parte, vez que se tratam dos “escolhidos”, só nos é
apresentada no capítulo 5, sem que o leitor crie com eles um envolvimento que
os torne dignos da experiência narrada até o grande desfecho – que, aliás, se
dá logo no capítulo seguinte.
Vale considerar, porém, que a ausência de
aprofundamento nos personagens se dá pela possível intenção do autor de fazer
do fenômeno em si o aspecto mais relevante da trama, o que coloca em segundo
plano os dramas pessoais de cada um. Desse modo, a perda de Raul Neves (p. 73),
o “sequestro” de Adam Fisher (p. 80-83), o suicídio de Plácido Miranda (p. 222)
perdem lugar para a vulnerabilidade humana em si, fazendo desta a grande
protagonista da trama ao lado da engenhosa arquitetura do universo.
Dentre os demais problemas a serem
observados, temos a forma como se dão alguns plot twists – com destaque para a maneira um tanto frustrante como
nos é revelado o misterioso informante dos Savari (p. 77) –, os improváveis deslizes
de alguns personagens em benefício do enredo (p. 194) e a narrativa por vezes
confusa em parte devido à aparente ânsia do autor em se valer do seu vasto e notório
conhecimento na trama.
Destaque ainda para as notas de rodapé, que,
se por um lado são muito bem-vindas, vez e outra contemplando o leitor com
curiosidades diversas (p. 21, 28 etc.), por outro parecem subestimar a
inteligência do leitor (p. 13, 42). Isso sem falar no caráter dispensável da
menção às fontes (p. 163) em uma obra literária, o que seria perfeitamente
cabível em um texto acadêmico, mas não aqui.
A criação do link com a primeira parte da
trama, publicada isoladamente em 2014, é interessante, mas tardia e pouco
explorada em seu potencial. A despeito disso, porém, dá ao leitor a
oportunidade de seguir com a leitura da trilogia, mas enveredando por uma
narrativa diferente e de final inesperado, o que revela a sagacidade do autor,
dado que o desfecho da Parte I, a princípio, inviabilizava uma sequência.
Neste ponto, vale ressaltar que nenhum dos
problemas aqui expostos traz prejuízo real à obra como um todo, que, embora
ficcional, nos conduz, inevitavelmente, ao questionamento da “realidade” que
nos cerca, bem como ao reconhecimento de nossa pequenez “diante da grandeza do
Universo”. E isso, além de colocar o leitor na condição de filósofo, o torna
contemplado pela dedicatória do autor (p. 3).
Ademais, se questionar o que chamamos de
realidade ou mesmo a nossa própria existência parece insanidade, vale lembrar
que essa insanidade data de séculos, tendo início nos tempos em que pensadores
como Platão, Aristóteles, Descartes e Zhuangzi consideravam a possibilidade de
estarmos sonhando quando nos acreditamos despertos; passando pela arte e pela
literatura, tal como em A Vida é Sonho
(La Vida es Sueño, 1635), de Calderón
de la Barca; e chegando a produções de ficção científica da atualidade, tais
como o longa Fenda no Tempo (The Langoliers, 1995), filme de minha
adolescência, e Black Mirror (2011 –
presente), série de televisão britânica.
Ou seja: o questionamento em si nada tem de
atual, sendo apenas enriquecido pelas tantas conquistas tecnológicas das quais ora
usufruímos, bem como pela existência de mistérios nunca desvendados, tais como
o estranho caso das máscaras de chumbo (inevitável esta lembrança diante do “caso
das máscaras de cera” apresentado no capítulo IV da Parte II da obra).
Outrossim, se a obra de Cezar Carneiro – que muito
dialoga com a série antológica mencionada há dois parágrafos – parece ter um
caráter pessimista no que se refere ao vertiginoso avanço tecnológico que
vivenciamos nas últimas décadas, vale revisitarmos os argumentos contidos na
própria trilogia acerca da maldade, da mesquinharia e do individualismo crasso
que caracterizam a criatura humana. Nesse sentido, me vêm à mente a metáfora
comumente utilizada pela professora e filósofa Lúcia Helena Galvão para as
direções opostas nas quais seguem os avanços tecnológicos e o crescimento
humano: “Se se está caminhando rumo ao abismo, é preferível que se vá a pé e
não de Porsche”.
Em 63
dias, a mesquinhez humana prevalece – ou ganha mais força – em meio ao
caos. E quanto à humanidade, fora da ficção, nas atuais circunstâncias? “O que
se poderá esperar? A mudança radical do comportamento humano ingressando toda a
Humanidade no reino da paz e da bonança, ou o caos a se instalar por toda parte
realizando os piores capítulos do Apocalipse?” (p. 165).
Não há resposta pronta para esta questão. Uma
coisa, porém, não deixa dúvidas: 63 dias
não é uma leitura para os fracos...
***
CARNEIRO, L.C. 63 dias. É tudo o que teremos. 2. Ed. (Versão Estendida). Rio de
Janeiro: Travassos Publicações, 2019.
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ResponderExcluirInteressantíssima essa resenha do meu livro. Aceito suas críticas e agradeço pelos apontamentos positivos sobre o meu trabalho. Você captou a essência da trama, ao apontar que o fenômeno que afetou a humanidade é o verdadeiro protagonista, o que explica as lacunas propositadamente inseridas na primeira parte da obra. Parabéns pela sua percepção e boa vontade em fazer essa resenha. Saúde e paz. L C Carneiro. 24/05/2022.
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