“A feiura que, inicialmente, Isaac havia percebido em Perilato,
Bernie, Leônidas e Antíquades acabaria desaparecendo com o tempo. Era sempre
dessa forma que as coisas aconteciam. Quando se passa tempo com pessoas
interessantes, que acabam sendo chamadas de amigos, nenhuma beleza fica
vinculada à sua aparência.” (pág. 92)
O que acontece quando um pré-adolescente inteligente
e arrogante, detentor de um grande poder cuja dimensão ele próprio desconhece,
embarca em uma arriscada e surpreendente aventura ao lado de um homem de meia-idade
e uma garota esperta e igualmente inteligente? Bom, acontece O Enigma dos Dados, primeiro livro da
série “Objetos de Poder” de Marcos Mota.
Devo dizer que, ao enveredar pelas páginas do
O Enigma dos Dados, eu tinha apenas
um objetivo: vencer as minhas resistências em relação à chamada literatura de
fantasia, gênero ficcional para o qual eu sempre torci o nariz. Eu já havia,
confesso, feito uma tentativa com Julieta
Imortal, de Stacey Jay. Tal obra, porém – um baita de um desserviço ao
clássico de Shakespeare –, só fez intensificar o meu preconceito contra a
literatura fantástica, o que, possivelmente, acabou por me privar de gratas
oportunidades literárias. Ademais, ao iniciar a leitura da obra de Marcos Mota,
eu era motivado por uma leitura anterior, O
Filho do Coveiro, que me revelara um escritor de imensurável qualidade,
sensibilidade e habilidade com as palavras. Aquela obra, não obstante, se
tratava de um romance. Estariam tais qualidades presentes também em uma obra de
gênero tão distinto? E lá fui eu tentar descobrir.
A obra nos leva à Era Medieval, mais
precisamente à simplória Finn, cidade do interior do reino de Enigma, mundo fictício
repleto de mistérios, de magia... e de trapaceiros. Ou seja: nada muito
diferente do nosso mundo real. A propósito, vale mencionar, neste ponto, que
tudo em O Enigma dos Dados é ricamente
metafórica, a começar pelo próprio reino, que não por acaso leva o nome de
Enigma. Trata-se de um mundo criado por Moudrost – o equivalente à “sabedoria”
na língua tcheca –, que haveria criado Enigma baseada em sete formas de
inteligência, sendo a matemática uma delas. O amor de Moudrost pelas criaturas
de Enigma era tal que ela compartilhou com elas a essência de seu poder (como
que fazendo dessas criaturas “a sua imagem e semelhança”). Dessas criaturas,
dois humanos atingiram o ápice do conhecimento matemático e lógico,
respectivamente, sendo a magnitude de tal conhecimento abrigada nos Dados de
Euclides e no Cubo de Random, os primeiros Objetos de Poder existentes.
Sim, à certa altura, o autor faz uma verdadeira
releitura do Gênesis bíblico, e o faz magistralmente, provando que a intertextualidade
é o seu forte, o que parece se evidenciar em suas demais obras.
O jovem Isaac Samus – expert em matemática,
mas não tão habilidoso em relações humanas – está de posse de um desses Objetos
de Poder, os Dados de Euclides (referência aos Dados RPG e ao matemático
comumente tido como o Pai da Geometria, supostamente grego e nascido no ano 330
a.C.), sendo levado por Vicente Bátor, chefe da guarda real, a auxiliá-lo em
uma missão: encontrar o Cubo de Random (referência ao Cubo de Rubik, o nosso
popular Cubo Mágico), sobre o qual a jovem Gail tem uma pista.
Assim, se segue uma fantástica aventura, a
qual podemos resumir à uma luta do bem contra o mal. À obstinada busca pelo
objeto cujo poder pode salvar o reino de Enigma. Objeto esse que, se encontrado
pelos espiões de Ignor, há de ser utilizado para finalidades perniciosas. Neste
ponto, vale dizer que, muito embora o autor cometa o erro de não explorar melhor
o ser ou coisa Ignor – apenas mencionando-o por duas ou três vezes em lugar de torná-lo de fato temível, explicitando os reais riscos sofridos pelo reino caso os Objetos de Poder caiam nas mãos de seus espiões –, a mensagem fica bastante clara: trata-se de um embate entre
Moudrost e Ignor, a sabedoria e a ignorância. Ignorância essa a qual o
protagonista, Isaac Samus, não raro fica próximo de ceder, dados os seus
mesquinhos sentimentos de vaidade, preconceito e arrogância. É muito
ilustrativo um trecho em que, ao ostentar com arrogância o fato de possuir os
dados durante uma conversa às escondidas no cômodo da Oficina de Barcos, Isaac
acaba por atrair a atenção dos espiões de Ignor. Ou seja: sentimentos baixos só
fazem atrair o inimigo, e o grande vilão metaforizado na obra de Marcos Mota não
é o personagem do Cristianismo (embora o texto possibilite tal leitura), mas
o nosso próprio potencial para a maldade de modo geral, aqui representada pela
ignorância. Se no Gênesis é a desobediência a origem de todos os males, aqui
será a ignorância a funesta fonte.
O enigma dos quadros de Penina, bem como a incursão pelo Jardim das Estações, são maravilhosos! Não me surpreende que O Enigma dos Dados venha sendo adotado por tantas escolas da rede
privada de ensino de Minas Gerais. Afinal, o cara conseguiu colher na matemática, na filosofia, na história, na própria literatura e até
no criacionismo o que necessitava para contar uma história para os jovens, oferecendo aos
professores um conteúdo interdisciplinar e, com isso, infinitas possibilidades
de trabalho com os discentes. Ademais, vale ressaltar o caráter instrutivo do
texto, que, ao abordar a temática da sabedoria, salienta o seu potencial tanto
para o bem como para o mal, e, nesse contexto, trata o conhecimento enquanto
algo a ser compartilhado para fins grandiosos e benefícios coletivos, e não
para hierarquizar os seres humanos.
Uma curiosidade é que foi partindo das
fábulas contadas aos seus filhos – bem como fascinado pelos dados de RPG e
tendo a curiosidade aguçada pelos sólidos de Platão, a ele apresentados durante
a Faculdade de Engenharia –, que o mineiro Marcos Mota desembarcou em terras
literárias para fazer morada. Bom para ele, melhor para nós, carentes que somos
de uma literatura que seja, a um só tempo, para entretenimento, instrução e
reflexão; uma literatura que, ao nos apresentar tantas referências, nos conduza
a tantas outras leituras. Não é de surpreender que, ao chegar ao fim a aventura
de Isaac Samus e seus amigos, é o leitor quem se vê diante de uma missão:
decifrar os enigmas da obra de Marcos Mota! E o digo com total convicção, a
despeito do fato de a mesma não haver sido o suficiente para me tornar um
amante da literatura fantástica.
Mais importante que esta missão, só mesmo a
de nos tornarmos seres humanos melhores, utilizando com sabedoria e em comunhão
o poder que nos foi dado para um único fim: proteger o nosso reino! O perigo
está sempre à espreita, mas, sempre que a tribulação tomar conta de nós, haverá
um "algoritmo de Deus" capaz de nos salvar e fazer a magia acontecer.
***
MOTA, Marcos. O
Enigma dos Dados. 2ª Ed. Belo Horizonte: Mou Editorial, 2016.
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