quinta-feira, 14 de maio de 2020

63 dias. É tudo o que teremos! - L.C. Carneiro



“Transcender para além da esfera comum do pensamento pode trazer sérios riscos à sanidade de uma pessoa. Seria essa a conclusão mais prudente. Talvez, por isso, o medo generalizado de conhecer. A ignorância é mesmo a abençoada condição para a felicidade, ainda que provisória. Desconhecer proporciona a ilusão de uma felicidade duradoura.” (p. 280)

Em um remoto 2013, ao mencionar uma pandemia global que mataria mais de três bilhões de terráqueos no ano de 2020, a brasiliense Melissa Tobias sequer imaginava que a sua obra A realidade de Madhu fosse repercutir, sete anos depois, em razão de uma pandemia que, de fato, exterminaria milhares de cidadãos pelo mundo afora.

Aos que não creem em coincidências, resta a conclusão de que o mundo que nos rodeia é regido por forças sobrenaturais – ou pré-naturais, termo que designa os fenômenos naturais ainda fora do alcance da razão humana –, corroborando, assim, os famigerados dizeres shakespeareanos: ““Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”.

Em seu romance 63 dias. É tudo o que teremos!, o cearense Cezar Carneiro (ou L.C. Carneiro) trilha um caminho duplamente semelhante ao de Melissa Tobias. Não em termos textuais, narrativos e afins, mas no sentido de haver produzido uma obra que – ao tratar de um livro que profetiza o fim – parece, ela mesma, antever o caos, levando-nos ao velho questionamento acerca do caráter imitativo na relação entre vida e arte.

Para além da interdisciplinaridade, ao relacionar temas como física quântica, matemática, literatura, ufologia, espiritualidade e afins, a obra de Cezar Carneiro assume uma qualidade transdisciplinar, evidenciando a unidade do conhecimento, ora tão fragmentado no ocidente, sobretudo no que tange à educação formal.

O percurso entre as tantas áreas do conhecimento, porém, não raro se dá em detrimento da estrutura da narrativa, que, sobretudo em sua primeira parte, nos confronta com diversos núcleos abandonando-os logo em seguida, sem que o leitor disponha do “convívio” necessário para criar empatia com cada um dos personagens. Dessa forma, a expedição comandada pela Dra. Mei, por exemplo, composta pelos personagens mais relevantes da primeira parte, vez que se tratam dos “escolhidos”, só nos é apresentada no capítulo 5, sem que o leitor crie com eles um envolvimento que os torne dignos da experiência narrada até o grande desfecho – que, aliás, se dá logo no capítulo seguinte.

Vale considerar, porém, que a ausência de aprofundamento nos personagens se dá pela possível intenção do autor de fazer do fenômeno em si o aspecto mais relevante da trama, o que coloca em segundo plano os dramas pessoais de cada um. Desse modo, a perda de Raul Neves (p. 73), o “sequestro” de Adam Fisher (p. 80-83), o suicídio de Plácido Miranda (p. 222) perdem lugar para a vulnerabilidade humana em si, fazendo desta a grande protagonista da trama ao lado da engenhosa arquitetura do universo.

Dentre os demais problemas a serem observados, temos a forma como se dão alguns plot twists – com destaque para a maneira um tanto frustrante como nos é revelado o misterioso informante dos Savari (p. 77) –, os improváveis deslizes de alguns personagens em benefício do enredo (p. 194) e a narrativa por vezes confusa em parte devido à aparente ânsia do autor em se valer do seu vasto e notório conhecimento na trama.

Destaque ainda para as notas de rodapé, que, se por um lado são muito bem-vindas, vez e outra contemplando o leitor com curiosidades diversas (p. 21, 28 etc.), por outro parecem subestimar a inteligência do leitor (p. 13, 42). Isso sem falar no caráter dispensável da menção às fontes (p. 163) em uma obra literária, o que seria perfeitamente cabível em um texto acadêmico, mas não aqui.

A criação do link com a primeira parte da trama, publicada isoladamente em 2014, é interessante, mas tardia e pouco explorada em seu potencial. A despeito disso, porém, dá ao leitor a oportunidade de seguir com a leitura da trilogia, mas enveredando por uma narrativa diferente e de final inesperado, o que revela a sagacidade do autor, dado que o desfecho da Parte I, a princípio, inviabilizava uma sequência.

Neste ponto, vale ressaltar que nenhum dos problemas aqui expostos traz prejuízo real à obra como um todo, que, embora ficcional, nos conduz, inevitavelmente, ao questionamento da “realidade” que nos cerca, bem como ao reconhecimento de nossa pequenez “diante da grandeza do Universo”. E isso, além de colocar o leitor na condição de filósofo, o torna contemplado pela dedicatória do autor (p. 3).

Ademais, se questionar o que chamamos de realidade ou mesmo a nossa própria existência parece insanidade, vale lembrar que essa insanidade data de séculos, tendo início nos tempos em que pensadores como Platão, Aristóteles, Descartes e Zhuangzi consideravam a possibilidade de estarmos sonhando quando nos acreditamos despertos; passando pela arte e pela literatura, tal como em A Vida é Sonho (La Vida es Sueño, 1635), de Calderón de la Barca; e chegando a produções de ficção científica da atualidade, tais como o longa Fenda no Tempo (The Langoliers, 1995), filme de minha adolescência, e Black Mirror (2011 – presente), série de televisão britânica.

Ou seja: o questionamento em si nada tem de atual, sendo apenas enriquecido pelas tantas conquistas tecnológicas das quais ora usufruímos, bem como pela existência de mistérios nunca desvendados, tais como o estranho caso das máscaras de chumbo (inevitável esta lembrança diante do “caso das máscaras de cera” apresentado no capítulo IV da Parte II da obra).

Outrossim, se a obra de Cezar Carneiro – que muito dialoga com a série antológica mencionada há dois parágrafos – parece ter um caráter pessimista no que se refere ao vertiginoso avanço tecnológico que vivenciamos nas últimas décadas, vale revisitarmos os argumentos contidos na própria trilogia acerca da maldade, da mesquinharia e do individualismo crasso que caracterizam a criatura humana. Nesse sentido, me vêm à mente a metáfora comumente utilizada pela professora e filósofa Lúcia Helena Galvão para as direções opostas nas quais seguem os avanços tecnológicos e o crescimento humano: “Se se está caminhando rumo ao abismo, é preferível que se vá a pé e não de Porsche”.

Em 63 dias, a mesquinhez humana prevalece – ou ganha mais força – em meio ao caos. E quanto à humanidade, fora da ficção, nas atuais circunstâncias? “O que se poderá esperar? A mudança radical do comportamento humano ingressando toda a Humanidade no reino da paz e da bonança, ou o caos a se instalar por toda parte realizando os piores capítulos do Apocalipse?” (p. 165).

Não há resposta pronta para esta questão. Uma coisa, porém, não deixa dúvidas: 63 dias não é uma leitura para os fracos...

***

CARNEIRO, L.C. 63 dias. É tudo o que teremos. 2. Ed. (Versão Estendida). Rio de Janeiro: Travassos Publicações, 2019.



2 comentários:

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  2. Interessantíssima essa resenha do meu livro. Aceito suas críticas e agradeço pelos apontamentos positivos sobre o meu trabalho. Você captou a essência da trama, ao apontar que o fenômeno que afetou a humanidade é o verdadeiro protagonista, o que explica as lacunas propositadamente inseridas na primeira parte da obra. Parabéns pela sua percepção e boa vontade em fazer essa resenha. Saúde e paz. L C Carneiro. 24/05/2022.

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