segunda-feira, 25 de maio de 2020

Eu, travesti - Luísa Marilac e Nana Queiroz



Eu bem que tentei pegar no sono depois de fechar o livro, que, à esta altura, pouco ou nada guardava do cheiro de novo que tanto me apraz nas obras impressas, dado o muito que fora manuseado nos últimos três dias. A tarefa, no entanto, me parecia impossível, como sendo essa a linguagem utilizada pela vida para me comunicar da impossibilidade de sair ileso daquela leitura.

Os meus dedos, exibindo unhas comumente roídas pela minha natural ansiedade, ansiavam pelo teclado, por mais que a minha mente insistisse na pergunta: o que eu poderia dizer? O que posso eu, do conforto dos meus privilégios, acrescentar acerca de uma vida marcada por privações e terríveis sobressaltos? Até porque Nana Queiroz já havia, com louvor, esgotado todas as possibilidades nesse sentido.

E foi então que decidi me levantar e me deixar guiar pelas entidades que, de alguma forma, me orientavam a não fazer daquela obra apenas mais uma na minha estante.

Quando Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac me apareceu como sugestão no site da Amazon, a minha reação imediata foi me perguntar, com resistência já estabelecida, o que poderia haver digno de nota na história de uma pessoa que só saíra do anonimato em razão de um vídeo que – ao lado de memes como “para a nossa alegria”, “Luiza do Canadá”, “que deselegante” e afins – não passara de mais uma breve diversão na terra de ninguém que é a internet.

Curioso, recorri à seção de comentários do site, dentre os quais encontrei algumas pistas, sendo que a resposta propriamente dita só me veio nas lágrimas que, teimosas, me escorreram pelas faces a cada capítulo no qual Luísa, encarnada no poético texto de Nana Queiroz, narrava as idas e vindas de uma existência que já se mostrara desafiadora desde a mais tenra idade.

Eu, recém-ingresso no mundo das biografias, autobiografias e afins, havia lido há aproximadamente dois anos o igualmente revelador Rogéria: uma mulher e mais um pouco, de Marcio Paschoal, o que me permite concluir que por mais que as vidas de pessoas trans estejam lamentavelmente ligadas por alguns fatores em comum – o preconceito, a prostituição, a coragem de existir etc. –, cada existência segue sendo única e individual, cada qual temperada com os sonhos, traumas, experiências, alegrias e dissabores que a tornam digna de nota em meio à multidão que habita os rótulos, grupos e quaisquer categorias de ser.

Assim – se é que uma comparação seja possível ou mesmo pertinente – o que sobra de glamour naquela falta nessa; o que sobra de poesia nessa falta naquela; enquanto aquela se autointitulava “o travesti da família brasileira”, essa ainda trava uma luta interior e política pela própria alteridade. E, assim, nós temos pessoas que – cada qual em sua época, com seus dramas, privilégios, frustrações e desafios – lutam pelo direito de estar em um mundo cujas fronteiras e desigualdades não foram, decerto, delineadas pelo Criador.

Chamou-me a atenção o fato de que as páginas de Eu, travesti mais me comoviam do que me machucavam, embora compostas de todos os ingredientes para resultar exatamente no contrário. E este talvez seja um dos pontos em que emerge a autoria compartilhada da obra, onde uma, fazendo-se de porta-voz, empresta a sua narrativa poética e sensível, fundindo a sua voz na da outra, que, protagonista daquelas memórias, enxerga a vida com a leveza de quem aprendeu, com a dor, que ela é feita de um eterno cair e levantar-se, tornando dispensável a amargura, como dito pela própria em entrevista ao saudoso Abujamra.

As muitas entrevistas por mim assistidas, aliás, ganharam novas cores após a leitura do livro, que contempla (ou tenta contemplar) a grandiosidade de uma existência que jamais caberia no curto espaço de um talk show.

Vale, porém, um alerta: Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac não é um livro para os pudicos e tampouco para os excessivamente sensíveis (na acepção pejorativa do termo), dado que se tem uma coisa na qual Luísa não se detém é na criação de um personagem; no uso de uma máscara, maquiagem, luz ou ângulo que a torne mais digerível aos intolerantes de plantão.

Pelo contrário – tanto no livro como nos vídeos que faz para o seu canal no YouTube, nos quais denota uma louvável espontaneidade – ela se coloca toda, com o seu passado pelo mercado do sexo, com o seu gosto pelo mesmo (pelo sexo, não pelo seu comércio), com o seu flerte com as drogas, com o seu linguajar repleto de putaria, com a sua absurda capacidade de se reinventar, com o seu carinho pelos animais e com seus romances complicados, típicos de quem cresceu em um contexto no qual os abusos não deixaram lugar para a experiência do amor.

Ironicamente, o personagem só existe no famigerado vídeo que a mostrou ao mundo, quando ela afirmava não estar na pior embora na verdade estivesse, em um episódio que marca o seu “terceiro nascimento” e que é minuciosamente narrado no livro.

Livro esse que – didático ao nos ensinar o Pajubá, doloroso ao nos confrontar com a realidade de uma desafiadora existência e belíssimo ao nos brindar com a esperança a partir de uma história de sobrevivência – ganha importância literária e política. Literária em razão da qualidade e lirismo do texto de Nana Queiroz que eu já me cansei de elogiar aqui, e política por se configurar como a melhor resposta àqueles que silenciam, que ignoram ou que, do alto de sua cisgeneridade, negam a importância de políticas que ofereçam a pessoas como Luísa a “fortuna” de permanecerem vivas e com alguma dignidade.

É com esse tom político que Luísa nos aponta um dedo acusador ao fim de suas memórias, o que talvez se configure como uma das razões – se não a única – para que, encerrada a leitura, me haja faltado a coragem para apenas guardar o livro como quem encerra mais um trivial entretenimento.

E disseram que ela estava na pior... e era verdade. E eis que agora ela vem contar na esperança de que as demais possam um dia gozar do direito e da grata oportunidade de estarem bem.

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MARILAC, Luísa; QUEIROZ, Nana. Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.

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