segunda-feira, 7 de abril de 2025

Uma matuta na "zoropa", por Francisca Gomes

 

O texto de hoje é de autoria não apenas de uma escritora admirável, mas também de uma amiga querida. Autora de obras como Fragmentos: vidas, amores e verdades (Travassos, 2018) e Assim como a fênix (IDE, 2018) – que, vale o registro, já ganhou resenha por aqui – Francisca Gomes nos brinda hoje com o seu olhar atento, poético e – por que não dizer? – “matuto” sobre uma viagem de intercâmbio. Havendo recebido a honra de postar aqui no blog a crônica* de autoria dela, convido você, leitor, a embarcar com a autora cearense em uma aventura pelas “zoropa”. Afinal, não é justamente esta a função da literatura: proporcionar-nos viagens nas quais o texto é o único passaporte necessário? Então, se assim é, aperte o cinto e vamos nessa!

 

Lá estava meu nome na lista dos selecionados para o intercâmbio na Irlanda pelo Programa Professores sem Fronteiras da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza, com mais 24 colegas de profissão. Exultante, contei a novidade à família e aos amigos. Oh, my God! Dali a um mês eu pisaria em terras europeias. Durante esse período, providenciar passaporte, casacos, luvas, gorro, “doleira”, ficar de olho no valor do Euro e atualizar o vocabulário básico do inglês se converteu em minha nova rotina.

Passar horas voando sobre o Atlântico seria a parte assustadora daquela novidade gigantesca, mas nem um friozinho na barriga senti durante as nove horas de voo a bordo de um Airbus da TAP Air Portugal com destino à Lisboa, ponto de conexão. Lá, passamos doze horas.

O primeiro detalhe impressionante, captado pelos meus sentidos aguçados, foi a mistura de idiomas das pessoas na fila da área de imigração. Lá estava eu, brasileiríssima, com cidadãos de diversas etnias e culturas.

À medida que avançava na fila enorme, que dava voltas e voltas dentro de um salão, discretamente observava os traços, gestos, trajes e vozes de homens, mulheres e crianças de vários países. Como Deus é criativo, pensei. A obra humana é magnífica! Somente neste orbe, quanta variedade étnica. Alguns exemplares estavam ali.

Chegada a Lisboa.

Sair do aeroporto com um pequeno grupo de colegas, aproveitando o bônus que a conexão de 12 horas nos favoreceu, foi eletrizante. Caminhar em solo europeu, pelos pontos turísticos de Lisboa, com a possibilidade fácil de comunicação, foi um presente da vida. Lá me senti uma turista internacional.

Na chegada ao aeroporto de Dublin, depois de uma viagem de quase três horas, meu corpo experimentou a temperatura baixa pela primeira vez. No mês de setembro, em pleno outono, o frio não era tão incômodo, mas para uma nordestina do sertão cearense, qualquer friozinho exige um agasalho. Precavida, lá experimentei a utilidade de uma segunda pele térmica.

Nosso destino era Limerick, 214 quilômetros distante da capital irlandesa. O percurso até à cidade universitária foi feito durante a madrugada num ônibus fretado e durou duas horas e meia. Logo que entrei no veículo, observei imediatamente o volante do lado direito. Que confuso para o meu juízo essa tal mão inglesa.

Acordar num hotel de uma cidade europeia parecia uma cena cinematográfica. Foi exatamente naquele momento, quando abri os olhos para aquele novo cotidiano, que tive a sensação de estar dentro de um filme. Enquanto eu acordava às 7h na Irlanda, minha família estava dormindo em fase REM total no Brasil. A legítima matuta que sobrevive em mim, a poetisa de nascença ou essas duas personalidades juntas, trataram de observar as peculiaridades daquele lugar em que nunca havia pensado visitar, muito menos com status de intercambista. Nos meus sonhos de menina que morou no interior do Ceará, da Bahia e do Piauí, não cabia a cidade interiorana de Limerick, sequer tinha conhecimento daquele lugar no planeta.

No Clayton Hotel.

Os sonhos turísticos de uma pessoa nascida no sertão são aqueles que comumente vemos na TV: Paris, Londres, Hong Kong... Comecei a assistir filmes gravados nessas metrópoles com 10 anos de idade, na tela em preto e branco de uma televisão pequena, na sala da minha modesta casa, na companhia dos meus pais e irmãos. Três décadas depois, naquele setembro de 2024, com 53 anos de idade, tinha à minha frente uma janela que dava para um rio de nome Shannon, que cruza o centro de uma cidade irlandesa, a 6.865 quilômetros da minha casa em Maracanaú, no meu Ceará. Aqui cabe um “orraaaaaaaaaa” bem cearense, mas eu expressei um “Uhuuuuuuu” quando abri as cortinas e me deparei com tamanha belezura e senti orgulho da minha conquista, que não veio tarde, pois acredito que tudo chega no tempo certo.

Antes de viajar, na arrumação das malas, duas amigas me ajudaram a organizar os looks de cada um dos 12 dias que passaria em Limerick, pois uma matuta como eu, que nunca havia “turistado”, e para tão longe de casa, estava deveras insegura nesse quesito. E, quando me vi no espelho do hotel, com um tipo de roupa que nunca tinha vestido, só senti vontade de rir. Eu estava muito elegante para os padrões cearenses. Já para o padrão europeu, era apenas uma estudante vestida adequadamente para ir à faculdade.

Chique demais para os padrões brasileiros. 😊

Caminhar pelas ruas da bonita Limerick com meu grupo de colegas, do Clayton Hotel à Mary Immaculate College, foi uma experiência encantadora em cada um daqueles dias, pois me extasiei com o design das casas com portas coloridas, a diversidade de roseiras em cada jardim, o silêncio cortado somente pelo grasnar dos corvos. Ver essa ave de pertinho é uma das saudades que sinto, pois é um dos animais que desejava conhecer antes de morrer. Para mim, os corvos não simbolizam maus presságios em razão de sua cor ou hábitos necrófagos, mas astúcia, sabedoria e cura. Seu corvejar é um som agradável, me proporcionava genuína alegria. Se era matutice cumprimentá-los cada vez que os via, sou matuta com muito “goxto”!

Os corvos.

Percorrer os corredores da MIC carregando uma mochila nas costas, assistir aulas com professores irlandeses, em salas de estrutura clássica e ainda almoçar no refeitório com universitários “gringos”, me transportava para uma daquelas séries de streaming boas de maratonar. E tenho certeza de que não era apenas eu que tinha essa sensação.

Na Faculdade.

Entrar em igrejas católicas de estilo gótico, era uma cena de filme épico. Conhecer a St. Mary's Cathedral, com sua arquitetura medieval, construída no coração de Limerick e inaugurada em 1.168, fez meu coração bater mais forte com a sensação de voltar a uma época em que certamente vivi.

Na igreja.

Já a sensação de subir à torre do King John’s Castle, construído em 1200, ao lado do rio Shannon, em Limerick, e participar da encenação turística de um banquete medieval no Bunratty Castle, construído em 1425, trouxe à minha mente a lembrança dos contos de fadas que lia na infância e dos filmes em desenho animado da Sessão da Tarde.

Por trás da beleza fascinante desses lugares que constituem o patrimônio cultural de Limerick, existe a história das batalhas, das conquistas sangrentas, da evolução daquele povo, cujos registros estão também nos museus e nas bibliotecas, mas ainda impregnados nas paredes e na energia dos ambientes mais sombrios. “Matutice braba” seria considerar apenas a superfície.

Com Megg.

