sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Sobre a Miss Brasil, negritude e representtividade



Há assuntos aos quais é sempre válido retornar, por mais que se saiba que nunca se pode alcançar a compreensão de quem está disposto a não entender. Não obstante, a construção de um mundo melhor para todos demanda persistência, paciência e amor. Assim sendo, embora eu não lecione atualmente, tentarei me utilizar da minha formação como professor e ser o mais didático possível na discussão deste tema. Assim sendo, voltemos à bela Raissa Santana.

Ao sair vitoriosa do concurso Miss Brasil no último sábado, Raissa foi tema de muitas conversas, posts e tweets pelo Brasil afora. Por um lado, se regozijava com o fato de ela ser a segunda negra a vencer o concurso. Por outro, se menosprezava esse fato sob a alegação de que é apenas uma bela mulher que concorreu em pé de igualdade com as demais modelos e venceu por mérito.

Ok... De fato, exaltar em demasiado o fato de a moça ser uma mulher negra pode ser problemático, uma vez que evidenciar à exaustão a diferença também é segregar, também é estabelecer o embate. Lembremos que ela venceu o Miss Brasil, e não o “Miss Brasil Afro”. Portanto, é inegável que, antes de mais nada, ela seja uma “representante da beleza da mulher” de modo geral, como ela mesma disse em entrevista ao Estadão. Evidenciar demais a “beleza negra” se configura como um problema na medida em que leva ao entendimento de que Raissa é uma negra muito bela, mas, se considerada em um contexto mais amplo, essa beleza se torna relativa... Definitivamente, não! A moça é de fato linda e não desbancou apenas as demais negras do concurso. Ela desbancou todas, ela foi tida como a mais bela de todas e ponto.

Mas...

Por outro lado, reduzir a nada o fato de ela ser a segunda negra a vencer o concurso após trinta anos da vitória de Deise Nunes também é equivocado, e, para ser um pouco mais firme, é também desonesto... Se você não vê importância na segunda vitória de uma mulher negra do Miss Brasil, devo entender que, seguindo a sua linha de raciocínio, nesses trinta anos nenhuma negra saiu vitoriosa simplesmente porque, de fato, não houve nenhuma que atendesse aos pré-requisitos do concurso. Ainda nessa linha – em um país no qual as mulheres negras são ¼ da população e 50% do total de mulheres –, ao longo de trinta anos não houve uma negra que pudesse representar a beleza da mulher. Sério, cá entre nós, você acredita mesmo nisso?

É preciso deixar bem claro que em momento algum eu defendo que uma mulher negra deva vencer o concurso por ser negra. Isso seria ridículo e desonesto tanto com ela como com as demais modelos. Nenhum negro deve ser colocado onde quer que seja por ser negro. É justamente o contrário. O que eu defendo é que nenhuma negra seja desclassificada no Miss Brasil, no Miss Universo e no escambau por ser negra, entendeu?

Olhe ao seu redor. Veja os sujeitos em cargos de liderança. Veja os políticos. Veja as telenovelas. Veja nas universidades. Veja nos shoppings... Veja e me diga quantos negros você viu nesses espaços. Veja e me diga se você realmente acha que eles só não estão ocupando esses lugares por não haverem sido bons o suficiente, e não por serem negros.

Em vários espaços e circunstâncias, negros são preteridos diariamente, meu caro, e o fato de você não querer ver não vai mudar isso. Tenho percebido com muita clareza que discursos extremos têm sido oriundos de uma necessidade de se posicionar de maneira contrária ao que se chama de “esquerda” Nesse contexto, coloca-se contra as cotas raciais, contra a militância LGBT, contra o feminismo etc. Não vou entrar no mérito de cada um desses pontos e tampouco falo aqui a favor deles. O que quero é fazer um alerta e expressar aqui o quanto me assusta como a necessidade de se distanciar de uma ideologia tem nos levado a esquecer quem nós somos. Nós temos nos deixado doutrinar pelas ideologias com as quais, no início, apenas flertávamos devido a algumas ideias que iam ao encontro das nossas. E, dessa forma, temos deixado de pensar por nós mesmos. O embate político tem se saído melhor do que a televisão naquilo que há muito ela tenta fazer: nos alienar.

Meu caro, confie em mim: não existe ideologia boa ou má. Existem ideologias diferentes, com pontos convergentes e divergentes entre elas. Você pode transitar entre elas sem risco de vida. Você pode preferir uma delas. O que você não pode é permitir que elas o definam determinando quem você deve ser.

E, em tempo, vale informar que na mesma entrevista em que Raissa afirmou que não se vê como representante da beleza negra, mas, sim, representante da beleza da mulher, ela também afirmou que será porta-voz da causa negra e defendeu a diversidade racial nos concursos de beleza.  Ou seja: ao fazer a famosa afirmação – à qual, diga-se de passagem, o Estadão, não por acaso, deu destaque – ela não se posicionou contrária à luta dos negros. Foi uma afirmação de empoderamento, uma reafirmação de que, enquanto mulher negra, ela é capaz de representar também as brancas, as amarelas e afins.

E isso, sem dúvida, é verdade. E o meu profundo desejo é que nada e ninguém possa deter Raissa, Deise e todas as mulheres deste Brasil afora, pois elas trazem em si o potencial de fazer do mundo um lugar mais amoroso, mais fraternal e mais feliz.

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