O texto de hoje é de autoria não apenas de uma
escritora admirável, mas também de uma amiga querida. Autora de obras como Fragmentos: vidas, amores e verdades (Travassos, 2018) e Assim
como a fênix (IDE, 2018) – que, vale o registro, já ganhou resenha
por aqui – Francisca Gomes nos brinda hoje com o seu olhar atento, poético e –
por que não dizer? – “matuto” sobre uma viagem de intercâmbio. Havendo recebido
a honra de postar aqui no blog a crônica* de autoria dela, convido você, leitor,
a embarcar com a autora cearense em uma aventura pelas “zoropa”. Afinal, não é
justamente esta a função da literatura: proporcionar-nos viagens nas quais o
texto é o único passaporte necessário? Então, se assim é, aperte o cinto e
vamos nessa!
Lá estava meu nome na lista dos selecionados para o
intercâmbio na Irlanda pelo Programa Professores sem Fronteiras da Secretaria
Municipal de Educação de Fortaleza, com mais 24 colegas de profissão.
Exultante, contei a novidade à família e aos amigos. Oh, my God!
Dali a um mês eu pisaria em terras europeias. Durante esse período,
providenciar passaporte, casacos, luvas, gorro, “doleira”, ficar de olho no
valor do Euro e atualizar o vocabulário básico do inglês se converteu em minha
nova rotina.
Passar horas voando sobre o Atlântico seria a parte
assustadora daquela novidade gigantesca, mas nem um friozinho na barriga senti
durante as nove horas de voo a bordo de um Airbus da TAP Air Portugal com
destino à Lisboa, ponto de conexão. Lá, passamos doze horas.
O primeiro detalhe impressionante, captado pelos meus
sentidos aguçados, foi a mistura de idiomas das pessoas na fila da área de
imigração. Lá estava eu, brasileiríssima, com cidadãos de diversas etnias e
culturas.
À medida que avançava na fila enorme, que dava voltas
e voltas dentro de um salão, discretamente observava os traços, gestos, trajes
e vozes de homens, mulheres e crianças de vários países. Como Deus é criativo,
pensei. A obra humana é magnífica! Somente neste orbe, quanta variedade étnica.
Alguns exemplares estavam ali.
Sair do aeroporto com um pequeno grupo de colegas, aproveitando o bônus que a conexão de 12 horas nos favoreceu, foi eletrizante. Caminhar em solo europeu, pelos pontos turísticos de Lisboa, com a possibilidade fácil de comunicação, foi um presente da vida. Lá me senti uma turista internacional.
Na chegada ao aeroporto de Dublin, depois de uma
viagem de quase três horas, meu corpo experimentou a temperatura baixa pela
primeira vez. No mês de setembro, em pleno outono, o frio não era tão incômodo,
mas para uma nordestina do sertão cearense, qualquer friozinho exige um
agasalho. Precavida, lá experimentei a utilidade de uma segunda pele térmica.
Nosso destino era Limerick, 214 quilômetros distante
da capital irlandesa. O percurso até à cidade universitária foi feito durante a
madrugada num ônibus fretado e durou duas horas e meia. Logo que entrei no
veículo, observei imediatamente o volante do lado direito. Que confuso para o
meu juízo essa tal mão inglesa.
Acordar num hotel de uma cidade europeia parecia uma
cena cinematográfica. Foi exatamente naquele momento, quando abri os olhos para
aquele novo cotidiano, que tive a sensação de estar dentro de um filme.
Enquanto eu acordava às 7h na Irlanda, minha família estava dormindo em fase
REM total no Brasil. A legítima matuta que sobrevive em mim, a poetisa de
nascença ou essas duas personalidades juntas, trataram de observar as
peculiaridades daquele lugar em que nunca havia pensado visitar, muito menos
com status de
intercambista. Nos meus sonhos de menina que morou no interior do Ceará, da
Bahia e do Piauí, não cabia a cidade interiorana de Limerick, sequer tinha
conhecimento daquele lugar no planeta.
Os sonhos turísticos de uma pessoa nascida no sertão são aqueles que comumente vemos na TV: Paris, Londres, Hong Kong... Comecei a assistir filmes gravados nessas metrópoles com 10 anos de idade, na tela em preto e branco de uma televisão pequena, na sala da minha modesta casa, na companhia dos meus pais e irmãos. Três décadas depois, naquele setembro de 2024, com 53 anos de idade, tinha à minha frente uma janela que dava para um rio de nome Shannon, que cruza o centro de uma cidade irlandesa, a 6.865 quilômetros da minha casa em Maracanaú, no meu Ceará. Aqui cabe um “orraaaaaaaaaa” bem cearense, mas eu expressei um “Uhuuuuuuu” quando abri as cortinas e me deparei com tamanha belezura e senti orgulho da minha conquista, que não veio tarde, pois acredito que tudo chega no tempo certo.
Antes de viajar, na arrumação das malas, duas amigas
me ajudaram a organizar os looks de cada um dos 12 dias que passaria
em Limerick, pois uma matuta como eu, que nunca havia “turistado”, e para tão
longe de casa, estava deveras insegura nesse quesito. E, quando me vi no
espelho do hotel, com um tipo de roupa que nunca tinha vestido, só senti
vontade de rir. Eu estava muito elegante para os padrões cearenses. Já para o
padrão europeu, era apenas uma estudante vestida adequadamente para ir à
faculdade.