Minha personalidade matuta vinha à tona principalmente no horário das refeições. Preferia apontar minha escolha no cardápio, para não passar vexame na pronúncia estrangeira e sempre depois de uma consulta ao Google para verificar se o prato escolhido não tinha pimenta e curry, temperos incompatíveis com meu paladar e fortemente presentes em quase todos os pratos da culinária irlandesa. Depois de muitos dias comendo batata, ingrediente usado em quase todas as receitas, senti falta do cuscuz e do baião de dois, típicos da minha terra.

King John's Castle.

O choro de emoção só veio com o contato mais íntimo com a natureza, quando visitei os Cliffs of Moher; quando fiz um passeio na Slea Head Drive, em Dingle, rota cênica que fez parte de muitos filmes; quando percorri o Lago Derg de barco; quando pisei na areia da praia de Lahinch; quando colhi pedrinhas na península, pétalas de rosas caídas das roseiras no People Park e folhas secas das árvores de plátano nas ruas de Limerick; e, muito especialmente, quando acariciei a crina de Megg, égua da raça Tinker, nas andanças pelos arredores do castelo de Bunratti, e a pelagem dos cães da raça Old English Sheepdog, quando seus tutores gentilmente me deram permissão. Nesses momentos, fui matuta sem cerimônia, sem vergonha, fui só a neta do Seu “Ontõi Gomi”, fui só uma filhinha de Deus com o coração transbordando de gratidão, diante da beleza exuberante que vi em outro ponto do planeta e que só o Autor da Vida foi capaz de criar.

Nos Clifs.

Durante as aulas na MIC e visitas a escolas, aplaudi o que tem qualidade excelente, reconhecendo a sorte daquele povo. A Irlanda é um país de economia altamente desenvolvida, com alto padrão de vida. Lá “professor tem valor”. Em contrapartida, senti orgulho dos professores que tive, da professora que me tornei, da aluna que fui e dos alunos que tenho. Intercâmbios profissionais servem para impulsionar reflexões e ideias. Voltei com a bagagem cheia de muitas.

Foram 15 dias consumindo em Euro. Lá não passei nenhum perrengue chique. Retornar ao Brasil e voltar a pagar as contas em Real me lembra a fala de João Grilo na obra de Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida: “fica rica, fica pobre”. Mas também vi gente aperreada do juízo, pedintes e viciados. Esses males emocionais levam muitos deles a se despedirem da vida, mergulhando nas águas do rio Shannon.

Turistando...

Quando saímos do nosso mundo para visitar outras partes do Mundo, é que temos noção do nosso tamanho, do nível em que estamos, do que realmente já alcançamos, do quanto mais podemos crescer, do tanto que temos que agradecer.

O melhor de tudo, é que a viagem mais importante, aquela que ganhamos de bônus, é, na verdade, a viagem que fazemos para dentro de nós, algo que acontece espontaneamente e, quando nos damos conta, estamos nos vendo na perspectiva do outro, pois a todo momento analisamos a nós mesmos.

Nesse intercâmbio, fui mais criança do que adulta, senti-me mais professora do que aluna, fui mais matuta do que culta, fui muito mais eu.

Voltei dizendo sorry por qualquer besteirinha, muito mais educada pedindo please para tudo, acho que dizer excuse me parece muito mais elegante, é charmoso agradecer dizendo thank you very much. Mas, é só uma fase. Vou morrer dizendo “oxente”.


Francisca Gomes
Professora, escritora e poetisa
*Esta crônica faz parte do livro Farofa Nordestina, do grupo de escritores Os Tramaturgos.


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A verdadeira religião

 

Eu não sei. É isso mesmo que você leu. “Não sei” é a melhor e mais sensata resposta para a pergunta que subjaz ao título deste artigo. E eu peço que, por favor, não acredite em uma resposta contrária, a não ser que ela ressoe na parte mais íntima dentro de você. E é justamente a partir disso que nos cabe tecer uma longa e sincera discussão.

Ok, entendo que você deve estar se perguntando a que se propõe um artigo sobre “a verdadeira religião” que já de início afirma não saber dizê-la. E tal questionamento, por mais compreensível que seja, me leva a percepção de que você está, muito provavelmente, a cometer o equívoco que por vezes eu já cometi e ainda cometo na busca da Verdade, isto é, do verdadeiro caminho para Deus. A propósito, afirmar que se trata de um equívoco que eu “ainda cometo” é deveras relevante aqui, vez que deixa bem claro que este que vos escreve não é um ser evoluído que cá está para lhe dar direcionamento. Não, não... sou apenas alguém que segue na busca, obstinado, encontrando uma resposta aqui, uma luz ali, mas sempre buscando, tal como você.

Mas que equívoco é esse ao qual me referi? Nada menos que a busca de algo espiritual por uma via intelectual. E aqui é importante que não se faça confusão:  entenda que nada há de errado no estudo, na leitura de obras com temática espiritualista, religiosa e afins. Até porque se temos um cérebro, se somos dotados de intelecto, é muito improvável que tal capacidade nos tenha sido dada à toa ou que não a possamos utilizar para fins espirituais. Então, sim, o estudo é bem-vindo; a leitura é, sim, um excelente instrumento na busca pela Verdade, e você não deve nunca deixar de buscar conhecimento.

O problema se dá é quando sobrepomos o intelecto a todos os outros meios dos quais a Inteligência Universal se utiliza para nos dar direcionamento. E é aí que a gente corre o risco de se converter naquelas figuras excêntricas que surgem na internet falando sobre temas de extrema complexidade – os chakras, as leis herméticas, a alquimia etc. e tal – mas parecem pouco espirituais de fato. Sobrepor o intelecto a todo o resto é tornar as coisas de Deus algo puramente acadêmico, no que vale lembrar que que por vezes foram grandes intelectuais que cometeram as maiores atrocidades “em nome de Deus”, Mas um Deus ao qual só se conhecia de forma intelectual e egoica.

Ademais, buscar o conhecimento de algo tão complexo como “o verdadeiro caminho para Deus” por via do intelecto já é equivocado por si só. Afinal, será mesmo que existe alguma doutrina que careça de bons e bem fundamentados argumentos na defesa de si? Imagine, por exemplo, se fosse promovido um grande evento como nunca visto na humanidade. Um evento no qual se reunissem os grandes nomes de cada doutrina: o Papa, o nome mais expoente do espiritismo, a figura mais importante do budismo, a maior autoridade no protestantismo etc. Olha, quase posso garantir que ninguém sairia vencedor ou fracassado desse debate, e muito provavelmente todos, em algum momento, cairiam naquela famigerada ideia das “verdades de fé”, isto é, aquilo em que se acredita não com base em argumentos bem embasados, mas por meio da tradição, da crença e correlatos (e não há nenhum problema nisso).

Certo. Então, se concordamos que um buscador sincero e dedicado ao estudo encontraria bom fundamento em toda e qualquer religião, como conhecer o caminho correto, como encontrar a Verdade se não por meio do intelecto. E é neste ponto que eu, que adoro listas, vou deixar algumas dicas para você com base na minha própria experiência. Vamos nessa?

1 – Colocando o ego de lado

Há uma frase bonita que diz que “aquilo que você busca também está buscando por você. Ok, eu concordo, mas também concordo que aquilo que você está buscando da maneira errada e com as intenções inapropriadas está se afastando de você. E aqui cabe uma pergunta: a sua busca por respostas tem Deus como objetivo final ou tem apenas você, com a sua necessidade de desvendar segredos do Universo só para se sentir melhor consigo e superior aos outros, ou para gozar de mais conforto neste mundo material? Não estaríamos nós apenas substituindo a desesperada busca por títulos acadêmicos (também muito bem-vindos) pela busca de experiências metafísicas e poderes sobrenaturais que nos elevem acima dos demais, colocando-nos em evidência entre esses meros mortais?

