“Mais vitorioso do que aquele que conquistou mil exércitos é o homem que venceu a si mesmo.”
Esse trecho, naturalmente, não é da obra de Tomás de kempis (1380 – 1471), mas da tradição hindu, que, com essa máxima, expressa a prevalência das batalhas internas sobre as lutas externas.
A menção à filosofia oriental, aqui, se dá pelo que me salta aos olhos a cada capítulo de “Imitação de Cristo”: a estreita relação com os princípios exaltados em outras tantas doutrinas filosóficas.
O meu primeiro contato com a obra se deu há muitos anos por meio de uma oração, aleatoriamente presente em um pequeno livro de orações, sem menção alguma ao autor. Nessa belíssima oração (p. 113), o autor pede que se lhe desperte o desejo de “ser desprezado e esquecido neste século” pelo amor de Jesus. Está aí expresso o nobre desejo de abrir mão de si e dos interesses pessoais para servir a algo maior.
Ao postular como virtude o esquecimento de si, Kempis relaciona tal comportamento com o autoconhecimento, afirmando que “quem se conhece bem despreza-se a si mesmo”. Ou seja: quem se conhece de fato, reconhece a própria pequenez perante a imensidão do Universo. É por isso que Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.), no ápice de sua sabedoria, afirmou: “Só sei que nada sei”. Trata-se da consciência do quão pequenos somos diante de tudo que nos rodeia.
E isso nada tem a ver com autodepreciação, mas, pelo contrário, com lucidez e moderação na apreciação de si mesmo, sem excessos; sem tender nem para a autocomiseração e nem para a soberba, pois é nesse equilíbrio que se dá o verdadeiro e genuíno amor-próprio.
O gritante apelo ao “esquecimento de si mesmo” como único caminho para Deus, portanto, é, na verdade, um convite a não entregarmos ao prazer dos sentidos e às inflações do ego o governo de nossas vidas.
Trata-se – como bem disse C.S. Lewis (1898 – 1963), a mente por trás d’As Crônicas de Nárnia – não de pensar menos de si mesmo, mas de pensar menos em si mesmo. Trata-se de se amar de verdade, tornando-se, assim, inatingível. Não porque “o que vem de baixo não lhe atinge”, mas porque não lhe podem doer os golpes desferidos contra um mero personagem que você – você de verdade – interpreta neste mundo a serviço de uma honrosa missão.
Apesar de escrito na era medieval, porém, tem-se aqui não uma abordagem moralista, que condena o “pecador” ao “inferno” (embora esses conceitos estejam, sim, presentes na obra). O que perpassa a obra é, na verdade, o apelo de alguém que, por amor, deseja que transfiramos o foco das coisas perecíveis para aquilo que é eterno.
Assim, o “esquecimento de si” nada tem de falta de amor-próprio, mas, pelo contrário, envolve o desapego de nossa personalidade (aquilo que pensamos ser) para que se promova o encontro com o nosso verdadeiro Eu e, por conseguinte, o nosso encontro com Deus.
Nesse mesmo sentido, Matthieu Ricard, um monge budista, defende que esquecer de si mesmo é o melhor caminho para amar a si mesmo. Ou seja: esquecer-se de si enquanto ego é, decerto, o maior ato de amor que se pode ter por si mesmo enquanto essência.
Em uma sociedade que celebra as debilidades e os aspectos da personalidade humana como sendo esse um gesto de amor-próprio, “Imitação de Cristo” – bem como diversos escritos que o precederam e o sucederam – nos convida a, na contramão dos modismos, nos desidentificarmos desses aspectos, que nada mais são do que aquilo que pensamos ser.
A bem da verdade, quanto mais acrescentamos à nossa personalidade, mais vulneráveis somos, estando à mercê das frustrações e decepções comuns à experiência do ego. Assim, Tomás de Kempis defende o autoesquecimento como forma de se tornar imune às agressões e até mesmo aos aplausos (p. 20-21).
O curioso é que muitos dos que curtem filosofias orientais, esotéricas e afins, desprezam a filosofia cristã, o que é compreensível até certo ponto, dado o histórico de repressão da Igreja Católica e do Cristianismo como um todo. Há, porém, que se “separar o joio do trigo” (Mateus 13:24-30), discernindo a torpe ação humana do ensinamento cristão puro e simples, que nada tem de moralista, preconceituoso e que, de mãos dadas com as doutrinas irmãs, só quer a elevação do homem.
“Imitação de Cristo” é, a meu ver, uma leitura bem-vinda para aqueles que desejam resgatar a essência cristã e até mesmo para aqueles que, não sendo adeptos do Cristianismo, desejam retornar para si, buscando uma vida com mais significado.
Na contramão do atual fenômeno da autoajuda, que nos estimula à adesão de tantas outras máscaras (“seja rico”, “seja bem-sucedido” e afins); na contramão de filosofias pautadas no poder de cocriação para a aquisição de riquezas materiais, “Imitação de Cristo’ é um convite ao simples, à realização do que é preciso, mas sempre com os olhos voltados para a eternidade.
Portanto, “conhece-te a ti mesmo” e despreza-te a ti mesmo... sem se desviar de quem você realmente é, sem se permitir distrair do que veio fazer aqui.
Texto que publiquei, originalmente, como comentário no site da Amazon.
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