domingo, 14 de março de 2021

Somos todos tóxicos

A necessidade de expressar de maneira mais exata os nossos sentimentos, emoções, opiniões e afins é o que comumente nos leva ao uso de metáforas, que, em suma, são figuras de linguagem que produzem sentidos figurados por meio de comparações. É daí que surgem expressões como “saúde de ferro”, “fulano é um gato” e outras mais sutis como “fazer amor”, por exemplo.

O adjetivo “tóxico”, quando aplicado a uma pessoa, é também metafórico, vez que, na prática, uma substância venenosa, que produz efeitos nocivos ao organismo, pode ser tóxica, mas não uma pessoa.

Esse uso do termo é mais um modismo – como falar de empatia ou escrever “gratidão” nas redes sociais sem que haja real sentimento por trás disso –, e veio na mesma leva de expressões que, se por um lado revelam uma maior tomada de consciência, por outro evidenciam o quão profundamente fragilizada é a geração atual.

Vez que tudo é dual no mundo da matéria, o uso do adjetivo “tóxico” como qualificação de pessoas tem, naturalmente, o seu lado positivo. Perceba que, se partimos do princípio de que sofisticação de linguagem está diretamente ligada à sofisticação de pensamento, o uso de expressões como “tóxico”, “abusivo” e afins tem um potencial empoderador.

Por outro lado, porém, ao qualificar alguém como “tóxico” não raro estamos a nos colocar no supostamente cômodo e privilegiado lugar da vítima: se o outro é tóxico, logo, eu sou um poço de virtude, encarnação da própria empatia, “alecrim dourado que nasceu no campo...”

Entenda que em momento algum pretendo culpabilizar as reais vítimas de relacionamentos abusivos, manipulação e demais ardis narcisistas. O que faço aqui, e com a devida cautela, é um convite a investigar o uso metafórico do termo “tóxico”, o que é, de certa forma, também um convite ao autoconhecimento.

A quem estamos a chamar de tóxico? O abusador que intimida e nos faz reféns em relacionamentos doentios ou o sujeito que simplesmente não atendeu às nossas expectativas? Quantas vezes qualificamos o outro como tóxico após o fim de um relacionamento no qual nos mantivemos por pura imaturidade e/ou carência? Quantas vezes a vilanização do outro se nos apresenta como recurso para lidarmos com a nossa frustração.

Certa vez o Pe. Fábio de Melo disse: “Às vezes é preciso inventar um ódio, uma mágoa, um menosprezo, para que o amor não correspondido se torne suportável”.

Fato é que muitas vezes tomamos por tóxica a pessoa que não nos dá o que desejávamos ou que traz à tona questões sobre nós mesmos. Não raro a carência nos leva a ignorar, voluntariamente, os sinais que estavam ali desde o início, e, quando a coisa explode e a gente se magoa, o outro é tóxico, o outro é desumano e vil.

Em tempos em que existe todo um culto à vitimização travestido de empoderamento e todo um projeto segregacionista disfarçado de luta pela igualdade, é necessário que haja da parte de cada um muita sobriedade e disposição para encarar a si próprio.

Nós também somos tóxicos quando insistimos depois de um não. Nós também somos tóxicos quando nos agarramos a uma ilusão diante da evidente incompatibilidade de interesses. Nós também somos tóxicos quando nos impomos na vida de quem nem sequer faz parte da nossa. Nós, por muitas vezes, somos vítimas, mas não raro também somos algozes na vida de alguém.

Ademais, o relacionamento com pessoas tóxicas é, comumente, um convite a encarar as nossas próprias sombras projetadas no outro. E insistir na posição da vítima não raro equivale a negar os nossos defeitos. É doloroso ser a vítima, mas é preferível à dor de enxergarmos a nossa parte feia, é mais cômodo se comparado à necessidade de assumirmos a responsabilidade sobre nossa vida.

Como bem diz um texto atribuído a Shakespeare, “as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos”.

Textos sobre autoconhecimento costumam ser ilustrados com a bela e imponente imagem do Buda, o que não raro nos conduz a uma ideia equivocada de autoconhecimento como perfeição, iluminação ou coisa que o valha, mas é justamente o contrário! Autoconhecimento tem a ver com aceitar-se falível por condição e, a partir daí, se dedicar a cada aspecto que carece de cura.

Eu sei que às vezes as pessoas nos machucam. Sei que há os que praticam o mal e nos vitimam, nos magoam e nos destroem por dentro. Eu sei e lamento por isso. Mas eu sei também que pessoas e situações são por nós atraídas por afinidade, de modo que, quanto mais nos conhecermos, menos tóxicos serão os que estiverem à nossa volta.

E menos tóxicos seremos nós, sobretudo para nós mesmos.

quarta-feira, 10 de março de 2021

As sutilezas do autoamor

O amor-próprio é dado a sutilezas... Mais do que isso: o amor próprio é muito mais um processo do que um fim, algo pronto e acabado.