Colocar o ego de lado (metaforicamente falando, é claro, pois isso soaria absurdo para qualquer profissional sério da psicologia ou da psicanálise) e estabelecendo Deus como um fim me parece um excelente exercício, por mais árduo que seja (e, acredite, é beeem árduo). O livro Imitação de Cristo, escrito por Tomás de Kempis, é um livro extremamente querido entre os cristãos católicos e um excelente aliado nesse processo de abandonar-se em Deus, esquecendo-se de si e dando espaço para que a Verdade ocupe o palco de nossa mera existência. Fica a dica.

2 – Perguntando a quem tem a resposta

Este tópico é tão óbvio, mas tão óbvio que eu não vejo necessidade de me demorar muito nele. Pense bem: na escola, quando você tem dúvida, você pergunta ao professor. Em casa, quando você ainda é criança, você recorre aos seus pais quando precisa de permissão para algo ou de algum esclarecimento ou ajuda. Então me responde, criatura: por que cargas d’água, em se tratando da natureza de Deus, você recorre ao pastor, ao padre, ao pai-de-santo, ao terapeuta e até ao presidente da república em lugar de recorrer... a Deus?

Nada contra essas figuras que eu mencionei, certo? A questão aqui é que, se você quer uma resposta certeira, um direcionamento verdadeiro, não faz sentido recorrer a alguém que – na melhor das intenções – vai lhe oferecer uma resposta obviamente enviesada! Talvez você não acredite que pode ter esse diálogo direto com Deus; talvez você não se considere digno(a) ou – pior! – talvez acredite que não deva se dirigir a Ele questionando-Lhe a própria natureza. Mas eu vou lhe dizer uma coisa: você pode, sim! Pode e deve.

Deus muito se agrada do filho sincero que recorre a Ele e fala com sinceridade. E digo mais: as minhas orações mais benéficas foram aquelas em que eu “quebrei o pau”. Claro, você não precisa e nem deve faltar com respeito com quem lhe concedeu a vida, mas não tema ter uma conversa espontânea, de filho(a) para Pai, de criatura para Criador.

E, claro, fique atento(a), pois a resposta virá. Seja por meio de uma coincidência bizarra, de uma música, uma mensagem, um sonho... Não sei como, mas sei que ela virá, a um só tempo clara e sutil. Então, por favor, não se distraia.

3 – Lembrando que uma coisa não exclui a outra

Veja bem: eu já passei por várias religiões. Segui a fundo apenas o catolicismo, mas já transitei com certa dedicação pelo espiritismo e o universalismo, bem como já frequentei a umbanda, o budismo, o hinduísmo etc. Dadas essas minhas incursões por diferentes filosofias, se tem uma coisa que me incomoda é escutar alguns líderes religiosos afirmarem que “a filosofia X é a verdadeira” ou “a igreja Y é a igreja de Cristo”. Algumas denominações religiosas, mais radicais, até mesmo acrescentam que tudo o que é contrário a elas é obra do inimigo, “o pai da mentira”.

Tal discurso me incomoda porque eu estou muito certo de haver encontrado Deus em cada uma dessas experiências, e sei que você, que também já esteve em vários lugares na sua jornada rumo ao sagrado, também já O encontrou em cada um deles. Ademais – e espero não estar sendo blasfemo ao dizê-lo – me parece muito sacana a imagem de um Deus que, ao mirar uma casa espírita, por exemplo, afirme algo como: “Tem uma galera ali me buscando, falando de mim e tentando se pautar em meus ensinamentos, mas esse povo é espírita, ali eu não entro”. A propósito, se bem me lembro, é justamente o contrário disso que o Divino Mestre nos diz em Mateus 18,19-20: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali eu estou no meio deles”.

É insano acreditar que um Deus que é todo amor e misericórdia faça acepção de pessoas com base em suas doutrinas em vez de considerar a busca sincera de cada um. O Deus verdadeiro é um Deus de amor, e não de arrogância; não um Deus que olha a religião e “não se junta com essa gentalha” (e eu nunca pensei que recorreria ao Chaves para refletir sobre o Criador...).

E é aqui que pode vir a pergunta: “Ah! Então quer dizer que eu posso frequentar qualquer religião?!”. E a minha resposta é SIM!, você pode, maaas... – e eu preciso que você preste muita atenção ao que direi em seguida – o fato de não haver a religião verdadeira não significa que Deus não o(a) queira em uma em particular.

É isso mesmo que você leu. Pois acima da diversidade religiosa, existe a vontade do Criador. E, nessa perspectiva, o discurso tão em voga de que “Jesus era contra as religiões, então vamos buscar Deus apenas dentro de nós” pode ser tão prejudicial quanto a afirmação de que “a minha doutrina é a correta”. As religiões, doutrinas e filosofias existem no mundo, de modo que, se nós concordamos que Deus se faz presente em cada uma delas, é natural que concordemos também que Ele precisa de pessoas específicas exercendo um papel em cada uma delas.

É por isso que existe gente desenvolvendo um trabalho maravilhoso na doutrina de Kardec, é por isso que existem pessoas com vibração tão elevada na umbanda, é por isso que existe gente cheia do Espírito Santo na igreja evangélica... A grande maioria das pessoas ainda sente que precisa e recorre às religiões e, portanto, Deus lá sempre estará, sempre designando pessoas para determinadas tarefas. Beleza, neste ponto você vai me dizer algo como: “Aihn, mas tem um monte de gente enganando os outros dentro das igrejas e blá blá blá”. Pois então... eu disse que Deus designa pessoas para certas tarefas e não que executa Ele mesmo as tarefas. Nós, em nossa inconstância, estamos invariavelmente nos afastando de Deus, sendo, portanto, suscetíveis ao erro... E, sim, isso dá margem para uma outra conversa bem complexa que nós não teremos aqui, tá bom?

4 – Vivendo a vida

Certo, vimos que as muitas abordagens oferecem a possibilidade de conexão com o sagrado, estando aí a importância e valor de todas elas. A nossa falha, porém, pode estar também nessa arraigada ideia de que demandamos um momento, uma reunião e/ou um ritual específico para tal conexão. Convém repetir que a adesão a uma filosofia ou algo do tipo é, sim, de imenso valor, mas a gente precisa cuidar para que aquele momento da missa, da gira, do passe ou do louvor não seja o nosso ÚNICO momento dedicado a Deus ao longo da semana.

E não, eu não estou dizendo que você precisa reservar mais momentos para Deus ou que precisa orar três vezes ao dia em vez de apenas uma etc. Eu estou dizendo que, se você coloca Deus como um fim em si, cada movimento, cada ação sua deve ser por e para Ele.

Buscar desesperadamente uma doutrina na qual se encaixar pode ser um sinal de que você só se acredita em contato com Ele dentro de um conjunto de dogmas, quando, na verdade, Deus é tudo o que há. Nem que você quisesse, você não estaria fora ou longe Dele. Em meio a essa luta cotidiana que nos consome o tempo, a energia e a atenção, ter um momento dedicado exclusivamente a Ele é super importante. Viver a vida, porém – sem se cobrar, sem se julgar em débito porque faltou à missa na semana passada – pode lhe proporcionar insights maravilhosos.

