quarta-feira, 19 de maio de 2021

O porteiro do dia


Saber que as pessoas sempre vão embora pode tornar um pouco desanimadora a tarefa de estreitar os laços. Ao menos é o que eu pensava quando da substituição de todos os porteiros do meu condomínio, ocorrida sem prévio aviso ou justificativa. Aqui, porém, cabe uma ressalva: sem justificativa ao menos para mim, o típico condômino que não participa das assembleias e pouco ou nada se envolve com as questões aqui ocorridas, as quais também me dizem respeito.

Assim, surpreendi-me com as caras novas repentinamente surgidas na portaria, e o que parecia ser férias coletivas era, na verdade, conforme me foi explicado por um dos novos trabalhadores, um remanejamento, prática talvez comum no contexto da empresa que nos terceiriza os serviços de portaria e correlatos.

E, assim, ia-se um dos porteiros do dia, com o qual eu trocava dicas de leitura e, infringindo uma regra estabelecida pelo síndico, ficava a papear nas horas de pouco movimento. Aquele por quem eu era chamado de amigo quando interfonado e a quem eu já havia convidado para um happy hour.

Assim, segui não trocando mais que um cumprimento cordial com os novos responsáveis pela portaria, sem, no entanto, me interessar por lhes saber os nomes. Ressalto não haver neste caso nada daquilo de “ter faculdade e não cumprimentar o porteiro”, prática que soaria ainda mais ridícula num complexo de condomínio periférico e cercado por aglomerados. Eu apenas não queria me interessar por nomes por saber que, num piscar de olhos, esses poderiam dar lugar a outros e assim sucessivamente.

Hoje, porém, depois de novamente acordar tarde em consequência dos péssimos hábitos que me têm conduzido, desci até a portaria para apanhar uma encomenda: mais um livro para a minha coleção de leituras pretendidas, mas nunca concretizadas. O porteiro da ocasião, cujo nome eu ainda desconheço, era justamente o que eu, nas minhas breves passagens pela portaria, já havia identificado como o mais simpático. Ao menos é assim que eu adjetivo quem me cumprimenta com um bom-dia entusiasmado, afirma estar bem “graças a Deus” e me chama de ‘meu querido”.

E, feitos os procedimentos de praxe – entrega da encomenda, assinatura do caderno de controle etc. –, veio a inesperada pergunta do homem: “E qual livro é esse?”. Pego de surpresa – tanto pela pergunta como pelo fato de alguém querer puxar conversa comigo –, detive-me a responder que era um livro de filosofia que eu havia pedido na Estante Virtual, julgando que o meu interlocutor não se interessaria em saber que se tratava de uma obra do Huberto Rohden, pensador que, não recordo como, eu havia descoberto há pouco menos que um ano e por cuja obra eu estou aficionado.

Foi então que o meu interlocutor, aparentemente desejoso de compartilhar um pouco de si, me contou haver trabalhado por anos na Editora Vozes, quando ganhou diversos livros, tendo a oportunidade de conhecer, em especial, a obra Felicidade, que, segundo ele, narra a jornada de um monge e de um homem urbano comum em busca da paz interior. Notoriamente saudoso dos seus tempos de editora, o porteiro relembrou o seu ex-chefe, filósofo com o qual tanto apreciava conversar.

Questionei-o quanto aos seus atuais hábitos de leitura, ao que ele me respondeu que, no atual momento, lê assiduamente sobre os temas pertinentes ao concurso que pretende fazer, esforço que se faz necessário, vez que quer “passar na polícia”.

Subi os oito pequenos lances de escada de volta ao meu apartamento, pensativo. De alguma maneira, a breve conversa com o simpático porteiro me inspirou, trazendo claridade sobre as questões com as quais tenho estado às voltas: a falta de perspectiva; os hábitos que me têm prejudicado tão significativamente; o sentimento de solidão; o emprego que me garante o sustento e pelo qual sou grato, mas que não me faz feliz; o sentimento de menos valia...

É curiosa a ideia que criamos do outro. Ao puxar conversa com o condômino careca e de óculos que está sempre recebendo livros, é possível que o porteiro imaginasse estar em contato com um tipo intelectual, e não com um sujeito que ainda emerge de uma profunda depressão e que ora se vê engolido por um sentimento de mediocridade. De igual modo, eu não via naquele cara alguém que já tivesse tido contato tão íntimo com os livros, que fizesse reflexões profundas e que ora se dedica a realização de um sonho.

É bem verdade o que ouvi recentemente de uma professora a quem muito admiro: cada ser humano que deixamos de conhecer é um mundo novo com o qual deixamos de travar contato.

Aconcheguei-me no meu pequeno escritório e olhei em volta, desanimado ante à carência de limpeza. Abri o embrulho e me dediquei à leitura da contracapa e das orelhas do livro, cujas páginas amarelecidas tanta história guardam. “Deus” – estava estampado na parte superior da modesta capa, que, logo abaixo, apresentava um fragmento d’A criação de Adão, de Michelangelo.

Deus... E, de repente, eu soube que seria este mesmo Deus que me capacitaria aos esforços equivalentes aos quais ora se dedica o meu já tão caro porteiro no alcance de suas metas. O mesmo Deus que me tiraria do marasmo e me salvaria de mim mesmo. O mesmo Deus para o qual eu quero e preciso urgentemente voltar, sendo essa a única meta realmente válida, legítima e necessária. Deus...

Ainda hei de vencer a timidez e perguntar o nome do porteiro.

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