quinta-feira, 4 de junho de 2020

A história do mimimi



Dia desses, peregrinando pelas redes sociais, vi um post bem singelo que trazia um pequeno diálogo entre mãe e filho. “Mãe, o que é mimimi?”, ao que a mãe, sábia e objetivamente, responde “Mimimi é a dor que não dói na gente”. Vi-me pensativo diante desse post, ficando a indagação da criança a reverberar na minha mente. “Afinal, o que é mimimi?”, eu me perguntava, e tal foi a minha surpresa quando me veio que o tal “mimimi” – não a palavra em si, mas o conceito – está há muito presente em nossa história. E eu gostaria de lhe pedir licença para contar um pouco dessa história...

Bom, quando os navegadores portugueses chegaram a Pindorama, falava-se por aqui uma média de 1.300 línguas indígenas distintas.

Aqui eu preciso fazer um parêntese só para te contar que Pindorama – termo que pode ser traduzido como terra das palmeiras – era o nome pelo qual os habitantes da região “descoberta” por Cabral (1467-1520) e sua frota a designavam. No imaginário dos povos tupis-guaranis, Pindorama era uma terra livre de todo mal, mito esse supostamente criado quando da migração desses povos indígenas para o litoral brasileiro.

Então, a gente pode dizer que Pindorama foi o nome pelo qual os nativos batizaram a região que hoje conhecemos como Brasil. A propósito, objetivando exaltar a cultura indígena como parte de nossa identidade, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) aludiu à denominação tupi em seu Manifesto Antropófago (1928), que defendia uma arte tipicamente brasileira, livre das influências europeias.

Bom, então voltando: quando – acidentalmente, como defendido por alguns – o Brasil foi “descoberto”, falava-se por aqui cerca de 1.300 línguas. E não é por menos, já que algo como 8 milhões de nativos habitavam essas terras.

Os portugueses, então, fizeram algo muito importante, que foi o agrupamento dos povos indígenas com base nas similaridades entre suas línguas, destacando-se o tupi como um dos principais troncos na classificação linguística. Portanto, tupi, no sentido genérico do termo, se refere aos nativos que habitavam a costa brasileira naquele tempo e que falavam a língua tupi antiga.

Fique você sabendo que o verbo “falar” equivale a “nheem” (ñe'eng) na língua tupi. Parece que os portugueses não tinham lá muita paciência com o falatório dos índios tupis, de modo que eles fizeram da tripla repetição do verbo “nheem” – ou seja, “nhenhenhém” – uma referência depreciativa ao falar daquele povo.

Assim, “nhenhenhém” se tornou uma onomatopeia utilizada como referência a um falatório incessante, ou mesmo ao ato de resmungar, reclamar etc. Lá pelos anos 40, porém, a gente importou o “blablabla” do francês, derivado do verbo “blaguer”, que em português é gracejar, zoar, fazer piada etc.

O curioso é que existe um poema da Cecília Meireles (1901-1964) intitulado “A língua do nhem” (Ou isto ou aquilo, Rio de Janeiro, 6. Ed., Nova Fronteira, 2002, p 63-64), que nos apresenta uma doce velhinha que, triste por não ter com quem conversar, vivia resmungando sozinha pela casa: nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa da velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Beleza, mas e o “mimimi” nessa história toda? Bom, essa gíria, que parece um choro, surgiu em "Fudêncio e Seus Amigos", série de animação politicamente incorreta exibida pela MTV entre 2005 e 2011. Na série, o protagonista – semelhante à velhinha do poema da Cecília Meireles – falava apenas a língua do "mimimi", irritando um outro personagem.

Utilizada desde o início como forma de diminuir ou mesmo escarnecer da reclamação de outrem, a expressão “mimimi” era muito comum entre os torcedores no contexto do futebol. Quando o time da pessoa fracassava, ela ficava de “mimimi”. Depois, no entanto, essa onomatopeia se tornou quase que um jargão político, utilizada, sobretudo, como forma de menosprezar manifestações em prol das minorias.

É fato que o “nhenhenhém”, o “blá-blá-blá” e o “mimimi” diferem entre si no sentido de que uma zomba do falar de um povo, outra se relaciona ao ato de “falar abobrinha” (a origem desta eu te conto noutra hora) e outra reduz ao vitimismo a reivindicação de determinados grupos sociais. As três palavras, no entanto, têm em comum o fato de expressarem, pejorativamente, um posicionamento contrário a algo ou a alguém. Sendo a nossa linguagem um incontestável reflexo social, é natural (mas não louvável) que em todas as épocas não nos haja faltado nem mesmo onomatopeias a marcarem o lugar do opressor e do oprimido, ou, para mais além disso, a evidenciarem a ausência de empatia, qualidade essa indispensável a qualquer sociedade que se pretenda realmente civilizada.

E o que é empatia? Definições é o que não faltam, mas eu vou te dar uma por via da poesia: empatia é a virtude que levou o gato, o cachorro e vários outros animais a aderirem à “língua do nhem” no poema da Cecília, curando na boa velhinha o sentimento de solidão em lugar de repreendê-la por uma solidão que não era deles.

O nome disso é fraternidade, que é o alicerce de uma sociedade “livre de todo o mal”, como aquela terra mítica idealizada pelos nossos ancestrais indígenas, talvez já prevendo o que séculos mais tarde viria a ser defendido por algumas vertentes, segundo as quais é o Brasil o ponto de partida para a regeneração da humanidade.

Fraternidade... E onde existe fraternidade não há que se falar em “mimimi”.


Um comentário:

  1. Texto, do contexto mais irritante e incompreensível da atual situação política brasileira.
    Parabéns ao autor.

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