quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O Cemitério dos Anões - Marcos Mota



“O problema todo com pessoas que se sentem como nós, diferentes, é que dificilmente encontram um equilíbrio, Rafan. Ou tentam subjugar os outros com mentiras e discrepâncias capazes de maquiar suas deficiências, aquilo que os destaca da multidão, só para se sentirem superiores, ou se fecham num universo de autocomiseração e ficam lambendo suas feridas – a maioria, mazelas mentais criadas por elas mesmas. (pág. 157-158)

Imagine um livro que reúne em si filosofia, lógica, química, astronomia, história, política etc. Imagine uma obra interdisciplinar, que, entre inúmeros propósitos, se pretende um convite ao conhecimento. Não, não estou falando da famigerada Barsa, grande aliada dos estudantes em um tempo anterior à era da internet. Tampouco me refiro ao quarentenário Almanaque Abril ou coisa que o valha. Refiro-me ao segundo livro da série “Objetos de Poder”, de Marcos Mota, que, sob o título O Cemitério dos Anões – e passando ao largo de finalidades informativas ou didáticas –, novamente transporta o leitor para o misterioso reino de Enigma.

Ao embarcamos nessa nova aventura pelas terras governadas pela Rainha Owl (coruja, em português, como referência à inteligência envolvida em cada aspecto do reino), surpreendemo-nos com à diversidade de referências utilizadas pelo autor, que, colhendo em diversas áreas do conhecimento, constrói uma sólida base para O Cemitério dos Anões sem revelar pedantismo ou “forçação de barra”. Emana do livro uma harmonia incrível enquanto somos apresentados aos Manuscritos do Mar Morto (bilenares documentos bíblicos encontrados nas cavernas desérticas de Qumran, em Israel, entre 1946 e 1956), às Pirâmides de Gizé (estrutura que se encontra construída no centro de toda a massa terrestre, quase perfeitamente alinhada com o Norte Magnético), à Alpha Orionis (uma das maiores e mais brilhantes estrelas entre as que podem ser vistas da Terra, também chamada Betelgeuse) e ao rio Quisom (“aquele que foi dado”, do hebraico Qîshôn, rio que passa no norte de Israel, mencionado no texto bíblico em Jz 4,7; Jz 5,21; 1Rs 18,40). O mágico dessas referências é que elas aproximam o leitor – sobretudo leitores como eu, resistentes à literatura fantástica – da história que está sendo contada. Nesse âmbito, ao viajar nas páginas de O Cemitério dos Anões, nos vemos não em um mundo fantástico à parte – particularmente, pouco atraente aos meus olhos –, mas em um reino que nada mais é que uma metáfora de um mundo que conhecemos bem.


Existe até um Greek Mink Von, um dos primeiros anões de Enigma, responsável pela criação do alfabeto fonético dos anões, no que, no contexto da obra, temos a origem da fantástica memória dessa raça (p. 105). Mais fantástica do que isso, porém, só mesmo a referência a Stanislau Mink Von Wennusshein, que, em 1648, criou um método de vinculação entre números e o som de algumas consoantes que, com inúmeras alterações sofridas de lá para cá, é comumente utilizado para expansão da capacidade cerebral. Relacionando o equivalente alemão do adjetivo “grego” ao nome do personagem histórico, Marcos Mota batizou o ancestral de Le Golf com um nome que tem tudo a ver com anões.

Outras referências do tipo podem ser encontradas em menções como Bestigui Bin (p. 109), o rei dos anões alados (talvez uma referência ao Noé bíblico), a bela fada negra Huna (equivalente havaiano de “o segredo”, que dá nome a um sistema de pensamento metafísico baseado nas práticas espirituais dos antigos sacerdotes havaianos, chamados Kahunas, e na Teosofia) e tantas outras. O Cemitério dos Anões, no entanto, está longe de ser apenas um emaranhado de referências (as quais o autor, aliás, aplica magistralmente em seu texto). Muito para além disso, a obra de Marcos Mota é um apelo à tolerância em um mundo no qual o encontro seria a chave para a Verdade. E esse promissor encontro é metaforizado aqui pela bela relação de amizade construída entre dois personagens inesquecíveis: Le Golf e Arnold Míron, o Arnie, uma gigante homenagem ao grego Míron, criador do Discóbolo, escultura que representa um atleta se preparando para lançar um disco. O nome do criador da estátua de desportista em ação mais famosa do mundo não por acaso foi utilizado para batizar o ser mais nobre de um povo que, em Enigma, é mestre nas artes esportivas.

Díscóbolo, de Míron.
Fotografía retirada da galería de Sergey Sosnovskiy, no flickr.

Arnie, o possuidor dos Braceletes de Ischa, e Le Golf, que busca o Pergaminho do Mar Morto, são, a um só tempo, iguais e diferentes. Diferentes enquanto gigante e anão que são, pertencentes a povos inimigos, e iguais por serem seres diferentes dentro de suas próprias raças, como bem dito por Le Golf (p. 35). Parece valido ressaltar que as diferenças de ambos no âmbito de suas raças não se restringe ao seu aspecto físico. Atente-se para o fato de que Arnie é um gigante zarolho com “visão” superior aos demais do seu povo (humildade, tolerância, solidariedade) e Le Golf é um anão aleijado com capacidade de “vôo” superior a dos seus (perspicácia, coragem para desbravar o mundo sozinho). E é justamente a natureza dual dessa relação que os torna amigos e essenciais à jornada um do outro. Não obstante, há muito a vencer antes que essa amizade se concretize de fato.