Caminhar pelas ruas da bonita Limerick com meu grupo de colegas, do Clayton Hotel à Mary Immaculate College, foi uma experiência encantadora em cada um daqueles dias, pois me extasiei com o design das casas com portas coloridas, a diversidade de roseiras em cada jardim, o silêncio cortado somente pelo grasnar dos corvos. Ver essa ave de pertinho é uma das saudades que sinto, pois é um dos animais que desejava conhecer antes de morrer. Para mim, os corvos não simbolizam maus presságios em razão de sua cor ou hábitos necrófagos, mas astúcia, sabedoria e cura. Seu corvejar é um som agradável, me proporcionava genuína alegria. Se era matutice cumprimentá-los cada vez que os via, sou matuta com muito “goxto”!
Percorrer os corredores da MIC
carregando uma mochila nas costas, assistir aulas com professores irlandeses,
em salas de estrutura clássica e ainda almoçar no refeitório com universitários
“gringos”, me transportava para uma daquelas séries de streaming boas de maratonar. E tenho certeza de que não era apenas eu
que tinha essa sensação.
Entrar em igrejas católicas de
estilo gótico, era uma cena de filme épico. Conhecer a St.
Mary's Cathedral, com sua arquitetura medieval, construída no coração de
Limerick e inaugurada em 1.168, fez meu coração bater mais forte com a sensação
de voltar a uma época em que certamente vivi.
Já a sensação de subir à torre
do King John’s Castle, construído em 1200, ao lado do rio Shannon, em
Limerick, e participar da encenação turística de um banquete medieval no
Bunratty Castle, construído em 1425, trouxe à minha mente a lembrança dos
contos de fadas que lia na infância e dos filmes em desenho animado da Sessão
da Tarde.
Por trás da beleza fascinante desses lugares que
constituem o patrimônio cultural de Limerick, existe a história das batalhas,
das conquistas sangrentas, da evolução daquele povo, cujos registros estão
também nos museus e nas bibliotecas, mas ainda impregnados nas paredes e na
energia dos ambientes mais sombrios. “Matutice braba” seria considerar apenas a
superfície.
Minha personalidade matuta vinha à tona principalmente no horário das refeições. Preferia apontar minha escolha no cardápio, para não passar vexame na pronúncia estrangeira e sempre depois de uma consulta ao Google para verificar se o prato escolhido não tinha pimenta e curry, temperos incompatíveis com meu paladar e fortemente presentes em quase todos os pratos da culinária irlandesa. Depois de muitos dias comendo batata, ingrediente usado em quase todas as receitas, senti falta do cuscuz e do baião de dois, típicos da minha terra.
O choro de emoção só veio com o contato mais íntimo com a natureza, quando visitei os Cliffs of Moher; quando fiz um passeio na Slea Head Drive, em Dingle, rota cênica que fez parte de muitos filmes; quando percorri o Lago Derg de barco; quando pisei na areia da praia de Lahinch; quando colhi pedrinhas na península, pétalas de rosas caídas das roseiras no People Park e folhas secas das árvores de plátano nas ruas de Limerick; e, muito especialmente, quando acariciei a crina de Megg, égua da raça Tinker, nas andanças pelos arredores do castelo de Bunratti, e a pelagem dos cães da raça Old English Sheepdog, quando seus tutores gentilmente me deram permissão. Nesses momentos, fui matuta sem cerimônia, sem vergonha, fui só a neta do Seu “Ontõi Gomi”, fui só uma filhinha de Deus com o coração transbordando de gratidão, diante da beleza exuberante que vi em outro ponto do planeta e que só o Autor da Vida foi capaz de criar.
Durante as aulas na MIC e visitas a escolas, aplaudi o
que tem qualidade excelente, reconhecendo a sorte daquele povo. A Irlanda é um país de economia altamente
desenvolvida, com alto padrão de vida. Lá “professor tem valor”. Em
contrapartida, senti orgulho dos professores que tive, da professora que me
tornei, da aluna que fui e dos alunos que tenho. Intercâmbios
profissionais servem para impulsionar reflexões e ideias. Voltei com a bagagem
cheia de muitas.
Foram 15 dias consumindo em
Euro. Lá não passei nenhum perrengue chique. Retornar ao Brasil e voltar a
pagar as contas em Real me lembra a fala de João Grilo na obra de Ariano
Suassuna, O Auto da Compadecida: “fica rica, fica pobre”. Mas também vi gente aperreada do
juízo, pedintes e viciados. Esses males emocionais levam muitos deles a se
despedirem da vida, mergulhando nas águas do rio Shannon.
Quando saímos do nosso mundo
para visitar outras partes do Mundo, é que temos noção do nosso tamanho, do
nível em que estamos, do que realmente já alcançamos, do quanto mais podemos
crescer, do tanto que temos que agradecer.
O melhor de tudo, é que a
viagem mais importante, aquela que ganhamos de bônus, é, na verdade, a viagem
que fazemos para dentro de nós, algo que acontece espontaneamente e, quando nos
damos conta, estamos nos vendo na perspectiva do outro, pois a todo momento
analisamos a nós mesmos.
Nesse intercâmbio, fui mais
criança do que adulta, senti-me mais professora do que aluna, fui mais matuta
do que culta, fui muito mais eu.
Voltei dizendo sorry por qualquer besteirinha, muito mais educada pedindo please para tudo, acho que dizer excuse me parece muito mais elegante, é charmoso agradecer dizendo thank you very much. Mas, é só uma fase. Vou morrer dizendo “oxente”.