Experiências como o satsang (“encontro com a Verdade”, em sânscrito), mindfulness (atenção plena) e a vertente filosófica voltada para a não-dualidade exploram muito e de forma bastante experiencial essa ideia de que Deus já é aqui e agora, e jamais poderia deixar de ser. Não permita que a busca desesperada por uma Verdade intangível ao intelecto o distraia, desviando a sua atenção de uma Verdade que já está dada, de um Deus que jamais lhe ocultou a Sua face.

Esteja inteiro(a) no que faz. Faça o seu trabalho não apenas pelo sustento, mas também na certeza de que Deus o(a) designou para fazê-lo em prol de alguém que talvez você nem conheça e nunca venha a conhecer, mas que precisa do seu trabalho. Seja gentil e abençoe a todos. Diante de cada situação, se pergunte como agiria Jesus (ou Buda ou Sócrates ou quem quer que seja) em seu lugar. Dialogue com o próximo como quem dialoga com uma manifestação do Divino (aliás, SURPRESA!, é exatamente isso que o próximo é). Sacralize a tudo e a todos, pois, como bem diz o título de um livro do Pe. Fábio de Melo, sagrado é viver.

5 – Entendendo que Deus é grande

Você já deve ter visto aquela imagem tão singela, mas tão profunda que apresenta dois peixes dentro do mar, um deles livro e outro no interior de um aquário. No aquário há a inscrição “com religião”, ao passo que no peixe que nada livremente há a inscrição “com Deus”.

Na minha interpretação, essa ilustração não desrespeita e nem descredibiliza a religião, mas apenas a define como algo que capta um aspecto específico de Deus, o que a torna limitada. O peixe que nada livremente parece menos limitado, pois, ao se ver livre de uma doutrina em especial (o aquário), tem o privilégio de navegar por todas as águas, estabelecendo contato com as diversas facetas do Divino. Mas não se engane... pois o oceano, por maior que seja, também tem os seus limites, e ninguém pode conhecer ou captar o Todo...

E o que eu quero dizer com isso? Bom, estou dizendo que, aderindo ou não a uma religião, a sua compreensão do Criador será limitada, pois Ele é incognoscível, inefável. Pôxa, Ele é Deus uai (e me perdoe pelo mineirês). Muito me agrada uma busca livre da religião, entrar em contato com outras maneiras de crer, ritualizar e professar a própria fé; conhecer outros aspectos do Altíssimo e me dar conta do quão pouco ainda sei sobre Ele. Todavia, também compreendo que, ao fazer tal escolha, perco a oportunidade de vivência coletiva da espiritualidade, da identidade, sensação de pertencimento e propósito proporcionadas pela forma como é estruturada uma doutrina. E bem sei das tantas vezes em que, ávido por respostas, me confundi, me perdi e me coloquei em experiências que não eram pra mim...

Perceba, portanto, que uma coisa não é melhor que a outra. O que existem são abordagens distintas e, claro, as nossas escolhas, que sempre trazem consigo vantagens e desvantagens. A arrogância de quem crê haver compreendido o Criador – o que é mais comum dentro das religiões, mas também presente entre os espiritualistas – nos afasta Dele, ao passo que o humilde reconhecimento de Sua grandeza e de nossa pequenez e ignorância tende a nos propiciar um contato mais íntimo com Ele.

Conclusão

Lembro de, em criança, ir à missa com minha mãe, quando era sempre cantada uma música assim: “Senhor, quem entrará no santuário pra te louvar? / Quem tem as mãos limpas e o coração puro / Quem não é vaidoso e sabe amar”. Só quando adulto descobri que essa música tem inspiração no Salmo 24.

Perceba que o salmista afirma que só entrará no santuário – isto é, só estará na presença de Deus – quem for honesto, bom, humilde e amoroso. Em nenhum momento ele diz algo como “quem for evangélico” ou “quem for maçom”. Mas ele também não disse “só entrará quem zombar, criticar e fugir das religiões”. Tanto o salmo como diversos outros trechos bíblicos revelam que Deus espera de nós comportamentos, atitudes e ações, e não adesão ou repúdio a esta ou àquela doutrina.

Afinal, estar preso a um aquário, sem a possibilidade de experienciar a imensidão do oceano é ruim. Igualmente ruim, porém, é ficar à mercê dos perigos das águas, sem o devido amparo e instrução, quando do gozo de nossa liberdade... O bom disso tudo é que Deus, em Sua infinita misericórdia, nos dá a possibilidade de escolha, expressa na palavra livre-arbítrio.

Portanto, segue buscando, mas não permita que o seu coração se aflija por questões que nunca foram prioridade para Deus. Apenas seja sincero e persistente no desejo de seguí-Lo, de agir conforme a vontade Dele. Vontade essa que há de ser revelada no âmago de todo buscador sincero.

Eu espero que este artigo o tenha ajudado de alguma maneira, trazendo-lhe paz e clareza quanto aos seus próximos passos.


quarta-feira, 17 de maio de 2023

Cristo contra a LGBTfobia

De acordo com o livro do Gênesis, em diálogo com Noé, Deus estabeleceu o arco-íris como símbolo da eterna aliança entre Ele e o homem. Bilhões e bilhões de anos mais tarde, porém, as cores do arco-íris se tornariam, graças ao designer Gilbert Baker, símbolo da comunidade LGBTQIA+. À primeira vista, parece não haver nenhuma relação entre uma coisa e outra, né? A verdade, porém, é que tem tudo a ver.

Jesus, aquele a quem tantos de nós escolheram como Senhor e Mestre, é o exemplo máximo de combate à LGBTfobia. Com as suas incontáveis lições de amor, duras críticas à hipocrisia dos fariseus e convites ao autoconhecimento, Cristo se nos apresenta como a conexão entre esses dois sentidos atribuídos às cores do arco-íris em tempos tão distintos.

A máxima “ame ao próximo como a si mesmo”, afinal, nada mais é que uma forma de dizer “ame ao próximo e, para tanto, ame a si mesmo o bastante para não precisar descontar no outro as suas frustrações, medos e indecisões”. Com Jesus a gente aprende que o amor-próprio não dá lugar ao egoísmo, que nada mais revela senão uma autoapreciação que, por exacerbada que pareça, é demasiadamente frágil. É por isso que ora se diz que a polaridade do amor não é o ódio, mas sim o medo.

E foi ele, o medo, que pregou o nosso Mestre na cruz. O medo daqueles que, avessos a quaisquer mudanças na ordem das coisas, temiam aquele que ousava chamar a Deus de “Pai”, exaltar a humanidade dos desvalidos, adentrar a sinagoga e anunciar a Boa-Nova, dizendo: “As escrituras já se cumpriram”.

Que o Mestre Jesus, encarnação do mais puro amor, nos conduza para essa tão necessária jornada para dentro de nós, fortalecendo-nos o suficiente para que o outro, com as suas verdades e idiossincrasias, não represente para nós uma ameaça.

Que vejamos em todos a Face de Deus, sempre cientes de que o arco colorido que corta os céus contempla a todos; de Noé aos dias atuais, abraça a TODOS.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Sobre se jogar na vida



No último sábado, aventurando-me em mais uma trilha guiada, fui presenteado com as belas paisagens no trajeto entre a Serra da Moeda e Marinho da Serra – que fazia parte do percurso feito pelo ouro de Minas Gerais com destino aos portos do Rio de Janeiro. Todavia, se por um lado fui privilegiado pelas belezas do caminho – a envolvente neblina do início, o Pico do Itabirito, os pequenos vilarejos, a charmosa cachoeira etc. – por outro, tive a contemplação prejudicada pelas minhas próprias limitações.

