quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Uma quase mulher

Ela era uma bicha alta, imponente. As pernas eram bem torneadas, próprias de um bailarino com carreira na Europa e Estados Unidos. A pela era de um negro reluzente, como bem disse, certa vez, a igualmente saudosa (e desbocada) Dercy Gonçalves. Dadas as limitações de uma sociedade que celebra as debilidades e desdenha os êxitos, muito se conheceu de suas polêmicas, mas pouco de sua humanidade e cultura irretocável.

A primeira lembrança que eu tenho do Jorge Lafond (1952 – 2003) é de uma participação sua no programa do Gugu Liberato – mais um que nos deixou recentemente –, onde uma jovem realizava o sonho de desenhar, com batom, um coração em sua cabeça lustrosa.

Foi na Vera Verão, personagem mais famosa desse grande artista, que eu tive, desde a infância, uma referência de homossexual. Eram outros tempos... Tempos em que homossexuais, se apareciam na tevê, era apenas para fazer rir por via do estereótipo do gay espalhafatoso e sexualizado.

Isso, porém, em nada o desabonava. Eu, em algum nível já ciente da minha homossexualidade, gostava daquela liberdade de ser, ainda que não refletisse – como ainda não reflete – a realidade. Gostava de quando a Vera Verão adentrava o cenário da praça, causando alvoroço e chamando a atenção de todos. Gostava das vezes em que, no final do esquete, ela ficava com o bofe da inimiga, só mais tarde vindo a entender que aquilo me proporcionava uma espécie de catarse.

Veja bem: se a Vera Verão – um gay negro e cheio de trejeitos – acabava conquistando um homem comum ou sendo escolhida como a musa do clipe do Paulo Ricardo, decerto que eu, um gay fora do padrão (porque o meio gay também tem os seus preconceitos), teria também a minha chance. Desse modo, a vitória da Vera Verão, mesmo que uma vitória boba (pois, convenhamos, conquistar um boy magia não é lá uma grande realização na vida), também era, de alguma forma, a vitória daquela criança tímida lá da periferia, que, com os seus medos e óculos enormes, já se entendia como homossexual.

Pois é... eu sou do tempo em que havia a Vera Verão, que – muito antes de qualquer Pitty Bicha ou Valéria Vasquez (personagens de Tom Cavalcante e Rodrigo Sant’Anna, respectivamente) – já causava estardalhaço e, mesmo que de maneira estereotipada, já ocupava o seu espaço e exercia o seu direito de ser no mundo e em um país racista e homofóbico.

A Vera Verão – que, junto de tantos outros artistas que já partiram, habita a memória desta bicha quase quadragenária que vos escreve – eu envolveria num abraço e diria, se tivesse uma única oportunidade:

Muito obrigado, Lafond.

Texto que transbordou de mim numa manhã de quarta.

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