Naturalmente, “tem gente que se ama e tem gente que não se ama”, como bem disse alguém deveras mais sábio do que eu. Há, porém, aqueles cujo amor-próprio é apenas perpassado por um equívoco conceitual.

Há amor quando há empenho para sobreviver aos movimentos da própria mente; há amor quando há dedicação para acertar depois de um novo erro; há amor quando se procura ajuda e quando se luta para vencer os conflitos internos; há amor quando você não se deixa sucumbir.

Porque autoamor nada tem de perfeição, passando, sim, pelo constante ânimo de aperfeiçoamento. Trata-se de encarar as próprias debilidades, por vezes numerosas, e acolhê-las como um aspecto digno de cura, e não de retaliação.

Equiparar-se aos rostos sorridentes, corpos fitness e espíritos evoluídos do Instagram é a receita certa para o fracasso rumo ao amor-próprio.

É que amor-próprio é processo e não lugar aonde se possa chegar e relaxar. É meta diária ante os diferentes desafios da vida. É munição para agir contra as nossas próprias sombras, aquelas que hão de nos acompanhar ao longo de toda a vida na terra (e talvez depois dela...).

Até recentemente eu pensava que amar a mim mesmo tinha a ver com alcançar um estado no qual eu me perceberia totalmente blindado, imune às ofensas, indiferenças, preconceitos e afins. Até o dia em que compreendi que tal estado me retiraria da condição humana, e não há autoamor quando não há o reconhecimento e aceitação de si como “humano, demasiado humano”.

Pretender-se impassível aos reveses da existência humana é querer elevar-se à condição de anjo ou descer à condição de pedra. Enquanto humanos dotados de amor-próprio, tudo o que havemos de desejar é a sabedoria diante dos sobressaltos, a vontade cada vez mais firme rumo à realização dos sonhos, a autorresponsabilidade e o reconhecimento do próprio poder para tornar sublime a própria vida.

Você se ama quando se dá o direito ao descanso após um dia de trabalho. Você se ama quando faz pipoca e assiste a sua série predileta na Netflix. Você se ama quando sai para malhar porque sabe que precisa de cuidados. Você se ama quando aprende a dizer não, quando aprende a dizer sim e quando aprende a permanecer calado, pois autoamor também tem a ver com se poupar. Você se ama quando se permite ser amado, sem abusos, sem condições que o diminuam, pois o verdadeiro amor nos deve sempre elevar...!

Você se ama quando se sabe falível, quando aceita que é o que é e está tudo bem... E se dedica a trabalhar a partir daí.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Trilhas

“Sempre pode haver alguém que precise”. Foi a desculpa que inventei para mim mesmo quando, havendo arrumado a mochila, me apercebi do meu exagero ao preparar o lanche para a caminhada. Eu e o meu excesso de zelo... Vesti a calça que, ainda naquela manhã, estaria coberta de grama e o novo par de tênis que, em menos de uma hora, seria estreado numa areia branca e fofinha.

E lá estava eu, às oito em ponto, na portaria do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, cujo nome – se não procede a lenda da moça que se acidentou por ali enquanto cavalgava com o noivo – é um bocado machista para os padrões atuais.

Mas não era apenas eu: havia ainda os dois amigos queridos, os estranhos sorridentes – alguns dos quais habituados às caminhadas –, o cara que me chama a atenção, mas que dificilmente se envolveria comigo e, claro, o guia para o qual não há tempo ruim. Dentro em pouco eu me certificaria da veracidade daquela máxima segundo a qual “sozinhos nós vamos mais rápido, mas em grupo nós vamos mais longe”.

A gratidão veio na companhia do medo ao me deparar com as trilhas que eu não teria encarado se estivesse de sobreaviso. Gratidão porque, ao me poupar do desafio, eu não viveria a grata oportunidade de vencê-lo como eu venci.

E foi assim – entre aclives e declives, subidas e descidas íngremes interrompidas por raros momentos em trilha plana, arranhões e picadas de marimbondo – que vi na caminhada a metáfora perfeita para a condição humana, perpassada pelas quedas, subidas, descidas, solidão, ajuda, arranhões e, claro – como bem disse o amigo Anderson Martins – momentos de plenitude (ou “planitude”) que a gente sabe serem breves, mas que são necessários à tomada de fôlego.

O curioso é que, no meio de uma montanha, não importando o quase esgotamento de suas energias, você não tem a opção de voltar, tomar um atalho ou chamar um táxi aéreo que te tire dali e te deixe no seu destino poupando-lhe das dificuldades do caminho.

E a vida, assim como a caminhada ecológica, exige movimento, e a gente não tem outra alternativa senão continuar caminhando...