Eis que na segunda metade da caminhada, quando já percorridos cerca de 4km, a minha limitação visual, unida à falta de equilíbrio e ao cansaço físico, se apresentou como um obstáculo real à atividade. Caí pela primeira vez, sem imaginar que as dificuldades ainda por vir me levariam a cair pela segunda, terceira etc.

O constrangimento era um fato, sobretudo quando, observando as minhas dificuldades, participantes com os quais eu ainda não caminhara me perguntaram se aquela era a minha primeira vez naquele tipo de atividade. Todavia, se havia o constrangimento, havia também a solidariedade e a gentileza típicas de quem costuma participar dessas atividades, sempre a me amortecerem as quedas (pois a caminhada é individual, mas nunca solitária...).

Se nas experiências anteriores eu chegara ao fim da caminhada feliz e orgulhoso pelas dificuldades transpostas, o prazer não se fazia presente desta vez, quando – assentado no restaurante da simpática Pousada Estalagem Moeda Real – eu me percebia certo de não mais querer passar por experiências como aquela.

Não obstante, havia também algumas certezas e aprendizados que nem mesmo o meu cansaço, vergonha e joelho ralado podiam abafar, quase como uma vitória subjacente a um aparente fracasso. A saber: a cada queda, eu me levantara imediatamente (ou quase); não me faltara ajuda em nenhuma das dificuldades (e aqui destaco o nosso guia Marcelo, pessoa de um raro senso de humanidade, e o Eurico, participante que, sem querer, mas com imensa boa-vontade, acabou por se tornar meu guia em alguns momentos).

E, acima de tudo, a conclusão que me veio – à custa de muito esforço, mas como que um profundo suspiro de liberdade – foi a de que não se trata de vencer ou fracassar, de se sair bem ou mal, mas, sim, de viver as experiências. É na experiência que a gente se percebe, detectando as nossas forças e fraquezas e, por conseguinte, realizando ajustes, decidindo-se quanto ao que evitar ou repetir.

Mais do que malogros e êxitos, a experiência nos proporciona o autoconhecimento, acompanhado daquela doce sensação de que, a despeito dos resultados, nós encaramos mais um desafio. Perceber-se, porém, só vem de uma disposição e abertura para a vida, com as dádivas e reveses que lhes são próprios.

Eu desejo que você se jogue na vida, e que, em cada mergulho, conheça um pouco mais deste que será o único a acompanha-lo até o final dessa longa e imprevisível caminhada: você mesmo.


quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Pânico (Scream, 2022)


Foi num remoto ano de 1997, quando as vídeolocadoras nem sequer sonhavam com a sua extinção, que tive o privilégio de assistir, por meio de uma fita VHS, àquele que inaugurou uma nova fase no gênero terror. Cinema era um luxo para a minha realidade de então, de modo que eu só vim a adentrar uma sala pela primeira vez no ano seguinte, quando Titanic (Titanic, 1997) convenceu a minha mãe a, numa tarde aleatória, surpreender a mim e à minha irmã com um “meninos, vamos ao cinema?”.

Não haver conhecido o ghostface no cinema, porém, em nada prejudicou a minha experiência com Pânico (Scream, 1996), que, alguns meses antes, virara até matéria de alguns telejornais. Era noite. Estávamos eu e minha mãe – grande companheira para filmes de terror e afins – nos primeiros minutos daquele filme tão esperado quando acabou a energia elétrica, frustrando a nossa experiência. Em instantes, porém, a luz retornou, nos permitindo acompanhar as desventuras de Sidney Prescott (Neve Campbell) e companhia.

Neste ponto é possível que você, leitor, esteja a se questionar: “Mas por que diabos esse cara não para de divagar e parte logo para a discussão do novo filme, que é o que de fato importa?” E eu respondo justificando o meu relato intimista pela palavra que mais me vem à mente quando penso em Pânico (Scream, 2022), informalmente chamado de Pânico 5: nostalgia.

Sim, pois, para cinéfilos da minha geração, que tiveram a grata oportunidade de assistir ao nascimento dessa franquia em uma conturbada adolescência, falar desse novo filme é falar de nostalgia, homenagem, recordações. É, enfim, uma experiência certamente distinta daquela vivida pelos que ora são apresentados à franquia.

O retorno de alguns personagens – além dos óbvios Sidney, Dewey (David Arquette) e Gale (Courteney Cox) – é um entre os muitos elementos da homenagem que se pretende Pânico 5. Judy Hicks (Marley Eve Shelton), sobrevivente de Pânico 4 (Scream 4, 2011) e desafeto de Gale naquela ocasião, retorna aqui como xerife de Woodsboro e mãe de Wes (Dylan Minnette), cujo nome, por sua vez, homenageia o saudoso Wes Craven (1939 – 2015), criador da franquia.

Martha Meeks (Heather Matarazzo), que tem breve aparição em Pânico 3 (Scream 3, 2000) como irmã de Randy (Jamie Kennedy) – sobrevivente do primeiro filme que não durou muito no segundo – é aqui mãe dos gêmeos Mindy (Jasmin Savoy Brown) e Chad (Mason Gooding). A propósito, são fantásticas as conexões que o filme estabelece entre Mindy e o falecido tio Randy... Uma curiosidade: o pôster de divulgação de O Albergue 2 (Hostel: Part II, 2007) é estampado por Heather Matarazzo, cuja personagem, muito embora apenas coadjuvante no longa, é a que tem a morte mais assustadora...

Outro que reaparece, proporcionando-nos uma grata surpresa, é Billy (Skeet Ulrich), assassino do primeiro filme e o único que realmente merece o título de galã em toda essa franquia. Se tivemos a mãe do rapaz em Pânico 2 (Scream 2, 1997), agora temos a sua própria filha Samantha (Melissa Barrera), que ora divide com Sidney o papel de mocinha.

E, naturalmente, não podemos cometer o absurdo de esquecer Roger L. Jackson, ator de voz que interpreta o Ghostface em todos os filmes da franquia. Quem assiste a Pânico 5 no idioma original tem a oportunidade de escutá-lo.

E por falar nisso, atentemo-nos para o cuidado presente até mesmo na dublagem brasileira, que nos trouxe Marisa Leal dublando Sidney, Marco Antônio Costa dublando Dewey, Andrea Murucci dublando Gale e Tatá Guarnieri dublando o ghostface, tal como em Pânico 4. Temos também Wendel Bezerra novamente dublando o Billy, vinte e cinco anos após o primeiro filme...

São muitas as semelhanças e discrepâncias com os demais filmes da franquia. Em se tratando de diferenças, me chamou a atenção o fato de Pânico 5 ter maior apelo emocional (seria exagerado dizer “dramático”), trazendo um bom número de jovens destinados a morrer – como em todo bom e velho filme de terror –, mas nos levando a nos importarmos com eles. Aqui, os personagens parecem menos aleatórios, o que nos leva, por exemplo, a sofrer pela morte de Judy e do filho Wes, bem como a torcer pela Mindy etc. Penso que um conjunto de coisas contribui para tanto: o valor afetivo da franquia, a boa construção dos personagens e, claro, os requintes de crueldade presentes em cada morte, devidamente compensados ao final. Pois, sim, o filme soube nos proporcionar uma catarse (melhor assim...).

Importante lembrar que – tanto por ser esse um filme em que tudo é possível como pelo absurdo da inabalável sorte dos três grandes protagonistas da franquia – um deles precisa morrer aqui, o que foi bastante ousado. Dewey, lembrando-se tardiamente da valiosa dica dada pela Sidney ao final do terceiro filme (“Atire na cabeça!”), acaba por se colocar nas mãos do assassino, proporcionando a qualquer fã da franquia uma cena deveras dolorida. Não surpreenderia, porém, se o personagem retornasse numa provável continuação, revelando-se sobrevivente ao massacre de Pânico 5.

