domingo, 31 de maio de 2020

Ensaio sobre a boceta

Ilustração da @vulvandala

As cortinas de maio, mês das mães, acabaram de se fechar, encerrando, assim, um espetáculo repleto de coragem, benevolência e delicadeza. A despeito disso, porém, este texto se dedica a tratar de algo que vez e outra está na boca da gente, mas que raramente é discutido com seriedade. Eu estou me referindo à boceta. Mas calma, pois, ao menos a princípio, não me refiro à boceta como sendo aquele lugar de onde todos nós viemos, mas à palavra em si.

Sim, eu sei que a palavra lhe soa ofensiva, e possivelmente mais do que outras – como pepeka, xoxota, xana etc. – comumente utilizadas para designar a vulva. Eu não sei o porquê dessa resistência ao termo, mas acredito que uma investigação das origens de “boceta” como referência à genitália feminina – e, por conseguinte, como tabuísmo – possa desconstruir um pouco esse caráter negativo do termo.

Uma provável explicação está na mitologia grega. E, sim, estamos falando dela, a “caixinha de Pandora”, que, em verdade, nunca foi caixinha, mas, originalmente, boceta. A boceta de Pandora.

Derivada da antiga expressão francesa boucette – com registro lá no séc. XIV e sendo diminutivo de boce/bosse (vasilha) – faz parte do léxico português, designando uma pequena caixa redonda ou oval destinada a objetos pessoais, como joias. Voltando ainda mais no tempo, vemos que “boceta” tem origem do latim e do grego, sendo equivalente à “caixa”, mas, conforme já dito, com as características que a diferem de uma caixa comum. Ademais, a expressão “boceta-de-pandora” é comumente utilizada como referência a algo que gera curiosidade, mas que não deve ser revelado.

Existem muitas versões da estória, de modo que, por essa razão – bem como para não nos desviarmos da boceta, que é o nosso foco aqui – não vamos entrar em detalhes, ficando, aqui, sugerida a pesquisa, que vale super a pena.

Fato é que tudo começou com uma treta entre Zeus, rei do universo, e os irmãos Epimeteu e Prometeu, incumbidos da criação dos animais para povoamento da Terra. Enquanto Epimeteu criava os moldes dos animais e lhes atribuía qualidades, Prometeu supervisionava o trabalho do irmão.

O foda foi que Prometeu acabou por se afeiçoar ao homem, último animal criado pelo irmão, e, objetivando coloca-lo em posição de vantagem sobre os demais, roubou para ele o fogo dos deuses, contrariando o deus do Olimpo, que o havia proibido terminantemente de concedê-lo à criatura humana recém-criada do barro.

Não deu outra: Zeus condenou Prometeu a um castigo horrível, do qual só foi liberto anos mais tarde, graças ao Hércules. Mas o fato de a desobediência haver sido de Prometeu não isentava o seu irmão da culpa. Afinal, era ele o artista por trás da criatura humana. E foi a partir desse raciocínio que Zeus teve a ideia de dar a Epimeteu um “presente de grego” (mas essa expressão tem origem em uma outra estória, ok?), encomendando aos deuses Hefesto e Atena uma companhia para o homem. E eis que vem à luz uma obra-prima de nome Pandora – do grego pan (todos) e doron (presente), significando algo como “todos os presentes”.

Criada Pandora, os dois recorreram a outros deuses do Olimpo a fim de dar qualidades à bela criatura. Assim, Pandora recebeu a beleza, a graça, a sabedoria, a destreza manual, a persuasão, a delicadeza, a arte da dança etc. Zeus, porém, objetivando ensinar a humanidade a nunca desacatá-lo, como o fizera Prometeu, concedeu à Pandora um defeito – a curiosidade –, e, paralelamente à criação da jovem, criou uma boceta (caixa ou até jarro em outras versões) de beleza imensurável, aprisionando em seu interior todos os males do mundo: a raiva, a inveja, a tristeza, o ciúme, a preguiça e um outro mal um tanto controverso, sobre o qual falaremos em seguida.

