Respiração suspensa. Olhos fixos nas páginas.
Taquicardia e total encantamento. Foi assim que eu li os capítulos finais de A Maldição das Fadas, terceiro livro da
série “Objetos de Poder”, de Marcos Mota, que, aqui, entre pequenos tropeços e
grandes acertos, brinda os seus “Leitores de Poder” com mais uma obra
fantástica! A intertextualidade e os muitos mistérios são o que a obra tem em
comum com suas antecessoras, tendo, porém, algumas peculiaridades: constrói um
relacionamento interracial sem dar a isso dimensões exacerbadas, empodera as
personagens femininas sem querer ser feminista, trata de justiça e igualdade
sem querer ser de esquerda, não raro fazendo críticas sutis (ou nem tanto) a tais
movimentos ideológicos ou pelo menos aos discursos que os caracterizam. Não
obstante, considerando a moral positiva predominante na narrativa, bem como a
comum impossibilidade de se fazer arte sem um viés ideológico como base,
nenhuma dessas peculiaridades se apresenta como um problema na obra. Pelo
contrário, A Maldição das Fadas revela
um autor de opinião e que sabe se valer de sua arte para transmitir aos jovens aquilo
no que acredita.
A estória nos apresenta Aurora, cujo nome, em
aparente contraste com o seu tom de pele, acaba por revelar uma metáfora
belíssima: a mulher negra que se apresenta como a “aurora”, o despertar, o novo
amanhecer de todo um povo. É notório um esforço por parte do autor em promover
o feminino e a negritude, sem, no entanto, fazê-lo em demasiado, o que acabaria
por exaltar supostas diferenças ou mesmo por legitimar as diferenças (sociais)
lamentavelmente existentes no mundo real. No reino mágico de Enigma, existem
diferentes raças, mas o tom de pele não figura como uma questão entre eles. Um
recado louvável para as crianças do mundo aqui fora, onde não existem fadas,
aqueônios ou anões: a cor da pele, definitivamente, não deve – ou pelo menos
não deveria – ser uma questão.
O protagonismo feminino, porém, não se dá
apenas pela personagem Aurora. A presença da grande maioria das personagens
femininas tem caráter determinante na estória: a triste maldição que paira
sobre as fadas é fruto não do entrave entre Lilibeth e Atoc, mas, sim, da
maldade da manipuladora Valquíria; o Objeto de Poder dos aqueônios foi forjado
por uma grande escritora de nome Emily; é notória a influência de Virgínia
junto ao filho Pedro e ao marido Kesler; e, por fim, é extremamente
significativa a presença de Isabela, que, com a sua maturidade e bom senso,
está sempre chamando os apaixonados protagonistas de volta à razão. A atuação
da personagem, aliás, se torna indispensável, uma vez que dá ao leitor alguém
com quem se identificar, já que leva um certo tempo até que consigamos ter
alguma empatia pelo casal formado por Aurora e Pedro.
E, ainda na temática da exaltação do feminino,
é digna de aplausos a menção do preconceito do qual as mulheres normesas se
tornaram vítimas graças à ignorância dos valeses, sendo acusadas de bruxas em
razão do conhecimento que possuíam (p. 85). Uma clara referência a um triste
episódio vivido no século XVII, com algumas reminiscências em outros momentos
de nossa história. Na vida e na literatura, a ignorância sempre vitimando
pessoas de bem.
Vale ressaltar a feliz ideia que Marcos Mota
teve ao fazer uma intertextualidade com o tão recontado A Bela Adormecida,
levando a personagem-título como que a “ressurgir” em A Maldição das Fadas positivamente às avessas. Aqui, a Aurora –
nome atribuído à personagem no clássico da Disney, de 1959 – não é a delicada
garota de traços europeus que, após espetar o dedo em uma roca de fiar, cai em
um sono do qual só pode ser despertada por um beijo de amor verdadeiro. Pelo
contrário, ela é a garota negra que tem em suas mãos o poder sobre a vida do
amado. A menarca, metaforizada no conto de fadas em questão pelo sangue
derramado ao contato com o pontiagudo objeto (vale pesquisar os inúmeros
estudos já realizados sobre o tema), é abertamente expressa no terceiro livro
da série “Objetos de Poder” em um escatológico trecho que reúne humilhação, vômito
e menstruação (p. 33). Aqui não há um rei que, por não compreender a
necessidade do sangramento, cria um manto de proteção em torno da filha,
mandando para longe dela todas as rocas de fiar. Pelo contrário, há uma mãe
ausente e uma avó, próxima apenas fisicamente. E, finalmente, o tal beijo de
amor verdadeiro, em vez de despertar a princesa de seu sono profundo, na trama
de Marcos Mota é capaz de levar o amado ao sono eterno. Enfim, são outros os
obstáculos para a autorrealização de Aurora Curie, mais desafiadores e bem
menos machistas por sinal.