A propósito, a chamada “suspensão da descrença” configura-se como algo deveras necessário em todos os filmes da franquia e neste de modo especial. Afinal, temos o personagem que “vai dessa pra uma melhor” com uma única punhalada do ghostface, enquanto outros, depois de uma série delas, se recupera em questão de minutos; temos uma adolescente/jovem (Mikey Madison) nocauteando um homem adulto e ex-xerife; temos uma policie pra lá de ineficiente e um hospital ermo e sem nenhum tipo de segurança. Enfim, todos os absurdos favoráveis ao roteiro, o que torna totalmente viável o retorno do personagem tão querido que é Dewey.

Vale dizer, aliás, que ele, assim como Sidney e Gale, parecem não haver sido tão explorados aqui, o que nem de longe significa que não hajam recebido a devida importância. Ocorre que, além de ser esse um filme ágil, há nele a intenção de apresentar uma nova protagonista. Diante disso, os realizadores parecem haver feito um bom trabalho ao se dedicar aos veteranos sem diminuir as irmãs Samantha e Tara (Jenna Ortega), em torno das quais gira toda a trama.

Do trio sobrevivente sabemos pouco, mas o suficiente: Sidney, tal como no terceiro filme, reside em outra cidade, agora com filhos (tomara que frutos de um relacionamento com o detetive interpretado pelo Patrick Dempsey em Pânico 3...), retornando para Woodsboro em razão da morte de Dewey. Ele, por sua vez, é um xerife aposentado vivendo em um trailer. Ele e Gale (assim como os seus intérpretes na vida real) não estão mais juntos, o que tem como causa a carreira de Gale. A química entre os atores, porém, permanece quase palpável.

Enfim, Pânico 5 se sai bem em todos os seus objetivos: prestar uma homenagem aos fãs e ao criador da franquia, ressuscitá-la e contar uma boa história. Parece-me, porém, haver sido dedicada demasiada atenção à metalinguagem e às conexões com os filmes anteriores e pouca atenção ao desfecho, que nos revela assassinos irrelevantes com motivações nada criativas. Todavia, considerando que a própria Sidney caçoa de tais motivações, penso que isso talvez seja intencional, vez que nesse longa importa muito mais o durante do que a revelação final. Ademais, trata-se de um roteiro que, ao abraçar com força a metalinguagem, brinca com o telespectador por meio da subversão, surpreendendo com o diferente quando se espera o óbvio e oferecendo o óbvio quando se espera a novidade. Um bom exemplo disso é a insinuação de uma morte a la Psicose (Psycho, 1960) que não acontece.

Outro ponto é que, embora há quem diga ser possível uma boa experiência com Pânico 5 sem conhecimento dos demais filmes da franquia, considero isso um tanto improvável. E digo-o porque, por mais que o próprio filme ofereça uma contextualização, penso se tratar de muita informação para um telespectador não iniciado na franquia. O primeiro filme me parece essencial. Há ainda as muitas referências a Stab – filme de terror existente no universo de Pânico, estabelecido a partir do segundo filme da série – que tende a dificultar a experiência.

Enfim, Pânico 5 – ao menos a meu ver – não decepciona os fãs da franquia, a despeito das falhas comuns a qualquer obra (sobretudo aquelas com forte apelo comercial). Embora o filme possa soar como despedida, o bom senso nos leva a considerar Pânico 5 como um novo fôlego para a franquia, que, a depender do resultado nas bilheterias, obviamente ganhará uma continuação (a não ser, claro, que optemos pela ingenuidade de acreditar que os produtores valorizam a arte acima dos lucros).

Resta-nos, então, aguardar o desenrolar dessa história, por ora detendo-nos ao sentimento de gratidão ao estranho ruído e à janela assustadoramente aberta que, há vinte e cinco anos, amedrontou Kevin Williamson, inspirando-lhe o roteiro do longa de 1996. No mais, espero que isto não aconteça, mas, se porventura a vida imitar a arte e estranhos acontecimentos lhe perturbem numa calada e solitária noite, atente-se a estas dicas: não atenda ao telefone, não abra a porta, não tente se esconder, não entre em... pânico.



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sobre livros e tevê

Embora bem-intencionada, esta ilustração sempre me deixa pensativo.

Vamos por partes, começando pelo fato de ela estar desatualizada, vez que hoje melhor seria substituir a imagem da tevê pela de um smartphone devidamente conectado a todas as redes sociais possíveis. Não obstante, ignoremos esse pormenor, até por ser a tevê algo ainda muito presente em nossa rotina.

Outro ponto que me parece problemático é a vilanização da tevê e a exaltação do livro, como se este fosse por si só a solução para tudo e aquela fosse uma maldição, um veículo do qual não se possa fazer bom uso.

Nesse ponto, eu fico pensando nas novelas mexicanas que eu tanto adoro (risos) e nas boas opções que há na programação televisiva, mas que precisam ser garimpadas, vez que, por não atraírem as massas, estão sempre fora do horário nobre. Fico pensando também em homens de incontestável inteligência, como Adolf Hitler, e sua nefasta atuação sobre o mundo.

E é daí que me vem a reflexão de que o bem ou o mal nem sempre estão nas coisas em si, mas no uso que dela fazemos, por mais clichê que isso soe. Ademais – por mais bem-vinda, necessária, útil, importante e indispensável que seja a leitura – há que se desconstruir a romântica e pouco pragmática ideia de que os problemas do mundo cessariam a partir do momento em que todos aderissem ao hábito de ler.

Isso não é verdade, pois mesmo o hábito de leitura precisa ser precedido por políticas que a tornem acessível. E, aqui, nós estamos falando de educação, de inclusão social e de uma série de coisas que devem se dar não a partir da leitura, mas antes dela; para conduzir a ela, e não o contrário.

Ademais, havemos que pensar também na qualidade da leitura. De que leitura estamos falando, afinal? Seja lá o que for, é ótimo que as pessoas estejam lendo, mas seria desonesto ignorar o abismo existente entre “Dom Casmurro” e “Os segredos da mente milionária”, certo?

Enfim, em suma, a mensagem aqui é: incentivemos a leitura, sim, mas sem romantiza-la, pois opiniões estanques são, não raro, problemáticas, e o mundo, por mais cruel que isto pareça, está longe de ser assim tão quadradinho.


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Não existe relacionamento fracassado!

“Não deu certo”. Eis uma afirmação comumente utilizada como referência a um relacionamento encerrado. Afirmações desse tipo partem da equivocada ideia de que as coisas precisam ser eternas. Caso contrário, é porque “não deu certo”. Ora!, não existe relacionamento fracassado. Existe é relacionamento terminado. Relacionamento que, quando se tornou disfuncional, foi prudentemente interrompido.

Neste ponto, você pode estar questionando: “Mas isso não faz sentido! Por uma lógica antonímica, se uma coisa parou de dar certo, é incontestavelmente óbvio que ela passou a dar errado!” Calma... e atente-se para o fato de que a abordagem aqui não se dá no campo semântico, mas, sim, na perspectiva que temos de relacionamentos e términos, comumente oriunda do mito do amor romântico.