Assim, portando a suntuosa boceta, Pandora foi enviada a Epimeteu como recompensa pelo sua contribuição no povoamento da Terra. Todavia, cabreiro pelos alertas dados pelo irmão Prometeu, Epimeteu se decidiu por não sondar a boceta trazida pela sua adorada companheira, pois um presente vindo do outrora irado Zeus não haveria de ser coisa boa. E assim eles tiveram uma vida muito feliz sem tocar na boceta... mas não por muito tempo.

A despeito dos protestos de Epimeteu, Pandora acabou por ceder à sua curiosidade, e, abrindo o recipiente, libertou todos os males, que se espalharam mundo afora e envolveram a humanidade em guerras, doenças e afins.

Assustada, a bela Pandora fechou o recipiente antes que dele escapasse o último mal. Aquele controverso sobre o qual falamos lá atrás: a esperança. Deve ser por isso que dizem que “a esperança é a última que morre”...

A boceta é, portanto, a maior dádiva e a maior desgraça do homem. A sua glória e sua perdição. Não é de se estranhar, por exemplo, que o grande Machado de Assis haja mencionado a expressão “boceta de Pandora” em sua obra máxima “Dom Casmurro”, que nos apresenta a enigmática Capitu.

A boceta que outrora aprisionava os males do mundo tem uma relação análoga com a boceta que ora aprisiona os corações. E não pense você que qualquer semelhança com a alegoria bíblica seja mera coincidência. Uma companheira para Adão, o fruto proibido, a desobediência de Eva, o conhecimento do bem e do mal etc.

A propósito, confrontar as mitologias grega e judaico-cristã nos auxilia, inclusive, na compreensão do papel da esperança nessa história toda. Ora!, o mesmo cristianismo que considera que Eva tenha dado à luz o pecado – tal como Pandora – exalta, sobretudo em sua expressão católica, aquela que teria dado à luz o Salvador.

Então, se tanto a desgraça (pecado) quanto a salvação (o Cristo) vieram de uma boceta, parece incontestável a conclusão de que o uso de tal termo para designar a vulva se dê pelo seu potencial de gerar o bem e o mal. E aqui podemos até estabelecer uma relação com aquela famigerada (e não raro irresponsável) ideia do senso comum de que as crianças são o futuro da nação, da humanidade etc., sendo a mulher o único ser capaz de gestar esse futuro (uma imagem muito poética, aliás).

Vale dizer que, se tentamos aqui, por meio de abordagem etimológica e mitológica, desconstruir a conotação negativa de ‘boceta’, as feministas já o vêm fazendo com uma abordagem mais política como forma de honrar a sua genitália. Tal como as espiritualistas, que lhe conferem – ou reconhecem – a sacralidade. E isso tudo, salvo os exageros, me parece muito válido, sobretudo como forma de fazer face a uma sociedade patriarcal que, tal como nas alegorias aqui abordadas, culpabiliza a mulher, à qual cabe resguardar-se. Uma sociedade na qual a mulher tem culpa de ser estuprada. Uma sociedade que faz de “galinha” elogio para o homem e insulto para a mulher.

Mas se por um lado o mito pode ser tomado como reflexo de uma sociedade machista, por outro podemos fazer dele uma nova leitura, concebendo-o como um elogio ao poder e autonomia da mulher. Veja bem: foi de Pandora a decisão de abrir o recipiente, assim como foi de Eva a iniciativa de provar do fruto da Árvore do Conhecimento. E mesmo a concepção do Salvador demandou o “sim” de Maria. Nós estamos falando sobre consentimento.

Eis aí o poder do mito, do quanto podemos compreender de nossa sociedade por meio dele e, quem sabe, transformá-la. Eis aí o papel libertador da arte, inclusive no que tange à emancipação feminina, desde A origem do mundo, de Gustave Coubert, até My pussy é o poder, de Valesca Popozuda (e não vamos discutir qualidade aqui...).

Faço deste texto uma homenagem à mulher, exaltando a sua presença decisiva no mito e na história, bem como as virtudes por ela ensinadas por meio da sabedoria de Gaia, da poesia de Brighid, da subversão de Lilith, do silêncio de Maria, da soberania de Kuan Yin e da imponência de Iansã. A elas, personagens reais e fictícias, indispensáveis à compreensão do mais remoto passado dos homens. E, claro, à boceta, que nos deu passagem para esse mundo e, por conseguinte, a possibilidade de fazermos por aqui algo que valha realmente a pena.

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