domingo, 20 de outubro de 2019

Uma luta diária

Naquele dia, despertou às dez, como lhe era de costume. Sentou-se na cama e dedicou-se a uma oração sincera e em voz alta, acreditando que, assim, viria mais rápido o socorro. O silêncio, porém, continuava a reinar entre as paredes, ao passo que o vazio ecoava dentro da casa e de si. Nada de paramédicos espirituais ou som de ambulâncias celestes, conduzindo-o a mais essa dolorosa conclusão de que, talvez, não houvesse mesmo um Deus que lhe pudesse escutar.

Necessidades fisiológicas o impeliram a se levantar. Saiu do quarto, foi ao banheiro e, na saída, mirou-se no espelho como quem se deparasse com uma figura lamentável. Retornou para a cama. Desejava dormir para não ver, experimentar mais do sono que era a inconsciência da dor. Nada. Revirava-se na cama como que buscando posição confortável, mas o organismo já se satisfizera de repouso. Não dormiria por ora.

Forçou-se a se levantar, procurando organizar as ideias na mente. Tarefas simples lhe pareciam extremamente complexas, tais como arrumar a cama, lavar a louça, escovar os dentes. Das janelas, abriu apenas uma. Precisava de ar, mas não se julgava digno da luz que lhe invadia a casa quando abria todas as janelas. Precisava e, de alguma forma, regozijava-se com a penumbra que tão bem lhe refletia a alma. Questão de afinidade.

Pôs no micro-ondas uma comida tão artificial quanto ã própria existência, e, enquanto o irritante apito não lhe despertava do transe, rolava o feed das redes sociais, encolhendo-se no sofá a cada post de vida perfeita que ali se apresentava. Em seu íntimo, desejava também escutar o barulho do mar ou sentir no rosto a brisa das montanhas. As providências, porém, lhe pareciam extremamente complexas: ir ã rodoviária, comprar passagens, acessar as páginas de hotéis... Faltava-lhe energia para tanto. Ademais, não havia lugar que lhe desobrigasse da própria companhia.

O apito. O irritante apito. O cheiro de comida processada. A dor... E, naquele momento, soube: abreviaria a própria vida. Talvez não hoje. Possivelmente não amanhã. Mas o faria. De certa forma, já o estava fazendo, em doses homeopáticas, mas fatais, todos os dias. Faria, e doía saber, mas, como agravante da dor, ele sabia.

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