O tão famigerado “final feliz” ainda é para nós sinônimo do “e viveram felizes para sempre”. Se nos fosse revelado que, alguns meses após o conhecido final, Cinderela se cansou daquela monotonia, pegou a sua parte da grana e resolveu dividir apartamento com as meias-irmãs, todo aquele amor vivido entre ela e o Príncipe perderia o valor para nós, pois só vale se for “para sempre”, embora nem a própria vida o seja. Não raro, um namoro terminado é lembrado (e avaliado) pelo desfecho trágico e não pelos anos bem vividos. E, nesse sentido, o fato de a história haver tido um fim nos leva a considerar todo o resto como tempo perdido, como se, para valer a pena, as coisas precisassem ser eternas.

É óbvio que ninguém embarca num relacionamento pensando no dia em que ele vai terminar. Da mesma forma, ninguém começa em um novo emprego pensando algo do tipo “quero dar o fora daqui em seis meses” ou se muda para uma casa nova afirmando “vou permanecer nesse imóvel só até ano que vem”. A princípio, a gente investe nas coisas objetivando que elas durem, e isso é natural e até saudável em certa medida. Mas fato é que um dia somos demitidos ou recebemos uma proposta de emprego melhor; um dia o aluguel fica muito salgado e a gente precisa procurar por outro imóvel; um dia os estilos de vida, os sonhos, os comportamentos, as visões de mundo não mais se alinham... e a gente precisa pôr fim a certos relacionamentos.

É claro que há aqueles relacionamentos que já começam “errados”, por assim dizer, mas esses são casos à parte, e mesmo eles, de alguma forma, também cumprem com o seu papel em nossa jornada. De um modo geral, porém, relacionamentos não dão errado. Eles apenas param de dar certo ou nos proporcionam algo distinto do que deles esperávamos.

Errada é a falsa ideia de eternidade que, comumente, nos leva a jogar na lata de lixo tudo aquilo que, embora haja chegado ao fim, foi maravilhoso enquanto durou (ou que, mesmo nunca havendo sido maravilhoso, ao menos nos ensinou a nunca mais nos colocarmos em uma situação afim). É triste ver pessoas definirem como “fracassado” um relacionamento que gerou até filhos! Meu Deus! Se há filhos, então deu certo. Se houve amor ou mesmo tesão, deu certo, sim. Se foi legal durante dois ou três dias, já deu super certo! Se nos ensinou a fazermos melhores escolhas, deu certo. Se proporcionou aprendizado, amadurecimento e autoconhecimento, então valeu, cumpriu com o seu propósito, deu certo...

Essa falsa ideia de eternidade é muito comum nos relacionamentos, fazendo-se presente desde a tatuagem com o nome do companheiro até a vida completamente alicerçada naquela parceria. Mas não é só nos relacionamentos que essa ideia se faz presente. Veja você que o nosso modo de viver pressupõe uma ilusão de que a própria vida neste plano é eterna. Nós, simplesmente, não somos suficientemente treinados ou maduros para lidar com a finitude das coisas. Mas fato é que as coisas são transitórias, sendo esta uma verdade incontestável. E penso eu que, quanto mais conscientes formos da inconstância das coisas, mais propensos estaremos a estabelecermos bases firmes em nós mesmos, sem construirmos castelos sobre alicerces de areia.

Sabe aquela frase que diz “foi bom enquanto durou”? Pois é... Ela é clichê, mas expressa uma verdade equivocadamente contrariada por afirmações do tipo “o relacionamento não deu certo”, “o romance fracassou” e afins. As pessoas estão em constante mutação, e é inteligente e até mesmo saudável reconhecer quando as discrepâncias, comuns em todo e qualquer encontro, estão fazendo a relação ruir; quando os interesses já não são os mesmos, inviabilizando, assim, a manutenção de algo que já não faz sentido.

Ou seja: até mesmo a concordância entre ambas as partes quanto a haver chegado a hora de cada um seguir o próprio rumo é sinal de um relacionamento saudável e bem-sucedido. Pôr fim a uma relação por vezes se revela como um verdadeiro ato de amor, pois não raro acontece de haver amor, mas não haver possibilidade de alinhar os objetivos, valores, expectativas e afins. É quando chega o momento de, por amor – amor pelo parceiro e amor-próprio – libertar o outro e libertar a si mesmo.

A intenção aqui, no entanto, não é induzi-lo a adotar a efemeridade como modo de vida a partir de então. Pelo contrário, o que pretendo é convidá-lo a seguir embarcando nas experiências com a intensidade que elas comumente exigem e merecem. Mas, se porventura tais experiências chegarem ao fim, não as rotule como fracassadas, pois isso seria enveredar por uma inverdade que só traz tristeza e sensação de perda de tempo. Pelo contrário, comprometa-se, a partir de então, a modalizar a sua fala sempre que se referir ao relacionamento passado, substituindo “não deu certo” por “foi super legal e produtivo, mas tivemos que descontinuar” ou “deu certo, mas, quando começou a não funcionar, a gente achou por bem terminar”.

Mas é para dizer isso a você mesmo, e não para os outros, que não têm absolutamente nada com a sua vida. Não se trata de provar nada a ninguém, mas de saber isso internamente, sempre ciente de que, humanos que somos, por vezes a gente vai sofrer, por vezes a gente vai chorar, sentir raiva, mágoa... E está tudo bem, pois eu sei que é difícil... É difícil encarar de maneira tão inspirada um relacionamento pelo qual estamos ainda enlutados. É difícil conceber dessa maneira um relacionamento abusivo (pelo qual ninguém deveria passar e que de maneira alguma pretendo romantizar aqui). Atribuir sentido, porém, pode ressignificar e amenizar a dor de uma experiência dolorosa. Trata-se de uma mudança de paradigma que denota gratidão à vida pela experiência vivida e, sobretudo, ao outro, que atravessou conosco uma fase que, por alguma razão desconhecida, se fez tão necessária ao nosso processo de aprendizagem. Esse, sim, interminável.

Nesse sentido, não entremos em um relacionamento tendo a eternidade como meta, mas, sim, para fazer dar certo, para evoluir, para ser feliz e fazer feliz enquanto possível for, sem nunca esquecer as palavras do poeta: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

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Este artigo foi originalmente publicado em minha coluna nos portais O Segredo e Eu Sem Fronteiras.


sexta-feira, 2 de julho de 2021

Os iluminados da Zona Sul

Como vivem? De que se alimentam? Como se reproduzem?

Bom, as variações são muitas, na verdade, mas, em sua expressão mais estereotipada, eles são tipos curiosos com uma serenidade falsamente afetada, similar à Monja Coen no início da fama (eu gosto muito da Monja Coen, ok?). A voz de veludo é, aliás, um recurso necessário ao convencimento (dos outros e deles próprios) de que transcenderam todas as vicissitudes humanas.

Mas cuidado! Quando confrontados com questões da vida real, é comum que eles sejam dominados pelo instinto animal que habita todos nós, extravasando toda a sua ira por meio da crueldade, dos insultos e de toda a sorte de agressões.

Em razão de uma dieta extremamente restritiva, dado o seu rígido estilo de vida vegano, alguns deles têm uma aparência subnutrida, o que costuma fazer parte do pacote que lhes permite jogar na cara da sociedade o elevado patamar no qual se encontram na escala evolutiva.

Outros, porém, preferem sobrecarregar as suas redes sociais com fotografias ostentando asanas (posturas de yoga) com uma perícia impecável, ou cliques nos quais eles se exibem em posição de lótus (a despeito da baita incoerência que há no fato de querer se exibir em um momento teoricamente voltado à introspecção e à desconexão com o mundo externo).

