Eu bem que tentei pegar no sono depois de
fechar o livro, que, à esta altura, pouco ou nada guardava do cheiro de novo
que tanto me apraz nas obras impressas, dado o muito que fora manuseado nos
últimos três dias. A tarefa, no entanto, me parecia impossível, como sendo essa
a linguagem utilizada pela vida para me comunicar da impossibilidade de sair
ileso daquela leitura.
Os meus dedos, exibindo unhas comumente roídas
pela minha natural ansiedade, ansiavam pelo teclado, por mais que a minha mente
insistisse na pergunta: o que eu poderia dizer? O que posso eu, do conforto dos
meus privilégios, acrescentar acerca de uma vida marcada por privações e
terríveis sobressaltos? Até porque Nana Queiroz já havia, com louvor, esgotado
todas as possibilidades nesse sentido.
E foi então que decidi me levantar e me
deixar guiar pelas entidades que, de alguma forma, me orientavam a não fazer
daquela obra apenas mais uma na minha estante.
Quando Eu,
travesti: memórias de Luísa Marilac me apareceu como sugestão no site
da Amazon, a minha reação imediata foi me perguntar, com resistência já
estabelecida, o que poderia haver digno de nota na história de uma pessoa que
só saíra do anonimato em razão de um vídeo que – ao lado de memes como “para a
nossa alegria”, “Luiza do Canadá”, “que deselegante” e afins – não passara de
mais uma breve diversão na terra de ninguém que é a internet.
Curioso, recorri à seção de comentários do
site, dentre os quais encontrei algumas pistas, sendo que a resposta
propriamente dita só me veio nas lágrimas que, teimosas, me escorreram pelas
faces a cada capítulo no qual Luísa, encarnada no poético texto de Nana
Queiroz, narrava as idas e vindas de uma existência que já se mostrara
desafiadora desde a mais tenra idade.
Eu, recém-ingresso no mundo das biografias,
autobiografias e afins, havia lido há aproximadamente dois anos o igualmente revelador
Rogéria:
uma mulher e mais um pouco, de Marcio Paschoal, o que me permite
concluir que por mais que as vidas de pessoas trans estejam lamentavelmente ligadas
por alguns fatores em comum – o preconceito, a prostituição, a coragem de
existir etc. –, cada existência segue sendo única e individual, cada qual
temperada com os sonhos, traumas, experiências, alegrias e dissabores que a
tornam digna de nota em meio à multidão que habita os rótulos, grupos e
quaisquer categorias de ser.
Assim – se é que uma comparação seja possível
ou mesmo pertinente – o que sobra de glamour naquela falta nessa; o que sobra
de poesia nessa falta naquela; enquanto aquela se autointitulava “o travesti da
família brasileira”, essa ainda trava uma luta interior e política pela própria
alteridade. E, assim, nós temos pessoas que – cada qual em sua época, com seus
dramas, privilégios, frustrações e desafios – lutam pelo direito de estar em um
mundo cujas fronteiras e desigualdades não foram, decerto, delineadas pelo
Criador.
Chamou-me a atenção o fato de que as páginas
de Eu, travesti mais me comoviam do
que me machucavam, embora compostas de todos os ingredientes para resultar
exatamente no contrário. E este talvez seja um dos pontos em que emerge a
autoria compartilhada da obra, onde uma, fazendo-se de porta-voz, empresta a
sua narrativa poética e sensível, fundindo a sua voz na da outra, que, protagonista
daquelas memórias, enxerga a vida com a leveza de quem aprendeu, com a dor, que
ela é feita de um eterno cair e levantar-se, tornando dispensável a amargura,
como dito pela própria em entrevista ao saudoso Abujamra.
As muitas entrevistas por mim assistidas,
aliás, ganharam novas cores após a leitura do livro, que contempla (ou tenta
contemplar) a grandiosidade de uma existência que jamais caberia no curto
espaço de um talk show.
Vale, porém, um alerta: Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac não é um livro para os
pudicos e tampouco para os excessivamente sensíveis (na acepção pejorativa do
termo), dado que se tem uma coisa na qual Luísa não se detém é na criação de um
personagem; no uso de uma máscara, maquiagem, luz ou ângulo que a torne mais
digerível aos intolerantes de plantão.
Pelo contrário – tanto no livro como nos
vídeos que faz para o seu canal
no YouTube, nos quais denota uma louvável espontaneidade – ela se coloca
toda, com o seu passado pelo mercado do sexo, com o seu gosto pelo mesmo (pelo
sexo, não pelo seu comércio), com o seu flerte com as drogas, com o seu
linguajar repleto de putaria, com a sua absurda capacidade de se reinventar,
com o seu carinho pelos animais e com seus romances complicados, típicos de
quem cresceu em um contexto no qual os abusos não deixaram lugar para a
experiência do amor.
Ironicamente, o personagem só existe no
famigerado vídeo que a mostrou ao mundo, quando ela afirmava não estar na pior embora
na verdade estivesse, em um episódio que marca o seu “terceiro nascimento” e
que é minuciosamente narrado no livro.
Livro esse que – didático ao nos ensinar o
Pajubá, doloroso ao nos confrontar com a realidade de uma desafiadora
existência e belíssimo ao nos brindar com a esperança a partir de uma história
de sobrevivência – ganha importância literária e política. Literária em razão
da qualidade e lirismo do texto de Nana Queiroz que eu já me cansei de elogiar
aqui, e política por se configurar como a melhor resposta àqueles que
silenciam, que ignoram ou que, do alto de sua cisgeneridade, negam a
importância de políticas que ofereçam a pessoas como Luísa a “fortuna” de permanecerem
vivas e com alguma dignidade.
É com esse tom político que Luísa nos aponta um
dedo acusador ao fim de suas memórias, o que talvez se configure como uma das
razões – se não a única – para que, encerrada a leitura, me haja faltado a
coragem para apenas guardar o livro como quem encerra mais um trivial
entretenimento.
E disseram que ela estava na pior... e era
verdade. E eis que agora ela vem contar na esperança de que as demais possam um
dia gozar do direito e da grata oportunidade de estarem bem.
***
MARILAC, Luísa; QUEIROZ, Nana. Eu, travesti: memórias de Luísa
Marilac. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
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