Ainda investigando as relações com os contos de
fadas, podemos observar também sutis referências à famigerada Chapeuzinho
Vermelho, como, por exemplo, na cena em que o ferreiro Derik tenta avançar
sobre a jovem fada recém-púbere (p. 132), tal como o lobo pedófilo que tenta
“comer” a Chapeuzinho. Isso sem falar no tão procurado Manto de Lilibeth, clara
referência ao capuz da adolescente do conto de fadas, representativo dos ciclos
menstruais da mesma. Aqui, ao revestir-se com o manto carmesim, que acaba por
envolver-lhe a cabeça com um capuz, Aurora é tomada pelo poder de mudar o curso
das águas, conduzindo os seus amigos de volta a lugar seguro (p. 195). Tanto na
obra de Marcos Mota como nas fábulas em que ele colheu, a transição da infância
para a adolescência – fortemente marcada pela menstruação no caso das meninas –
é apresentada como sendo importante, com a única e super significativa
diferença de que, se nos contos de fadas mencionados as personagens-título mais
parecem secundárias, todo o protagonismo é entregue à Aurora em A Maldição das Fadas. Aqui, a jovem não
fica à mercê das circunstâncias, não é mera vítima da maldade da bruxa ou da
lascívia do lobo, mas é ativa. Anseia pela Visão das Fadas, revelando ser
consciente dos processos e transformações naturais característicos de sua raça.
Segue, voluntariamente, pelos caminhos mais arriscados, e reflete, medita e
opina sobre a própria condição. Essa é Aurora Curie!
Uma vez mencionado o Manto de Lilibeth, Objeto
de Poder das fadas, vale ressaltar a aparentemente forçada relação entre ele e
a maldição das fadas, que dá título ao livro, tal a ausência de elementos que
expliquem que o resgate do Manto de Lilibeth reverteria a maldição lançada pela
malvada Valquíria sobre aquele povo (p. 97-98). Ora!, o conhecimento do Povo
Encantado fora materializado por Lilibeth no Objeto muito antes de qualquer
maldição. Por que razão encontrá-lo quebraria uma maldição lançada por
Valquíria? Neste ponto, aproveito para lamentar que Valquíria haja tido apenas
uma pequena participação na história, nos registros dos antecedentes do Povo
Encantado. Foi genial a criação de uma personagem tomada de toda uma amargura
cuja a base é nada menos que o fato de não haver sido amada. E é quase certo
que, para criá-la, o autor não tenha precisado ir muito longe, limitando-se
apenas a observar algumas questões típicas das relações entre sogras e noras,
ou mesmo entre mães e filhos homens... Oxalá em suas próximas obras Marcos Mota
não ignore o valor e o poder de uma vilã feminina!
Outra coisa que não convence no contexto da
obra é o suposto poder de persuasão possibilitado pela Pena de Emily.
Considerando serem os aqueônios um povo treinado nas artes da linguagem, esperava-se
que o descendente de tal raça, quando no uso do Objeto de Poder, se utilizasse
com perspicácia do artifício da linguagem. O que se vê, no entanto, é nada mais
que uma espécie de transe hipnótico oriundo de frases imperativas sem real
complexidade. No episódio em que Pedro Theodor dialoga com Corvelho e seus
guardas (p. 42), por exemplo, seria muito bem vindo o uso, pelo garoto, de
alguma estratégia de linguagem que confundisse os seus interlocutores, não lhes
restando outra saída que não fosse abrir passagem à família de aqueônios com a
jovem fada. Aqui, o poder do Objeto não ficou tão bem construído quanto nas
obras anteriores, o que não significa que não haja pontos altos no que tange à
linguagem. São sempre bem construídas e instrutivas as conversas entre os
aqueônios e a fada, durante as quais eles a ensinam sobre construção frasal (p.
75), metáforas (p. 106), fonética e fonologia (p. 103). Os professores de
português agradecem.
Carente de profundidade nas questões humanas, o
que se fez característico nos demais livros da série, A Maldição das Fadas marca o ingresso do outrora autor independente
Marcos Mota na equipe de autores da Editora Lê. Ao meu ver, a obra não supera
as suas antecessoras O Enigma dos Dados e O Cemitério dos Anões,
permanecendo o Livro 2 na condição de meu predileto. A despeito disso, porém, o
terceiro livro da série dá continuidade à saga dos povos de Enigma – desta vez
trazendo, inclusive, um super mapa do Reino! –, que lutam pela manutenção do
conhecimento em mãos incorruptíveis pela ganância. Mais uma vez, esse nobre
mineiro de Muriaé mostra que não está na literatura de passagem, agora
resgatando uma multidão de jovens de todo o país para a Literatura nacional,
com a qual é plenamente comprometido e na qual tem o seu nome definitivamente
marcado. Esse é Marcos Mota!
***
MOTA, Marcos. A Maldição das Fadas. Belo Horizonte: Editora Lê, 2017.
Nossa Alex,
ResponderExcluirFoi fantástico ler sua resenha! Passei o livro todo imerso em
Enigma, mas ignorante a tanta coisa! Já havia amado os outros livros do autor. A sua resenha veio para, além de reforçar a minha admiração por ele, só reforça o meu orgulho pela nossa literatura, que vem quebrando tabus em meu coração!
O Pedro morre?
ResponderExcluirTem parte do beijo??
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