Criando uma dupla cativante e expressando lindamente a complexidade humana, o autor estabelece contradições impressionantes. Enquanto Arnie – personagem com o qual o autor tem forte identificação – é um sujeito altruísta, Le Golf é um anão egoísta; enquanto Arnie lida sabiamente com as suas peculiaridades físicas, nunca se esforçando para ser além do que ele simplesmente é, Le Golf sente a necessidade de se superar a fim de provar para os outros – ou, talvez, para si mesmo – que pode ser o melhor apesar de sua deficiência; se Arnie não toma o seu único olho como um problema, embora seja alvo de escárnio por causa dele, a vida de Le Golf gira em torno de suas asas atrofiadas, embora o seu povo nunca o tenha tratado com diferença em virtude disso. Ninguém menos que um mestre poderia criar tais contradições de maneira tão precisa, mostrando a realidade desses dois personagens e a reação, contrária ao que a princípio se esperaria, de cada um deles. Enquanto Arnie é um grandalhão “tolo”, porém compassivo, Le Golf é um pequenino super inteligente, porém egocêntrico, e é assim que ambos aprendem um com o outro, descobrindo a Verdade antes mesmo que ela se revele através do Pergaminho do Mar Morto: não há barreiras para que o encontro e a amizade se realizem.

Como não podia deixar de ser, uma vez que temos em Le Golf um grande historiador, a obra proporciona reflexões interessantes – para lá de pertinentes, eu diria – no que tange à necessidade de resgate histórico e cuidado quanto à influência que comumente sofremos pelo que nos é contado (p. 39; 120); às diversas facetas de um mesmo fato (p. 41); ao inevitável vínculo que temos com as ações de nossos antepassados (p. 113; 114), bem como à importância de não permitirmos que toda a nossa história seja construída com base nessas ações (p. 176). Em um mundo a cada dia mais ideológico, a cada dia mais dividido entre direita e esquerda, entre mocinhos e vilões, me parece louvável que tais reflexões saltem aos olhos em um livro cujo público-alvo é majoritariamente mais jovem. Louvável também, vale ressaltar, é a existência de dois protagonistas com deficiência e uma fada negra que, em poucas páginas, se mostra capaz de embelezar toda uma história. Escolhas dignas de um escritor responsável.

Uma grata surpresa é a menção ou mesmo retorno de simpáticos personagens do livro anterior da série. Temos uma breve menção a Bernie (p. 20-21), em cujas costas o jovem Isaac Samus viajou para Verlem em O Enigma dos Dados, e Perilato, um anão de duzentos e oitenta e cinco anos e pai de Le Golf. O interessante é que a menção a tais personagens, bem como – e sobretudo – a referência à incursão pela estação de tratamento de água (p. 183), nos levam à compreensão de que a jornada dos heróis do primeiro e segundo livros são concomitantes, o que, por si só, já é a promessa de um grande desafio para o quarto e último livro da série, quando todos eles enfrentarão grandes perigos rumo ao encontro com a Rainha Owl, em Corema.

E por falar em ocorrências paralelas, a descrição do sombrio salão bidimensional, bem como do retorno dos personagens ao momento do assassinato de Ischa através do poder do Pergaminho, é fantástica! Einstein, bem como os defensores da hipótese das realidades paralelas, certamente curtiriam isso.

É interessante notar o quanto o autor se vale positivamente de sua formação acadêmica e cristã na construção de sua obra. Se de um lado somos surpreendidos com noções de física e matemática, de outro somos brindados com a transformação de uma vilã em uma estátua de sal (p. 146) e outras referências bíblicas. Isso está bem longe de ser um problema, mas, vale ressaltar, pode se tornar um caso não haja o devido cuidado na menção de, por exemplo, “Deuses Antigos” (p. 83), ou na utilização de expressões como “mandingas” (p. 161). Aos ouvidos desavisados, poucas coisas podem abrir precedentes para preconceitos contra os quais há pessoas lutando em todas as partes do mundo.

Enfim, ao Arnie, que, fascinado com todo o conhecimento que adquire, se pergunta quantas outras infindáveis maravilhas podem o céu e a terra ocultar (p. 83), eu responderia com os famigerados dizeres do mestre Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Não me estranha, portanto, que algumas escolas em Minas Gerais hajam adotado a série “Objetos de Poder”, restando-me apenas torcer para que os professores – e eu confio plenamente neles, senhores da Educação – façam bom uso do material que têm em mãos. A já mencionada natureza interdisciplinar da obra possibilita uma série de abordagens em sala de aula. Portanto, vale a pena mergulhar nessa leitura e embarcar numa viagem na qual o nosso grande objeto de poder é nada menos que o próprio livro.

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MOTA, Marcos. O Cemitério dos Anões. 1ª Ed. Belo Horizonte: Mou Editorial, 2016.

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