São brancos em sua maioria, e os “núcleos ascensionais” que costumam frequentar se localizam na zona sul em sua quase totalidade. Até porque não é qualquer um que dispõe de 300 ou 400 reais para investir nas suas dispendiosas terapias. Portanto, lamento informar, mas se você vive na periferia e “vende o almoço para comprar a janta”, não há muita chance pra você, pois a evolução espiritual está incontestavelmente condicionada ao seu poder aquisitivo (sim, contém ironia...).

Existe, aliás, uma incoerência neles (a incoerência é, por sinal, a sua marca registrada). É quase consensual a sua admiração por pessoas como Buda, Jesus e afins. Os Iluminados da Zona Sul, porém, não parecem nada propensos a adotar o estilo de vida abnegado e miserável escolhido por esses mestres que eles tanto dizem admirar.

Alguns deles, ditos “terapeutas”, obtêm um rendimento superior a renda média da população, e surfam no vazio existencial de uma classe média perdida, imediatista e por vezes desacreditada nos métodos cartesianos.

É comum não gostarem de pobre, o que está sutilmente implícito em um discurso aparentemente inofensivo. Falam de autorresponsabilidade (conceito muito válido e bem-vindo, aliás) como apologia à meritocracia e negação às estruturas sociais segregacionistas dentro das quais eles são privilegiados; dizem que “a energia não mente” como forma de justificar, de uma maneira mui espiritualizada, os próprios preconceitos; defendem que “somos todos um”, mas “confundem” amor-próprio com egoísmo e individualismo quando isso lhes convém.

A sua filosofia (de fachada) é embasada em frases soltas de Chico Xavier, Sidarta Gautama, Gibran e afins, sempre defendendo o amor como a solução para o mundo (como de fato é). Acontece, porém, de você não ser acolhido com toda essa amorosidade ao recorrer a eles fora do contexto “terapêutico”. O que se justifica pelo fato de que a sua dignidade só lhes é notada enquanto você lhes estiver oferecendo algum lucro.

Eles alegam que o Reiki pode ser eficaz na diminuição do estresse e da ansiedade; defendem que a terapia tântrica, o ThetaHealing e o diabo a quatro podem amenizar quadros de depressão e oferecem, por meio das Constelações Familiares, respostas para todos os problemas existentes em sua vida! Curiosamente, porém, ignoram condenação por fraude ou mesmo discursos homofóbicos e machistas que envolvem essas práticas.

Nada é mais surpreendente e complexo que os Iluminados da Zona Sul, os quais, creio, só perdem para os militantes que clamam por liberdade e empatia, mas se convertem no demônio quando confrontados com opiniões divergentes das deles.

Eu fico me perguntando qual será o destino desses nobres conquistadores do nirvana. E se de repente a humanidade fosse visitada pelo bom senso, esvaziando os seus sofisticados espaços terapêuticos? Por quanto tempo duraria o seu “estado alterado de consciência”?

Bom, eu não sei. Tudo o que sei é que entre esses tantos ególatras travestidos de espiritualistas, há pessoas de fato comprometidas com o próprio aprimoramento, conscientes do próximo e empenhadas na elevação da humanidade a um novo patamar de consciência. Sim, tais pessoas existem, mas é premente ressaltar que, infelizmente, elas não são uma maioria, mas, sim, uma exceção. Em vez de procura-las, porém, eu sugiro algo melhor: que você procure se tornar uma delas.

P.S.: enquanto eu preparava este artigo para postagem, vi-me dominado pelo intenso receio de que o mesmo causasse incômodo ou mesmo ofendesse a quem, definitivamente, não pertence ao grupo que eu pretendia apontar aqui. Por “apontar”, aliás, entende-se não um ataque desmotivado e meramente recreativo, mas, sim, por chamar a atenção para um problema real que tem causado danos à vida de pessoas.

Nesse sentido, ao reproduzir no texto um estereótipo extremado, o meu objetivo não passa por atacar pessoas, mas, sim, por trazer à tona uma questão social, a saber, a reprodução de preconceitos e práticas excludentes no contexto espiritualista.

Como esclarecido no parágrafo final, não há generalizações aqui, havendo, sim, a consciência de que, mesmo dentre aqueles que se enveredam pelos comportamentos aqui descritos, há os que o fazem sem intenção vilanesca, mas, sim, por falta de consciência social.

Este artigo, portanto, se configura como um convite à tal consciência, da qual nenhum espiritualista é privado. Muito pelo contrário, inclusive. Configura-se, também, como uma crítica à hipocrisia nossa de cada dia.

Enfim, dada a fragilidade que se faz presente em todos no momento atual, bem como o meu receio em soar ofensivo (ou ao menos gratuitamente ofensivo), se fez necessário este post scriptum, que, espero, se faça suficiente para a compreensão do que se pretendeu aqui.

Texto originalmente publicado em minha coluna no Eu Sem Fronteiras.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Uma fase chamada Danielle Steel


Era um início de tarde cinzento de 2002. Chuviscava, é verdade, mas aquele sábado estava cinzento mesmo porque, só pra variar um pouquinho, eu estava apaixonado pelo professor de História do pré-vestibular (aliás, quem não estava?). Assim, saindo da cursinho por volta do meio-dia, fui à banca de livros usados que havia lá na Rua dos Tamoios, em frente à antiga Telemar. Naquele tempo, a prefeitura não havia ainda proibido os camelôs.

Nessa banca, sempre havia livros da Danielle Steel, escritora do gênero Chick-Lit que me havia sido apresentada pela Irani, querida amiga da época. E foi nesse dia que eu comprei o meu primeiro livro, “Momentos de paixão”, por exatos R$5.

Irani e eu costumávamos cabular aula no pré-vestibular só pra ir até a biblioteca pública lá na Praça da Liberdade, onde ela, cega, pegava de empréstimo aqueles enormes volumes em braile. Antes de “Momentos de paixão”, aliás, eu já havia lido outras obras da Danielle Steel disponíveis no acervo da biblioteca. “Vale a pena viver” foi a primeira. Depois vieram outras tantas: “Uma só vez na vida”, “Um amor conquistado” (belíssimo...), “Acidente” etc.

Mas o que eu queria ler mesmo era um sobre o qual a Irani sempre mencionava como sendo maravilhoso – “Segredo de uma promessa” – mas que não existia no acervo da biblioteca. E eis que o mesmo me veio pelas mãos da minha irmã Patrícia, que, de tanto eu falar do livro, fez peregrinação pelas livrarias-sebo de Belo Horizonte e o encontrou, me dando de presente de Natal junto a outros dois: “Casa forte” e “Meio amargo”. O curioso é que “Segredo de uma promessa” foi o pior livro da Danielle Steel que eu já li. Ironias da vida... (risos)

Eu gostava de ler as estórias daquelas norte-americanas de classe média alta. Não sei por quê. Acho que o feminino em mim se identificava. Gostava de vê-las lutando pela família, se dando uma nova chance no amor, indo contra as convenções sociais e, claro, entregando-se ao amor de suas vidas...

Todavia, à medida que a vida real foi se impondo, o gosto pelas obras da Danielle Steel foi se esvaindo também. Mas sou sempre tomado de ternura quando os avisto aqui na estante, vez que tanto contam da minha história...

Contam da trajetória do leitor que eu sou; contam do amor fraterno que levou Patrícia a sair em busca do livro que eu tanto desejava; contam das paixões de um cara que, nas décadas seguintes, ainda quebraria muito a cara por isso; contam de uma amizade que se perdeu no tempo; e contam, sobretudo, dos primeiros raios de liberdade.

E veja só: se um dia eu encontrasse a Danielle Steel, eu pediria um autógrafo e também diria a ela que, finalmente, o dia não está mais cinzento...